Do tamanho de caixas de sapatos, feitos de madeira ou cartão e com manjericos e bilhas a enfeitar. Assim eram os tronos de Santo António. Pode parecer uma memória longínqua mas, a verdade, é que a tradição nunca chegou verdadeiramente a desaparecer. Valeram-lhes os concursos organizados pela câmara municipal, o amor dos lisboetas pelo santo casamenteiro e a criatividade das crianças que nunca deixaram de pedir um “tostão”. Passados três séculos, os tronos de Santo António continuam vivos na memória dos lisboetas. E, este ano, voltaram a sair à rua.
De modo a reanimar uma tradição que, para muitos, já está esquecida, o Museu de Lisboa aliou-se à Junta de Freguesia de Santa Maria Maior e criou a Festa dos Tronos de Santo António, um desafio destinado às famílias, associações e coletividades de Lisboa. Entre os dias 30 e 31 de maio, o museu disponibilizou estruturas de tronos, que podiam ser levantadas e usadas para decoração e exposição.
“Correu muito bem, as pessoas aderiram”, disse ao Observador Pedro Teotónio Pereira, coordenador do Museu de Santo António. “Penso que é um projeto que vai ter continuidade. Espero que as pessoas vão aderindo mais”. Teotónio Pereira explicou que o objetivo da iniciativa era, acima de tudo, “retomar as tradições de Lisboa” e “relançar esta ideia dos tronos de Santo António”. “A nossa ideia foi também” criar uma oportunidade para que “as pessoas mais velhas pudessem explicar aos mais novos como é que era feito e, no fundo, criar uma relação intergeracional”, acrescentou o coordenador.
“É interessante, porque é uma marca que ficou na cabeça das pessoas e na memória coletiva. Toda a gente conhece os tronos de Santo António — os mais novos e os mais velhos. É uma tradição que se manteve em Lisboa“.
Os tronos, criados principalmente por lojistas e associações, estão expostos um pouco por toda a cidade. Cada um, à sua maneira, criou um pequeno altar dedicado ao santo lisboeta. Ao pé da porta, como manda a tradição. Sardinhas feitas de tecido, manjericos feitos de lã ou candelabros de chumbo — há um trono de Santo António para todos os gostos.
Ercílio Natálio, da Associação de Artesãos de Lisboa (AARL), nunca se lembra de ter visto um trono nas ruas. Apesar disso, não deixa de ser um entusiasta da tradição. Na AARL, todos os anos se organiza um concurso de tronos de Santo António. É assim desde 1982, data em que a fundadora da associação, Maria de Portugal, institui o concurso.
“É uma tradição de Lisboa que se ia perdendo”, garante o artesão. Apesar de não ser de Lisboa e de se ver como um “imigrante de Ferreira do Zêzere”, Ercílio Natálio não hesita em defender a tradição com unhas e dentes. “As associações deviam tomar mais iniciativas. Isto das estruturas foi ótimo”, garante. “Devia haver mais concursos”.
Para o membro da AARL, o grande problema é mesmo a falta de incentivos. A tradição dos tronos podia ser como as marchas, acredita. “Passou para os filhos e depois para os netos. Com os tronos podia ser a mesma coisa.”
Mas há quem não precise de incentivos para construir um altar a Santo António. Nalguns bairros de Lisboa, é ainda possível encontrar tronos, um caso raro de dedicação. Em Alfama ainda é assim. Todos os anos, à porta do restaurante Porta de Alfama, é construído um trono. Modesto, mas “muito moderno”, garante uma das empregadas.
Todas as noites, o santo era colocado sobre o balcão de madeira, improvisado à entrada do restaurante. Mas a animação dos foliões obrigou a que os empregados do Porta de Alfama tivessem de encontrar um lugar mais recatado para o santo. Agora, António observa a sardinhada do outro lado do balcão. “Tivemos de o tirar dali. Não lhe podíamos por flores porque as pessoas, com os copos, levavam-nas. Depois as flores andavam já não sei aonde!”
Mesmo do outro lado do estrado de madeira, as esmolas não param de chover. A bilha, colocada religiosamente aos pés do santo, já vai cheia e as festas ainda nem vão a meio. “Acho que este ano vamos ter de comprar outra. Todos os anos, no final de junho, partimos a bilha e deixamos o dinheiro na caixa de esmolas da igreja de Santo António. Porque também temos as nossas rezas para fazer”, garante a mesma empregada. “As pessoas são muito devotas, até os turistas. Deixam sempre uma moedinha.”
Para a dona Custódia, a festa de Santo António é sempre uma oportunidade de negócio. Todos os anos constrói um pequeno altar na montra da Franjarte, a última sirgaria da baixa lisboeta. “Todos os anos faço uma coisa diferente. Este ano deu-me para fazer o trono”, diz, por detrás do balcão. Apesar de saber que a câmara disponibilizou estruturas para a construção dos tronos, dona Custódia garante que a ela “ninguém lhe deu nada”. A criação deste saiu-lhe por inspiração, e não por incentivo da freguesia de Santa Maria Maior.
Numa altura em que o negócio vai de mal a pior, a lojista acredita que a criatividade é a chave do sucesso. Com a festa do santo casamenteiro à porta, a montra de dona Custódia encheu-se de santinhos emoldurados. Sempre com cordões e galões, o negócio da casa. No balcão, sob a vitrina, é ainda possível encontrar um Menino Jesus, deitado sobre uma almofada de veludo azul. São as sobras das criações de dona Custódia do Natal passado.
Uma tradição que ninguém quis que morresse
Os primeiros tronos surgiram no século XVIII, como forma de pedir esmolas para a reconstrução da igreja de Santo António, parcialmente destruída durante o grande terramoto de 1755. A cripta, com entrada pela sacristia, é tudo o que resta da igreja original, construída no local onde se acredita que terá nascido o santo.
Ao longo dos séculos, foram construídos vários edifícios para marcar o local onde terá nascido Santo António. Acredita-se que, no século XV, já existisse no local uma simples ermida. No mesmo século, D. João II mandou erigir uma igreja, que só viria a ficar pronta durante o reinado de D. Manuel I. Esta, porém, foi parcialmente destruída durante o terramoto de 1755. Do edifício original, apenas sobreviveu a cripta, debaixo da qual, segundo a tradição, ficam os escombros da casa dos pais de Santo António. As obras de reconstrução, financiadas em parte pelas esmolas recolhidas pelos habitantes, tiveram início em 1767. Estas só viriam a terminar 20 anos depois. A igreja foi oficialmente aberta ao culto em 1787.
A construção dos tronos tornou-se rapidamente popular. William Beckford, escritor inglês do século XVIII, refere a tradição no relato das suas viagens por Portugal. “Ele esteve cá nas festas de junho e descreve que Lisboa se enchia de pequenos altares, construídos à porta das casas. Todas tinham à porta um altar a Santo António. Portanto, é uma tradição que já tinha muita força no século XVIII“, explicou ao Observador Pedro Teotónio Pereira.
As crianças eram as principais entusiastas. Costumavam construir pequenos tronos, que colocavam à porta de casa. Durante o dia, tinham o hábito de andar pelas ruas a pedir “mil reisinhos” para o santo, um costume que acabaria por se tornar no “tostão ao Santo António”, ainda hoje muito popular. “As crianças continuaram com isso, mas depois começaram a usar o dinheiro para comprar guloseimas ou para queimar fogo-de-artifício”, disse o coordenador do Museu de Santo António. “Mas continua a existir esta tradição, que é também uma homenagem a Santo António“.
“Era, no fundo, o prenúncio das festas. A partir de finais de maio, começavam a aparecer os tronos a Santo António, que anunciavam as festas da cidade”.
Apesar de populares, os tronos de Santo António rapidamente caíram em desuso. No século XIX, já se dizia que a tradição estava a desaparecer. Em 1949, de modo a reavivar esta prática, a Câmara Municipal de Lisboa começou a promover concursos de tronos entre as crianças dos bairros de Alfama, Bairro Alto, Madragoa e Mouraria.
O primeiro concurso contou com 74 participações, e teve como sede a Repartição dos Serviços Culturais, localizada no Palácio Galveias, no Campo Pequeno. A avaliar as construções estiveram o vereador Arménio Cortês Pinto, o diretor dos Serviços Centrais do Município, Jaime Lopes Dias, dois etnógrafos e representantes do grupo Amigos de Lisboa e da Federação das Sociedades de Educação e Recreio.
Os tronos a concurso, construídos nas soleiras das portas e em janelas, em cima de estrados ou em bancos, foram depois expostos na via pública, junto à Repartição dos Serviços Culturais, entre os dias 12 e 13 de junho. Nos anos seguintes, o concurso alargou-se a outros bairros e foram surgindo iniciativas semelhantes, organizadas por associações e até por jornais, como era o caso do Diário Popular. O prémio era sempre pecuniário e funcionava como incentivo.
Os tronos eram por vezes obra de muitos. Crianças e adultos reuniam-se na rua e, com o apoio das coletividades, construíam altares. Os materiais usados eram variados — madeira, cartão, esferovite ou até mesmo plástico. O trono era pintado, forrado com papéis coloridos ou tecidos. Para os que tinham outras possibilidades financeiras, havia sempre a hipótese de comprar pequenas figuras de chumbo, miniaturas de castiçais e manjericos que pareciam saídas de uma casa de bonecas. Hoje em dia, já não é possível comprá-las. A sua produção foi proibida por causa da toxicidade do chumbo. Apesar disso, ainda é possível encontrá-las em alguns antiquários.
No topo do altar, estava sempre a figura de Santo António. Era baseada na sua história e nos seus milagres que se construía a decoração. “Para construir o trono, tem de se conhecer os elementos decorativos, que se ligam um pouco à história de Santo António e aos milagres”, explicou Pedro Teotónio Pereira ao Observador. “É preciso conhecer a vida do santo e as tradições que lhe são associadas. Encontramos muitas vezes nos tronos a representação do sermão de Santo António aos peixes ou elementos de outros milagres, como o da bilha”.
Mas, para Teotónio Pereira, os tronos de Santo António são, acima de tudo, “uma tradição muito lisboeta”. “Marca muito a cidade e é, no fundo, uma homenagem ao santo. O trono consegue reunir este lado mais religioso, mas também o lado mais profano das tradições associadas ao Santo António“.