O ditado “não julgue o livro pela capa” nunca fez tanto sentido: apesar do nome Os Bebés Também Querem Dormir — e da imagem a fazer jus ao título –, a obra de Constança Cordeiro Ferreira vai muito além do momento em que deita o seu recém-nascido na cama e começa a rezar para que ele adormeça sem choradeiras. A fada dos bebés, como a terapeuta é chamada pelos pais, não acredita que haja métodos para ensinar um bebé a dormir, ato que entende como a consequência natural de um conjunto de factores, como a segurança e a tranquilidade dos mais novos.
Constança Cordeiro Ferreira não trabalha com choro e diz não poder concordar com métodos que façam os pais “sentirem-se fracos ou pouco corajosos por acudir um bebé que chora em escalada no berço”. Nessa linha de pensamento, é apologista do colo, o qual garante que é gratuito, sem contra-indicações e capaz de acalmar tanto a mãe como o bebé. Defende mesmo que “não há colo em excesso”.
A autora alega ainda que os pais conhecem pouco sobre o recém-nascido humano e que colocam as expetativas à frente do bebé real, como se a educação entre pai e filho começasse logo no primeiro dia de vida: “As pessoas saem da maternidade a sentir quase como se o bebé fosse uma bomba relógio, com instruções rígidas. Acho que a parentalidade está demasiado cheia de instruções.” E se os métodos não entram no vocabulário desta terapeuta de bebés — que insiste em recordar que não é médica, enfermeira ou psicóloga –, o mesmo se pode dizer das ideologias.
Apesar de se chamar Os Bebés Também Querem Dormir, o livro aborda outros temas além do sono dos mais novos.
Dormir é um dos últimos capítulos. Eu não acredito que seja necessário fazer nada de especial para um bebé dormir e não acredito que sejam necessários métodos para ensinar um bebé a dormir. O que acredito é que dormir é uma consequência natural e orgânica de ser compreendido, de nos sentirmos em segurança, de termos o nosso dia cheio de experiências positivas e de aprendizagens. Dormir é um decurso orgânico e fisiológico tendo em conta tudo o que descobrimos sobre os bebés ao longo do livro.
Isso quer dizer que não há rituais ou métodos para ajudar um bebé a adormecer?
Rituais sim, métodos não. Os rituais que criamos com os nossos filhos são o património das mães, dos pais e dos bebés, que nos diferenciam, uma vez que todos nós temos os nossos rituais individuais. Não sou contra rotinas nem rituais, mas não gosto muito de lhes chamar rotinas porque as pessoas associam-nas a horários e métodos, meios para chegar a um fim. Eu acho que os rituais são o próprio dia, a própria vida.
Mas qual é o problema do método?
Este livro não tem um método, é antes um mapa e está assente em ciência. Não quis fazer um livro ideológico e não quero que as pessoas sigam a teoria da Constança, mas sim que os pais encontrem explicações alicerçadas em conhecimento científico para que compreendam melhor o comportamento dos seus bebés e, depois, tomem as suas próprias decisões. O que são os métodos? Os que estão mais popularizados atualmente, em Portugal, são os métodos para treinar o bebé a dormir — sou contra esses. Não contra os pais que os aplicam, mas sim contra as premissas por trás desses métodos.
Porquê?
O que está em causa, quase sempre, é deixar o bebé a chorar até ele deixar de pedir o que nos está a pedir. Podemos usar muitos eufemismos, podemos dizer que estamos a ensinar o bebé a dormir ou que o bebé só vai chorar porque lhe estamos a mudar os hábitos, mas isto está tudo no mesmo saco. Esses métodos estiveram muito em voga no século XX, são métodos que têm premissas de há 50 ou 60 anos, as quais não tinham em conta quase nada daquilo que hoje a ciência sabe sobre os nossos bebés. Estão associados a uma vertente em que o bebé tem de ser orientado em tudo — não estamos a falar de horários nem de ir para a cama cedo, mas de um bebé que chora no berço e em que se faz uma perspetiva de choro controlado, ou seja, em que o colo só deve ser dado à última. O que questiono não é que o bebé adormeça pacificamente com um “shh” ou uma palmadinha no rabo, mas sim a perspetiva que é dada aos pais, que afirma que os bebés devem ser ensinados a dormir por via do choro. Eu não posso nunca concordar com métodos que façam os pais sentirem-se fracos ou pouco corajosos por acudir um bebé que chora em escalada no berço.
No livro escreve que o bebé é como um manual de instruções.
A primeira coisa que devemos interiorizar é que não precisamos de saber praticamente mais nada a não ser isto: tudo no corpo do bebé e da mãe faz sentido em conjunto. Se o meu bebé chora, a tendência é para que os meus níveis de cortisol (hormona do stress) subam também. Se eu ficasse tranquila da vida enquanto o meu bebé chorava, hoje nenhum de nós estaria cá para contar a história. O choro é um sinal de alerta, logo eu fico em alerta. Eu atendo o meu bebé e eu e o meu bebé relaxamos.
Quais são as dicas para melhor interpretar um bebé?
Cada bebé tem a sua linguagem. A ideia de que o choro é a linguagem do bebé, para mim, não faz sentido. É antes a linguagem tardia, o grito de alerta. Antes dessa linguagem gritada existe muita comunicação: pode ser, por exemplo, quando um bebé começa a ficar um pouco cansado e nós vemos que já não procura a informação; alguns bebés começam mesmo a semicerrar os olhos, a virar a cabeça e, muitas vezes, os seus braços e pernas ficam mais energéticos e as vocalizações aumentam (isto em bebés com mais de dois meses)… Cada mãe saberá melhor, desde que estejam atentas.
Como devem os pais encarar o choro?
O choro é um sinal de alerta e cumpre uma função. Seria impensável partirmos do princípio que os bebés nunca vão chorar. Já o choro inconsolável é um tipo de choro que tem uma duração maior, que resiste às tentativas mais habituais de acalmar o bebé e que produz efeitos em termos de stress na família, tanto nos pais como nos bebés. Sabemos que um em cada cinco bebés tem mais episódios de choro inconsolável e que isso pode estar simplesmente relacionado com dificuldades de se ambientarem ao mundo cá fora — encontro muitos bebés em que isso está relacionado com episódios traumáticos durante o parto. O mais importante para eles, e para os pais, é encontrar uma forma de acalmá-los, de maneira a perceber a linguagem fora do choro.
Fiz muita pesquisa sobre como outras culturas veem o choro. Em muitas culturas orientais, o tempo médio de atendimento de um episódio de choro nos primeiros três meses de vida é de dez segundos. Ou seja, o bebé chora e o cuidador imediatamente atende o bebé. O mesmo estudo mostra-nos que nas sociedades ocidentais, em países como os Estados Unidos, a Holanda e o Reino Unido, mais de metade dos episódios de choro nos primeiros três meses de vida são voluntariamente ignorados. Isto não quer dizer que os pais no Bali sejam mais preocupados com os filhos do que os pais na Holanda, mas sim que temos uma conceção cultural diferente sobre o choro. Partimos do princípio — e nas sociedades ocidentais há muito esta premissa, Portugal incluído — de que se o bebé tem as suas necessidades físicas atendidas, não há motivo real para o choro.
Porque é que acha que isso acontece?
Há uma pressão enorme da sociedade para a autonomização precoce [do bebé].
Mas se o bebé acabou de nascer…
Não há conhecimento real do que é um recém-nascido humano. Temos expetativas em relação a um bebé de poucos meses que seriam compatíveis com uma criança de dois ou três anos. Às vezes tenho pais que, com um bebé de quatro ou cinco meses, dizem que ele não se entretém sozinho. O lugar de um bebé pequeno é em relação com o cuidador, é assim que ele se entretém e é assim que ele aprende sobre o mundo. Nós temos a expetativa de que o bebé se aguente sozinho. Isto é cultural.
Sendo uma questão cultural, não estamos a exigir demasiado dos nossos bebés?
Sim, sem dúvida nenhuma. Estamos a exigir demasiado dos nossos bebés. Estamos a exigir demasiado dos pais e das mães, e estes métodos de que falámos, e que criam a ideia de que todos os bebés devem dormir 12 horas, fazem com que trabalhemos com referenciais ilusórios, com expetativas que não são adequadas à natureza, fisiologia e biologia do bebé humano. Quando nós conseguimos perceber o que é um bebé humano e quais as suas intenções — algo que preocupa muito os pais, que têm medo de estar a ser enganados e manipulados [pelo bebé] –, percebemos que na realidade não há vícios nem manhas, mas sim necessidades que devem ser atendidas e que vão fazer com que o bebé fique mais regulado, equilibrado, paciente e até colaborador.
Medos, manhas, vícios… Parece que estamos a falar de educação, mas o papel educador dos pais não entra mais tarde na vida de uma criança?
Exatamente. Isso é um ponto fulcral. O papel educador dos pais está muito presente em todos nós e achamos que deve entrar em vigor logo nos primeiros dias após o nascimento. Nos primeiros meses [de vida de um bebé], os pais têm um papel acima de tudo regulador, são como que uma almofada entre o bebé e o mundo, ou seja, é por via da proteção dos pais que o bebé se vai aventurar no mundo. O bebé conta connosco para lhe darmos segurança e não precisa que lhe ensinemos a comer com faca e garfo com dois meses. Claro que vivemos com regras, mas isso é algo que virá naturalmente, mais tarde — são regras de convivência. Os pais não devem stressar logo nos primeiros meses.
Ao longo do livro parece existir uma ligação muito ténue entre o choro e o colo…
Porque é que damos colo? Porque, de certa forma, deixámos de ter pelos compridos onde o bebé se possa agarrar. Alguns colegas primatas vão agarrados às mães, as quais têm pelagem comprida. Os nossos bebés, se repararmos, têm muita tendência para se agarrar aos cabelos, à roupa, onde podem, mas têm de ser carregados. Portanto, o colo é a continuidade natural do útero. Extragestação é a altura que o bebé precisa, já fora do útero, para terminar a sua gestação — é como se a gravidez continuasse, há uma parte no útero e uma nos braços. O colo ativa hormonas e processos fisiológicos que fazem a mãe e o bebé sentirem-se bem. O colo acalma os dois. É gratuito, qualquer mãe pode dar e não tem contraindicações, ao contrário do que se possa dizer aos pais. Porque é que não usamos mais o colo? Porque temos medo e isto foi-nos inculcado a um nível tão profundo que, às vezes, fazemos trinta por uma linha para não dar colo. Não faz sentido.
Então, não há colo em excesso?
Não. O colo deve ser visto como algo que eu dou quando o bebé precisa. Às vezes, o bebé até pode estar sossegado na vida dele, mas pegar-lhe ao colo é bom para mim. O que acontece quando tenho uma mãe que está exausta? Provavelmente, ela está a carregar o bebé e a carregar muitas outras coisas também. Aí é preciso ajudar a mãe. O colo deve ser libertador, não deve ser visto como uma prisão. Muitas vezes, quando se fala do colo, fala-se no sentido de ser uma prisão, nomeadamente à noite, quando é para adormecer. Para mim não há padrão que gere mais ansiedade a um bebé, em relação ao adormecer e aos pais, do que o pousa-e- levanta que é sugerido tantas vezes. Em alguns bebés, o adormecer ao colo permite que estes se deixem entrar na noite muito pacificamente e que, depois, aceitem ser pousados sem mais despertares. A experiência de adormecer de forma tranquila, pacífica e segura vai dar um sono mais contínuo.
O que é que garante uma boa noite de sono?
Paz, segurança, níveis de cortisol diminuídos e tranquilidade. Em termos genéricos, as indicações que, à partida, serão boas para todos os bebés são: tempo de relaxamento entre o terminar o dia e o ir para a cama, isto é, estarmos com o nosso bebé ao colo para que ele sinta que a noite vai começar e que não precisa de ser assustadora e longa; assim que começa a ficar mais escuro, o ambiente dentro de casa deve acompanhar a luz solar; o bebé não deve ir para a cama demasiado cansado nem demasiado estimulado.
No sono ligeiro há, muitas vezes, microdespertares ou despestares completos. O que se diz aos pais é que, se o bebé não estiver exatamente nas mesmas condições em que adormeceu, quando acordar, vai fazer um despertar completo e vai chorar. Isto é verdade para alguns bebés, mas não para todos. Não é universal. Eu não trabalho nunca com o choro. Eu tenho de ir para lá das ideologias, caso contrário não vou conseguir ajudar os bebés.
Não acredita em ideologias?
Quando fui mãe pela primeira vez há 9 anos, não comprei livros nem fui para a internet pesquisar. Cheguei às minhas conclusões com a minha filha por experiência própria. Quando comecei a trabalhar com bebés não estava filiada em nenhuma ideologia, estava em branco. Fiz muitas formações, mas os meus grandes professores foram os bebés. Hoje em dia, estamos muito mais formatadas em tribos. Eu fui pela ciência, não quis ir por teorias, mas os especialistas com quem me decidi formar têm uma visão sobre os bebés e sobre as crianças que eu partilho. Isto não é como um clube para o qual temos de preencher requisitos. Acho que se não estivermos em branco não vamos ter a verdadeira aprendizagem do nosso bebé e de nós próprios.
Mas na maternidade todos opinam. Como pode uma mãe lidar melhor com tantas ideias, por vezes, contrárias?
É preciso percebermos que há, de facto, intenções muito válidas quando uma mãe aconselha a filha de determinada maneira, mas também temos de ter em conta que quando as amigas dão sugestões que vão de encontro àquilo que fizeram com os próprios filhos, há um desejo de validação — querem sentir que aquilo que fizeram foi (e é) o melhor possível, pelo que extrapolam para a mãe que está ao lado. Isso não tem mal. A mim preocupam-me mais os manuais de instrução em que se tornaram até os contactos entre profissionais e famílias. As pessoas saem da maternidade a sentir quase como se o bebé fosse uma bomba relógio, com instruções rígidas. Acho que a parentalidade está demasiado cheia de instruções. Uma coisa ótima é o facto de termos acesso a conhecimento científico, nomeadamente em termos de segurança, de nutrição… Depois, há áreas que são da competência dos pais e, por mais assustadoras que possam ser, nós, enquanto pais, temos que nos capacitar. Porque às cinco da manhã não é o autor do livro A ou B que está ali ao lado para dizer como fazer as coisas. Vão ter de ser os pais.
Aí entra o papel do instinto…
Claro. Se falarmos do instinto ao nível básico, todos os seres humanos o têm. Agora, nós confundimos o instinto com o ter a certeza do que devemos fazer em todos os momentos. E o instinto é uma voz de alerta, ajuda a desempatar as decisões difíceis, mas não é acordar de manhã e saber o que fazer o dia inteiro — isso já é confiança, segurança e aprendizagem. O instinto está, muitas vezes, por baixo dessas camadas sociais e culturais todas.