“Amar demais” não existe pelo simples motivo de que o amor não se mede. Mas há, sim, relações disfuncionais, nas quais a pessoa perde-se para o outro. Falamos, neste caso, de mulheres com baixa autoestima e que possivelmente terão recebido pouco afeto na infância. Que vivem em constante desamor e que colocam-se, inconscientemente, a jeito para relações impossíveis ou até mesmo destrutivas, numa procura incessante pelo “conto de fadas”; que no currículo têm amores proibidos, clandestinos, violentos ou manipuladores. Mulheres que, regra geral, são inteligentes, fortes e bem-sucedidas profissionalmente.
As palavras são de Débora Água-Doce, psicóloga clínica formada pelo Instituto Superior de Psicologia Aplicada e com consultório no Canto da Psicologia, além de autora do livro “De uma mulher para mulheres que amam demais”, acabado de chegar ao mercado. Habituada a escrever no blogue A psicóloga que também é blogger, passou para o papel soluções para problemas com que se depara diariamente. Em entrevista ao Observador, Débora Água-Doce explica quais os sintomas de quem sofre deste estado de “desamor”, como os contos de fadas moldam expectativas impossíveis e por que razão a mulher valoriza demasiado as relações. Acima de tudo, deixa o recado: “a nossa felicidade não é alcançada com o outro” e que “o outro não pode servir para me completar e sim complementar”.
O que e isso de “amar demais”?
Chamamos “mulheres que amam demais”, mas isto não existe. Não existe uma forma de medir o amor. Não há muito ou pouco amor, simplesmente ama-se. O “amar demais” é uma forma que arranjámos, digamos perfumada, para não estigmatizarmos estas mulheres. Isto é um gostar disfuncional, é uma codependência.
Qual é o perfil da mulher que “ama demais”?
Normalmente são mulheres que não se amam a elas próprias. Isto vem desde muito cedo e, na maior parte das vezes, é formado logo na própria infância, no sentido em que as mulheres crescem numa relação onde emocionalmente não foram atendidas, houve alguma coisa que faltou — o carinho por parte dos pais que foi pouco ou o ter existido mais crítica do que elogio… uma falta de amor. Como elas não estão em contacto com esse amor, procuram que os pais as amem, procuram ser perfeitas aos olhos deles. Muitas vezes transformam-se em mulheres de sucesso profissional porque são muito exigentes com elas próprias — procuram a perfeição porque querem ser amadas.
Como é que elas se põem a jeito para estas relações disfuncionais? Elas não escolhem, isto não é um processo de escolha consciente. Simplesmente quando surge alguém que pode ser um namorado funcional — uma pessoa que pode permitir ter uma relação saudável — elas nem se apercebem. Não valorizam e acabam por se submeter a relações disfuncionais sempre na esperança de poderem mudar, através do amor, a outra pessoa. Vamos imaginar que uma mulher destas conhece uma pessoa que a ama verdadeiramente e que a trata bem, a relação provavelmente nem vai resultar porque a mulher não tem contacto com estas emoções positivas. As mulheres que amam demais acham que o amor é sinónimo de dor. Então, quando surgem alguém que lhes dá prazer e não dor e que as faz sentir alguma felicidade, acabam por se retirar da relação. Porque não têm contacto com aquela emoção, aquilo é o desconhecido.
Qual é a importância do pai enquanto figura masculina?
O pai é o primeiro exemplo que surge na vida da mulher, é o primeiro exemplo com o qual a mulher tem contacto. E o primeiro homem a dar amor à mulher. Quando se diz que a mulher procura um parceiro semelhante ao pai, muitas vezes tem que ver com as mulheres que vão tentar transformar o parceiro naquilo que não conseguiram transformar o pai (e também a mãe). Mas quando temos um pai que é exigente, que dá pouco afeto, esta mulher vai crescer com carência emocional e vai procurar isso no companheiro. Vai tentar mudar o companheiro como não conseguiu mudar o pai. É inconsciente e é uma necessidade emocional.
O que é um amor “desajustado” e “disfuncional”?
Corresponde às mulheres que acham que estão a sofrer por amor, que sentem que não são amadas da forma como queriam e que vivem constantemente em relações que consideram ser destrutivas e impossíveis. Não falamos só de mulheres que são maltratadas, embora, muitas vezes, as mulheres que “amam demais” estão associadas às vítimas de violência doméstica. No fundo, são pessoas que se maltratam e que se deixam maltratar emocional e psicologicamente. Procuram um amor impossível, aquele do conto de fadas.
O livro explora o medo de perder uma pessoa e o comportamento obsessivo. São coisas que se relacionam?
Sim. Trata-se de mulheres que fazem, por norma, um controlo obsessivo pelos parceiros por medo de ficarem sozinhas. Como são muito inseguras, não confiam em ninguém: nem nelas próprias nem no parceiro. Acham sempre que não são suficientemente boas para eles. Então, desenvolvem todo um mecanismo de controlo à volta da relação que é sufocante, seja pelo telemóvel ou, por exemplo, pelas redes sociais.
Porque é que a mulher, no geral, dá tanta importância ao conceito do amor?
Foi sempre um pouco assim e já vem detrás. Nós, desde pequenas, somos educadas nesse sentido. Hoje em dia, as coisas estão um pouco diferentes, mas se olharmos para as nossas avós e para as nossas mães vemos que elas cresceram com a ideia de ter uma família, de ter filhos. Isso foi-nos incutido. Mas não é só a questão cultural, em que antigamente os homens iam trabalhar e as mulheres ficavam em casa a tomar conta dos filhos, tem também que ver com os contos de fadas, com as histórias que nós ouvimos desde pequenas. No fundo, todas sonhamos em ter um conto de fadas, ter o nosso príncipe encantado e o “viveram felizes para sempre”. Valorizamos demasiado as relações.
O conto de fadas pode ser um inimigo para a mulher real?
Eu acho que é bom sonhar, até trago muitas vezes a necessidade do sonho para o contexto terapêutico. Não vejo o conto de fadas como um inimigo, mas não é uma realidade. É preciso saber que há uma continuidade a partir do “viveram felizes para sempre” que nos é transmitido. O “viveram felizes para sempre” não traz o acordar de manhã despenteado, os chinelos que ficaram fora do sítio, as contas que existem por pagar, as dificuldades que se vão encontrando no dia a dia devido às diferenças de cada um. Então, quando nos confrontamos com a realidade, quando começamos a ver que o nosso príncipe afinal tem coisas que não nos agradam, muitas vezes não conseguimos lidar com isso e acabamos por desistir um pouco das relações ou, então, a vivê-las em sofrimento. Mas, na maior parte das vezes, até há solução dentro da própria relação, o que acontece é que as pessoas não têm bem noção do que isso é, ficam-se um pouco pelos contos de fadas e aí, sim, concordo que eles nos podem prejudicar. A ideia em causa é alimentada através de várias formas. No fundo, tentam transmitir-nos que o amor é com um conto de fadas… São as telenovelas, os filmes, os livros, que nos mostram um amor muito idealizado e que, muitas vezes, foge à realidade. É quase como se nos dissessem que isso é que é amar.
As mulheres estão mais dispostas a sofrer por amor do que os homens?
Acho que sim, se bem que os homens também sofrem muito por amor. Tentei desenvolver grupos dedicados aos “homens que amam demais”, mas teve pouca adesão [Débora é responsável por grupos terapêuticos para “mulheres que amam demais”]. Acho que os homens não falam tanto de amor, não foram educados nesse sentido. Nós, enquanto mulheres, falamos desde muito cedo umas com as outras dos namorados e dos rapazes… Os rapazes não. Não falam com os amigos, até porque esse tipo de conversa acaba por ser um pouco piroso. Mas isto é algo que afeta também os homens e o mecanismo que está por detrás é o mesmo. Hoje em dia tenho quase tantos homens como mulheres em consultório. Já lá vai o tempo que eu tinha dois ou três. Cada vez mais está a emergir a necessidade de o homem cuidar de si emocionalmente.
Porquê? O que é que está a mudar?
A mulher está a assumir papéis que antigamente não eram assumidos. A mulher já não assume a postura de ficar em casa a tomar conta dos filhos. A mulher vai para a rua trabalhar tal qual o homem. Penso que isto tem alguma influência porque os papéis misturaram-se. O homem também toma conta dos filhos.
Até que ponto a sociedade influencia-nos a casar e a ter filhos?
A pressão social existe em todo lado, mas nós somos seres relacionais. Nós precisamos de pessoas, não conseguimos viver sozinhos. Há um momento em que vamos sentir a necessidade de ter alguém na nossa vida, contudo é muito a pressão social que nos faz procurar a relação. Chega uma altura em que as pessoas começam a questionar-se — “tenho 30 anos e não tenho namorado”, “quando é que eu vou ter filhos?”. Isto começa desde muito cedo: os nossos pais, avós e amigos começam a exigir-nos algumas coisas. As pessoas acabam a faculdade e a seguir é expectável que se casem e tenham filhos. Mas a nossa felicidade não é alcançada com o outro. O outro não pode servir para me completar e sim complementar. Eu não preciso do outro para ser feliz.
E o amor depois dos filhos? Do que se pode esperar?
Uma relação passa por várias fases e construí-la demora tempo, tem momentos que nem sempre são os melhores. Uma relação exige, acima de tudo, cedências e harmonia. O casal que está muito apaixonado ao início… com o tempo isso vai dando lugar a amizade e companheirismo, o que, no fundo, é o amor. A paixão dá lugar ao amor. O que podemos esperar de uma relação com o passar do tempo? Podemos esperar uma confiança mútua, segurança, o querer estar com a pessoa sem ser com aquelas borboletas na barriga, porque isso desaparece. As relações são feitas de momentos. Quando termina a magia — e vou chamar-lhe borboletas na barriga — não quer dizer que a relação terminou. Podemos ter chegado ao amor e não sabermos o que isso é. Mas se sentirmos que não queremos estar com aquela pessoa, que já nada nos faz sentido ou que já não há os mesmos objetivos — o cheiro já incomoda, o toque que é indiferente e já não há preocupação um com o outro –, se calhar aí é melhor repensar a relação. Agora se a magia acabou e ficam coisas como admiração… é o amor, a relação instalou-se.