Francisco Machado da Cruz revelou aos advogados contratados pelo Grupo Espírito Santo (GES) que havia três pessoas no grupo a saber que o passivo da Espírito Santo Internacional (ESI) não estava correto, mas não sabiam o montante. Mas “não ouvi o Dr. Machado da Cruz dizer A,B ou C mandou-me fazer isto“, confirmou esta quinta-feira na comissão parlamentar de inquérito ao Banco Espírito Santo e GES, Martins Pereira, ex-quadro do grupo que esteve na reunião que se realizou a 28 de março de 2014, mas que realça não ter assistido a uma parte da conversa entre o contabilista do GES e os advogados.
O antigo administrador da Espírito Santo Financial Group, que à data colaborava na reestruturação da ESI, confirma que os nomes indicados por Machado da Cruz como tendo conhecimento da dívida oculta da ESI foram Ricardo Salgado, José Manuel Espírito Santo e Manuel Fernando Espírito Santo. Sabiam também desta situação, que se iniciou em 2008, o próprio commissaire aux comptes, e o tesoureiro, José Castella.
Os três membros da família Espírito Santo que já foram ouvidos nesta comissão de inquérito negaram conhecimento prévio das dívidas escondidas. Ricardo Salgado negou ter dado qualquer instrução para ocultar passivos. Martins Pereira acrescenta que o então presidente do BES lhe garantiu desconhecer a situação.
Quando foi ouvido na comissão de inquérito, Machado da Cruz afirmou que a ocultação de dívida tinha sido feita por ordem de Salgado e para ajudar o BES e o GES que estavam a sofrer perdas. As auditorias realizadas às contas da ESI revelaram um passivo oculto de 1.300 milhões de euros à data de 2012. Era dívida que não estava registada e para a qual não foi identificado um ativo correspondente.
João Martins Pereira era administrador da Espírito Santo Financial Group quando, em 2013, foi convidado por Ricardo Salgado para apoiar a reestruturação da ESI. O responsável teve conhecimento das irregularidades contabilísticas na holding não financeira do GES em novembro de 2013, numa reunião para o qual foi convocado pelo ex-presidente do BES.
Nessa altura, já a avaliação desenvolvida no quadro do exame do Banco de Portugal tinha detetado dívida não refletida nas contas da empresa, então de 2012, que não eram auditadas nem consolidadas, falha que ia já contra as regras do Luxemburgo. Martins Pereira revela que ficou logo decidido que teriam de ser corrigidas todas as contas da ESI dos últimos cinco anos, tendo o grupo reportado ao Banco de Portugal e contratado a auditora, a KPMG, para o efeito, também por ordem do supervisor.
E foi no processo de consolidação e correção que se apurou que não havia ativo que correspondesse à dívida, pelo que esta teria de ser contabilizada como prejuízo. Entre os ativos cuja natureza não foi possível identificar de forma satisfatória estavam património imobiliário, investimentos em Angola e aplicações financeiras na sociedade suíça Eurofin. E como foi feita a ocultação de passivo? “Presumo que será um exercício aritmético de redução da dívida”, admitiu Martins Pereira.
Machado da Cruz admitiu erro, mas só assumiu irregularidade em março de 2014
Machado da Cruz começou por admitir que havia um erro nas contas, mas pelo menos até à reunião de março (com os advogados) “não ouvi outro tipo de explicação. Sempre disse que não houve apropriação ou desvio de fundos, nem realidades mais sinistras”, para explicar a diferença entre o ativo e o passivo.
A exposição da ESI tinha três naturezas. A dívida estava nos clientes de retalho do BES, clientes institucionais em Portugal e no Privée e financiamentos na ES Panamá e ESFIL. Quando estas parcelas de dívida foram agregadas tornou-se evidente que totalidade do passivo não estava nas contas da Espírito Santo Internacional.
O responsável, que assumiu funções de compliance do BES durante vários anos, assegura que não tinha nenhuma razão, nem de substância nem de análise que lhe permitissem antecipar o desfecho. Acreditou que o banco seria salvo. Não considera que tenha havido, necessariamente um propósito obscuro na forma como o grupo estava organizado a partir de holdings fora de Portugal. Admite que tenha sido uma “inevitabilidade resultante de estruturas de controlo fracas que foram sobrepostas ao longo do tempo, parece-me evidente”.
O Titanic já ia caminho do iceberg
Segundo Martins Pereira, os responsáveis do grupo tinham a convicção, talvez esperança de que a situação poderia ser recuperada com o tempo, através de um plano de venda de ativos e e reestruturação da dívida. Mas no dia 21 de março é necessário ir ao supervisor do Luxemburgo, CSSF, comunicar o atraso nas contas e na assembleia geral da Espírito Santo Financial Group, holding financeira do GES que era cotada no país.
A CSSF interessa-se pelo tema e é neste contexto que surge o escritório de advogados onde foi questionado Machado da Cruz. E foi a primeira vez que Martins Pereira “ouviu uma assunção” da irregularidade nas contas, embora nessa altura isso já fosse claro na auditoria da KPMG.
Martins Pereira confirma que teve uma reunião com Machado da Cruz e Salgado a pedido do presidente do BES para preparar a conversa com os advogados do Luxemburgo. Diz ter assumido a posição de que “era indispensável que toda a verdade fosse transmitida aos advogados”. E cita o deputado socialista José Magalhães: “o Titanic já ia caminho do iceberg”. Era também indispensável que “o Dr. Machado da Cruz enquanto repositório vivo” da contabilidade do grupo colaborasse no apuramento da situação.
E as declarações do contabilista correspondem à verdade? Só ele poderá responder, adianta. O ex-quadro do GES não tem memória de que Ricardo Salgado tivesse resistido a contar a verdade. O conteúdo das duas verdades não foi discutido nessa reunião, garante perante a insistência dos deputados