O que têm em comum actores como Jane Wyman, Patty Duke Astin, Daniel Day-Lewis, Marlee Matlin, Cliff Robertson, Al Pacino, Holly Hunter, Dustin Hoffman ou Geoffrey Rush? Todos ganharam Óscares de Melhor Actor ou Actriz por interpretarem pessoas com deficiências físicas ou problemas mentais. Muitos outros foram também nomeados, embora não tenham sido recompensados com a estatueta. É o caso de Sean Penn, Judi Dench, Tom Hanks, Jon Voight ou Russell Crowe, entre outros.

É sabido e consabido que papéis de surdo-mudo, ceguinho, paraplégico, autista, esquizofrénico, paranóico, etc, são “isco de Óscar” de primeira grandeza. Desde 1927, o ano em que os Óscares foram atribuídos pela primeira vez, que 16 das estatuetas referentes às quatro categorias de interpretação distinguiram papéis de pessoas que sofriam de deficiências físicas ou mentais. Exactamente o mesmo número das que foram dadas a actores e actrizes que interpretaram figuras reais. Apenas dois desses 16 intérpretes eram mesmo deficientes: Harold Russell, um não-actor, que perdeu ambas as mãos na II Guerra Mundial, em “Os Melhores Anos das Nossas Vidas”, de William Wyler (1953), onde ganhou o Óscar de Melhor Actor Secundário; e Marlee Matlin, surda-muda, Melhor Actriz em “Filhos de um Deus Menor”, de Randa Haines (1986).

“Trailer” de “Filhos de um Deus Menor”

Num artigo recentemente publicado na revista “online” “Slate”, o escritor e crítico de cinema Scott Jordan Harris citou uma teoria do seu colega John Belluso, ele próprio deficiente motor, para explicar esta predilecção de Hollywood para oscarizar a interpretação da deficiência: “O público sente-se aliviado ao ver um actor como Daniel Day-Lewis, depois de interpretar de forma tão convincente um deficiente em “O Meu Pé Esquerdo”, levantar-se e caminhar até ao palco para receber o seu prémio. Há um ‘Ufa!’ colectivo quando as pessoas percebem que era tudo uma ilusão. Parece que o medo e a recusa que existem perante deficiência podem ser transcendidos magicamente.”

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“Trailer” de “O Meu Pé Esquerdo”

A explicação é curiosa e faz o seu sentido, mas há também outras. O simples facto das pessoas se sentirem bem consigo mesmas ao votar para que uma tal interpretação seja premiada, como se estivessem a ajudar ou a recompensar na realidade alguém que padece de uma deficiência (ou substituindo, com esse acto, uma ajuda real); o facto de se comoverem muito com as histórias de triunfo-sobre-adversidade que geralmente esses papéis contemplam; ou, muito simplesmente, a ilusão de que interpretar deficientes físicos ou mentais é mais “difícil” ou mais “exigente” do que fazer um papel “normal”, e por isso merece muitos, muitos prémios, entre eles o maior de todos do cinema.

Isto leva-nos ao filme de James Marsh “A Teoria de Tudo”, baseado no livro de Jane Hawking “Viagem ao Infinito”, onde a primeira mulher de Stephen Hawking nos mostra por dentro o que foi o seu casamento de 30 anos com o físico, cosmólogo e autor de “Uma Breve História do Tempo”.

Eddie Redmayne interpreta Hawking e já se fala dele como o vencedor antecipado do Óscar de Melhor Actor, depois de ter recebido, entre outros, o Globo de Ouro de Melhor Actor num Drama, e o prémio de Melhor Interpretação Masculina do Sindicato dos Actores dos EUA (Screen Actors Guild).

“Trailer” de “A Teoria de Tudo”

Ora a verdade fria é que o que Eddie Redmayne tem para fazer na pele de Hawking não é propriamente uma interpretação de profundidade, amplitude e modulação shakespeareana. Quando ainda pode andar, ele personifica o jovem, simpático e brilhante “geek” de Cambridge que ele era; quando o corpo se lhe começa a encarquilhar com a terrível doença que atingiu Hawking, ele mima-lhe minuciosamente a deterioração física e as suas consequências, e mostra como apesar do físico o ter abandonado, o intelecto, ajudado pela tecnologia, lhe permitiu superar a sua cruel condição. Redmayne corporiza o seu modelo na perfeição, sem dúvida, mas o papel de Stephen Hawking, ironicamente, acaba por ser limitado e redundante.

Entrevista com Eddie Redmayne

Stephen Hawking visita o ‘set’ do filme

Mas claro que este papel é o mais escancarado “isco de Óscar” deste ano. Porque além de interpretar uma pessoa com deficiência, o actor inglês personifica ao mesmo tempo o mais genial, mundialmente famoso e “cool” deficiente do planeta, que além de ter explicado a origem do universo, já entrou em “Os Simpsons” e em “A Teoria do Big Bang”. (Saliente-se, para evitar mal-entendidos do género “estes críticos de cinema têm todos um coração de lobo e a humanidade de um calhau”, que sou um admirador de longa data de Stephen Hawking e o considero, por todas as razões e mais uma, uma das mais extraordinárias pessoas que já pisaram o solo deste planeta e pensaram os segredos do cosmos.)

Entrevista com Felicity Jones

Quanto ao filme de James Marsh, é um trabalho escorreito, sóbrio, potável, que veda o acesso à lágrima pronta-a-chorar e às piedades pré-fabricadas (se bem que lance mão sacarina visual aqui e ali), e que, mesmo não entrando em detalhes incomodamente gráficos sobre o quotidiano dos Hawking, deixa bem claro a incomensurável devoção de Jane Hawking (uma Felicity Jones que consegue sair da sombra de Redmayne) ao seu marido, bem como os custos pessoais e emocionais que acabaram por lhe ser cobrados. Na história em comum deste casal, o combate contra a adversidade foi milimetricamente sofrido a dois e dividido por dois. E ganharam-no.