Aos quatro anos de idade Camila pediu o primeiro tabuleiro de xadrez ao Pai Natal. Como lá em casa ninguém sabia como mover as 32 peças pelas 64 casas, a família ficou surpreendida, mas o pedido não foi negligenciado. “Ela nunca gostou de brincar ao faz de conta nem nunca se deu bem com barbies“, conta a mãe, Rita Avelino.

Atualmente com dez anos, Camila é membro do Clube de Xadrez da Escola Secundária D. Filipa de Lencastre, em Lisboa, criado pela associação de pais há três anos e que já conquistou muitos alunos. “Temos 10% da escola em competição federada e a Camila é uma das principais concorrentes”, explica Rita, a também diretora do respetivo grupo.

Mas nem só de xadrez se fazem as brincadeiras na casa dos Avelinos. A família, composta ainda por mais dois filhos, de sete e 11 anos, tem igual preferência pelo Monopólio e pelo Catan, um jogo de estratégia cujo objetivo é construir cidades. Entre quatro paredes, os jogos de tabuleiro são levados a sério e, ao contrário do que se possa pensar, foram os filhos que os pediram aos pais. Rita Avelino conta ainda um episódio vivido esta sexta-feira no ATL da escola. Perante uma sala de jogos recheada com opções digitais, as crianças pediram jogos de tabuleiro. “São os miúdos que querem jogar, mas acredito que haja pouca disponibilidade dos pais para brincar com eles”, acrescenta.

A psicóloga infanto-juvenil Vera Lisa Barroso confirma ao Observador que conhece muito casos de crianças da geração iPhone (que nasceram já na era dos smartphones) que pedem jogos de tabuleiro porque sabem que é uma das poucas maneiras de os pais brincarem com elas. Neste caso, isso acontece sobretudo como resultado do que se passa no consultório, em que pais e filhos são convidados a reunirem-se em torno deste tipo de jogos, embora construídos para fins clínicos, que promovem a interação social e familiar. Mas há outras vantagens associadas.

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Os jogos de tabuleiro implicam a partilha de regras entre todos os participantes, explica a profissional da Oficina de Psicologia. “Observamos benefícios de um ponto de vista social, como a capacidade de as crianças aprenderem a cumprir diretrizes previamente definidas e acordadas entre todos, além de aprenderem a respeitar e ajudar o adversário”. De um ponto de vista cognitivo, existe o desafio estratégico orientado para o objetivo de ganhar; de um ponto de vista emocional, o contacto com o orgulho e felicidade da vitória, mas também com a frustração e zanga da derrota.

Ágata Mandillo concorda com as características enunciadas. Não é formada na área, ainda que esteja a tirar um doutoramento em educação, mas é mãe de duas raparigas que têm claras preferências por jogos de tabuleiro. Se ao início eram os pais que as estimulavam nesse sentido, mais recentemente a iniciativa é das próprias filhas — é exemplo o jogo sobre o ciclo da água que uma das meninas pediu para comprar e para levar para a escola. Mas porque gostam elas desta forma de entretenimento? Porque promove a jogatana entre família e amigos, argumenta a mãe, além do sentido estético dos materiais e das cores neles utilizados.

No entanto, também há tempo de antena para brincadeiras digitais que ocupam, sobretudo, memória no iPad da família Mandillo. Apesar de lhes reconhecer mais-valias, a também dona e gerente de um restaurante de pizzas biológicas em Lisboa explica que, não raras vezes, esse jogos têm “estratégias muito mecânicas e sistemáticas”. Daí que Ágata olhe para as brincadeiras de papel e cartão como sendo “mais estimulantes intelectualmente, apesar de darem mais trabalho por não serem tão imediatas”.

Dito isto, voltamos à “velha” guerra, com o campo de batalha a ser composto pelos jogos de tabuleiro e aqueles digitais ou, então, os videojogos. Erguidas as espadas e entoados os hinos de combate, há vencedores? “Os jogos digitais permitem a estimulação de todas as competências cognitivas dos jogos de tabuleiro, mas com outras vantagens extremamente aliciantes para as crianças que ficam fascinadas com a qualidade gráfica e com o realismo das imagens e dos sons, enquanto muitos pais ficam fascinados com a possibilidade de terem um tempinho para eles”, garante Vera Lisa Barroso.

No entanto, não há final feliz à vista porque os videojogos são “tendencialmente isolantes”, limitam a interação social dos mais novos e podem tornar-se viciantes. Mas desengane-se quem pensa que os tabuleiros de cartão ou de plástico representam a perfeição – estes não estão associados à promoção de imaginação e criatividade.

Mas o mais importante é mesmo brincar. “As crianças devem jogar e brincar todos os dias, porque são crianças e este é o seu modo de descarregar energia, libertar emoções, trabalhar a imaginação, expressar aquilo que pensam e sentem, interagir com os outros”, conclui a psicóloga infanto-juvenil. “Aquilo que costumo dizer aos pais das crianças com quem trabalho é que o importante é jogar… brincar… Daqui a uns anos nenhuma criança conseguirá contabilizar, ao certo, quanto tempo é que os pais despenderam a brincar com ela, mas certamente vai recordar que brincavam”.