Quando Ricardo Salgado entrou na sala número seis destinada às comissões parlamentares o espaço tornou-se rapidamente exíguo: a expectativa era tal que vários fotojornalistas e operadores de imagem – portugueses e mesmo estrangeiros – acotovelavam-se para registar a entrada do ex-presidente do Banco Espírito Santo (BES), ouvido esta terça-feira no âmbito da comissão de inquérito à gestão do Grupo Espírito Santo.

A confusão durou largos minutos: entre equipas de assessores que se posicionavam estrategicamente para prestarem apoio aos deputados da comissão, jornalistas que ainda procuravam o melhor lugar para se sentarem – e o chão foi a única solução para alguns – e repórteres de imagem, todos procuravam o melhor ângulo para verem o homem que um dia foi considerado o “Dono Disto Tudo”.

Alguns deputados estariam a lembrar-se da possibilidade que chegou a ser equacionada de fazer aquela audição numa sala com maiores dimensões, como a sala do Senado, por exemplo. A ideia, porém, foi liminarmente afastada pelos deputados que “não queriam passar a mensagem de estarem a atribuir um tratamento diferenciado a Ricardo Salgado”, como explicou ao Observador fonte da comissão de inquérito ao BES.

Ainda assim, o número elevado de pessoas que queriam ouvir as primeiras palavras de Ricardo Salgado, depois de meses de silêncio sobre o processo que levou à divisão do BES em ‘banco mau’ e ‘banco bom’, terá surpreendido os próprios deputados da comissão. Rapidamente, houve quem estabelecesse o paralelismo com outra situação já com muitos anos: quando a então jornalista do extinto O Independente, Helena Sanches Osório, pôs o Parlamento a discutir uma “vírgula” – um governante, cujo nome nunca foi revelado, terá recebido ‘120 mil contos’ para alterar uma vírgula numa lei.

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Não se pode dizer que Ricardo Salgado não tenha evitado a todo custo a exposição às objetivas que desde as oito da manhã aguardavam a sua chegada: trocou as voltas ao batalhão de jornalistas que o esperavam nas entradas usadas habitualmente para o efeito e entrou diretamente para a sala número seis, frustrando todos os que ansiavam por uma imagem do ex-presidente do BES a cruzar a porta da Assembleia ou a passar no detetor de metais ali colocado logo à entrada.

Entrou pelas traseiras, deixou o automóvel estacionado onde ficam os carros dos ministros e passou diretamente para a sala das comissões por corredores reservados apenas aos funcionários parlamentares.

“Um leopardo quando morre deixa a sua pele. Um homem quando morre deixa a sua reputação”

O provérbio chinês serviu de mote para Ricardo Salgado se dirigir aos deputados da comissão de inquérito e foi esse o espírito de missão que o acompanhou nas cerca de dez horas que durou a sua audição: defender a honra e dignidade do nome Espírito Santo, depois de tanto ele como a família “terem sido julgados sumariamente na opinião pública”.

“Durante semanas e meses a fio, a minha família e eu próprio fomos julgados sumariamente na opinião pública com acusações de ilegalidades, de fugas em escassas semanas de centenas de biliões de euros destinados a enriquecer-nos em off-shores, de  fortunas pessoais escondidas na Ásia, de mansões em Miami e  de castelos na Escócia. Tudo histórias totalmente falsas mas que acabaram por ocultar a verdade dos factos”, começava por dizer Ricardo Salgado.

Durante a sua defesa disparou em todas as direções: culpou Álvaro Sobrinho e a sua gestão do BES Angola (BESA) – um “ponto nevrálgico” para a contaminação do grupo; acusou o contabilista Francisco Machado da Cruz de ter ocultado o passivo do Espírito Santo International (ESI) da própria administração do banco; garantiu que o governador do Banco de Portugal era um dos responsáveis pela destruição do capital do BES, pela pressa na resolução dos problemas e por forçar provisões excessivas; e ainda, o Governo por ter recusado de forma “inabalável” ajudar o Grupo antes da derrocada. Ricardo Salgado só não se pronunciou sobre a sua família: “Não contem comigo para atacar ninguém da minha família”, repetiu o ex-presidente do BES por diversas vezes.

Calmo e em permanente diálogo com os advogados que compunham a sua entourage, respondeu a (quase) todas as perguntas dos deputados – noutras invocou o segredo de justiça ou as leis angolanas que proíbem a divulgação de dados bancários de entidades daquele país – e refutou sempre as acusações que o davam como principal responsável pela crise que assolou o banco e o Grupo Espírito Santo (GES).

A estratégia de distribuição de responsabilidades que, segundo o próprio, escapavam à sua competência, valeu-lhe algumas provocações. Mariana Mortágua (BE), uma das deputadas mais assertivas, apontou: “Não deixa de ser curioso que o ‘Dono Disto Tudo’ apareça agora como ‘Vítima Disto Tudo’ (…) e que culpe tudo e todos“.

Ricardo Salgado respondeu, então, que esse cognome era “irrisório” e que nunca tinha tido a “presunção de se assumir como tal”. Aliás, tal designação terá sido atribuída para “prejudicar a sua imagem”, acredita o ex-presidente do BES.

“O ‘Dono Disto Tudo’ é o povo português (…) e os senhores deputados são os representantes do povo português”, sustentou Ricardo Salgado.

Carlos Abreu Amorim, o primeiro a dirigir-se a Ricardo Salgado, afinou pelo mesmo diapasão: “Embora fosse o primeiro responsável, [Ricardo Salgado] era sempre o último a saber”, afirmava o social-democrata com ironia. Pelo meio, ainda houve tempo para uma troca de sugestões literárias: o deputado aconselhou Ricardo Salgado a ler a obra “Confissões” de Santo Agostinho, em virtude do seu relato algo “questionável” sobre os acontecimentos que levaram ao fim do BES.

A resposta do ex-presidente do BES, no entanto, não se fez esperar: depois de elogiar “a forma brilhante” como o “ilustre jurista” Carlos Abreu Amorim fez a sua apresentação, Salgado garantiu: “Sou católico praticante e sempre que posso leio as meditações de Santo Agostinho”. 

“Senhor doutor não. Senhor deputado, por favor”

A terminologia com que Ricardo Salgado se dirigia aos deputados presentes também causou algum frisson na sala número seis da comissão parlamentar. O ex-presidente do BES teimava, por lapso, em dirigir-se aos deputados como “senhores doutores”, algo que desagradou particularmente ao socialista Pedro Nuno Santos. “Pedia-lhe só que me tratasse por senhor deputado”, disse o socialista dirigindo-se a Ricardo Salgado, num dos momentos mais tensos do dia.

Mas não foi só a falta de acerto de Ricardo Salgado no momento em que se dirigia aos deputados que motivou queixas da bancada socialista: um membro daquele partido queixou-se ao Observador, que o tom “arrastado” e “lento” com que Ricardo Salgado respondia às questões era uma “estratégia concertada” pela defesa do ex-presidente do BES para “arrastar” aquela comissão de inquérito e “desgastar” o auditório.

Na verdade, os trabalhos prolongaram-se muito para lá da hora, o que, inclusivamente, obrigou ao adiamento da audição de José Maria Ricciardi, originalmente marcada para as 16h. Pelo meio, apenas duas pausas: uma para almoço – com pouco mais de 30 minutos para deputados e jornalistas presentes recuperarem energias – e outra de cinco minutos, já na fase final da sessão.

Foi precisamente durante a primeira pausa que Ricardo Salgado e a sua equipa despertaram atenções redobradas dos jornalistas que percorriam os corredores do Parlamento: almoçaram na sala número quatro – uma sala igualmente destinada para as comissões de inquérito e que, segundo apurou o Observador, foi reservada pela equipa de Salgado para o efeito.

Do lado de fora, um forte dispositivo de segurança guardava a porta, com membros da equipa de Salgado lado a lado com um agente da Guarda Nacional Republicana (GNR) destacado para o serviço. O Observador tentou apurar junto do responsável pela segurança do Parlamento se aquele nível era habitual, mas foi apenas possível perceber que esse reforço de vigilância era “pontual” e que se devia “ao perfil” do inquirido, ainda que Ricardo Salgado “não tenha sido o primeiro a merecer esta atenção particular”.

“Tudo que fiz foi para proteger os clientes do BES”

De volta à reunião, Miguel Tiago (PCP) foi particularmente duro com Ricardo Salgado e fez questão de “registar a ironia de um banco que sempre defendeu o ‘Estado mínimo’ e que tão depressa quis recorrer ao Estado para salvar o Grupo”. O deputado comunista foi mais longe e descreveu o BES como tendo “um vasto currículo de promiscuidade com o poder político”. Face às declarações de Miguel Tiago, Salgado reagiu com um desabafo:

“O Grupo orgulha-se de ter contribuído para a criação de 25 a 30 mil postos de trabalho em Portugal. Portanto, choca-me que se referiam ao Grupo como um esquema de Ponzi”, sublinhou o ex-presidente do BES, que desmentiu, também, as alegadas relações privilegiadas do banco com o anterior Governo socialista.

A frase inscrita na sua longa intervenção inicial podia muito bem resumir a posição assumida por Ricardo Salgado ao longo das dez horas de audição: “Um nome pode ser apagado da fachada de um banco, mas não pode ser apagado da História e de uma família com 145 anos ao serviço de Portugal”. Só não cumpriu a sua promessa inicial: não atacar abertamente a sua família.

“Dr. Ricciardi teve um comportamento muito curioso. E se fez alguma denúncia terá tido alguma contrapartida por isso. Não sei qual, mas acho muito curioso…”, ironizou Ricardo Salgado.

E, ao fim de dez horas, o ex-presidente do BES saiu como entrou: por uma porta discreta da sala seis que de forma labiríntica dava acesso mais rápido à porta lateral da Assembleia da República. Sempre com o mesmo tom de voz, despediu-se deixando a promessa que, se tal fosse necessário, poderia voltar novamente para ser ouvido naquela comissão.