Como deve a Igreja relacionar-se com um mundo onde a maior parte das famílias não parece seguir as suas propostas? Era este o ponto de partida de um Sínodo que esteve muito longe de se centrar apenas naquilo que foi mais mediático, como foi o caso da comunhão dos divorciados e recasados.

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“Antes não era assim”, começou por nos dizer D. Manuel Clemente. Antes a realidade do casamento era, por assim dizer, uma realidade tutelada, em que a legislação acompanhava por regras a doutrina católica. Essa realidade mudou, e “como é que nessa realidade nova a Igreja apresenta a sua proposta, que é a proposta do fundador do cristianismo?”

Na opinião do Patriarca de Lisboa é preciso perceber que as nossas sociedade sofrem hoje “de viver entre duas abstrações – a abstração individualizada e a abstração das massas. E nessas abstrações perde-se essa articulação fundamental que são as famílias”.

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Mesmo assim reconhece que é difícil fazer chegar às famílias a mensagem da Igreja. Ele próprio já tem descrito a realidade com que a Igreja se confronta como sendo a de ter de pregar para “pagãos batizados”, isto é, para comunidades que, sendo batizadas, dizendo-se católicas, estão muito longe se seguir as indicações da doutrina ou mesmo de praticar a religião.

Também “antes não era assim”.

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Daí que surja uma ideia fundamental: “Agora tem de ser por nós.” O que decorre de a proposta cristã não estar garantida apenas por existir um quadro legal exterior, que a enquadre, quadro esse que existiu durante séculos. “Estamos a ganhar essa consciência, e é uma consciência nova”.

D. Manuel Clemente cita o caso concreto de Portugal. Lembra que, por exemplo, no nosso país é legal casamento de pessoas do mesmo sexo, apesar de essa não ser a proposta cristã – “vivemos numa sociedade plural, há pessoas que pensam assim”. Da mesma forma que, no nosso país se aceita a interrupção da gravidez e “não se protege a vida em gestação”, sendo que “vamos a ver o que aí vem sobre a parte terminal da vida”.

Não existindo essa tutela legal, é bom não esquecer que “ainda há muita gente que acha que o que é legal é legítimo”, o que preocupa o bispo lisboeta, pois a ética tem de ser mais exigente do que o simples cumprimento da lei. As pessoas agem hoje mais por convicção do que por obrigação, o que vê como “um bem”.

Mesmo assim, conhecendo o pano de fundo de sociedades que vivem longe dos princípios da Igreja, D. Manuel viu em Roma sinais de esperança:

“Algumas das intervenções mais desassombradas no Sínodo vieram dos casais ligados à pastoral familiar que tinham sido convidados. De alguma forma disseram: senhores bispos tenham calma, são os guardiães da doutrina mas somos nós os praticantes. Olhem que a batalha não está perdida. Quando ajudamos outros, isto é muito libertador para eles”.

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A proposta cristã, repetiu várias vezes o Patriarca de Lisboa, é a do fundador do cristianismo. E Jesus Cristo foi interpelado e foi “clarinho”: quando lhe perguntaram se se devia manter a tradição judaica, que permite aos homens passar um certificado de divórcio às mulheres, ele respondeu que “no princípio não era assim”. Sendo que o sentido de “princípio” não é o de início, mas como desígnio do Criador: “O homem deixará a sua casa, a mulher deixará a sua casa, formarão uma união, à maneira judaica formação os dois uma só carne”.

Sobre o sentido da mensagem não haverá pois dúvida. Mas então e os problemas atuais, o prolongamento da esperança de vida, a evolução das sociedades que torna mais difícil manter as uniões? D. Manuel recorda que mesmo na altura Jesus foi desafiado pelos seus discípulos, mas respondeu: “ao homem pode parecer impossível, mas a Deus não, porque a Deus nada é impossível”. Ou seja, que sendo esse um desígnio do Criador, “nós chegamos lá cumprindo a sua vontade, e é por isso que o matrimónio é também um sacramento”.

Mas se muitas uniões destas soçobram, que fazer? Na verdade nem todas as tradições cristãs são idênticas. A tradição protestante não considera o matrimónio um sacramento. A tradição ortodoxa permite uma nova união, com caráter penitencial. Já a tradição católica tem ido no sentido de verificar “a qualidade daquele mútuo consentimento”. Ora aqui tem havido uma evolução forte, pois antes os casos eram muitos restritos, hoje têm-se vindo a alargar. E porquê?

“Porque hoje conhecemos melhor os limites da natureza humana”, o que leva a considerar não apenas a consumação física, mas também uma consumação num sentido mais amplo. Tem sido na análise destes fatores que tem evoluído a tradição cristã: “No fundo trata-se de ligar a proposta de Jesus Cristo – não separe o homem o que deu uniu – às contingências humanas de aderir a esta verdade. Tanto quanto consigo prever, será mais por aí que o sínodo andará”.

Mas sendo assim, exigindo-se muito dos casais, devendo estes ter condições para perceber que podem viver juntos cumprindo os seus votos, não deveria a Igreja aceitar práticas hoje muito comuns como a coabitação? D. Manuel Clemente é prudente: “Se calhar aquilo que devemos dizer é que aquilo que são as nossas convicções também devem ser as nossas práticas. Se eu ainda não estou unido àquela pessoa, estar a manifestar fisicamente que o estou tem uma discrepância que era melhor não haver”.

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Um dos temas que mais centrou as atenções do sínodo foi o da possibilidade de os divorciados católicos que voltam terem acesso ao sacramento da comunhão, o que hoje é interdito. Podem, contudo, ter acesso à comunhão espiritual, em que o celebrante faz o sinal da cruz sobre o rosto do crente. “É uma renovação do batismo, e sacramento do batismo nunca se perde”, explica D. Manuel Clemente. Diferente, na sua perspetiva, é “a continuação na via sacramental, pois pode ser interrompida se houver contradição entre dois momentos sacramentais”, o que acontece no caso dos divorciados recasados.

Daí que tenha aumentado muito o número das dissoluções, isto é, das vezes que se verifica se existiu ou não o sacramento matrimónio. “Todos os anos, nesta cúria diocesana, analisamos casos desses, e tanto quanto sei a maioria conclui-se pela não validade do casamento”, respondeu-nos. Quando isso sucede permite-se naturalmente a continuação da vida sacramental.

(pode ver aqui a entrevista integral: O Patriarca de Lisboa conta como é trabalhar com o Papa Francisco.)