“Laura”, nome fictício e sem rosto, sofre de uma depressão profunda, diz ter pensamentos suicidas desde a infância, tentou pôr termo à vida por várias vezes e, apesar de ser acompanhada por um psiquiatra desde os 21 anos, quer morrer. E vai morrer. Os médicos que avaliaram o seu caso clínico concederam-lhe a morte por eutanásia. “Não vejo a morte como sendo uma escolha. Se eu tivesse uma escolha, eu escolheria uma vida suportável. Já tentei de tudo, sem sucesso”, relatou “Laura” ao jornal belga De Morgen.

O professor Jan Bernheim, da Faculdade de Medicina Vrije Universiteit em Bruxelas, falou com o Observador. Bernheim, que é também investigador no End of Life Care Research Group da Universidade de Ghent, não foi um dos médicos que avaliou a condição de “Laura”, mas foi consultado por um dos médicos que o fez. “Fiz uma sugestão ao Dr. Thienpont, que talvez faça ‘Laura’ reconsiderar a decisão que tomou. Pelo menos por mais um tempo. Os meus estudos levam-me a crer que, em pacientes que sofrem de uma doença psiquiátrica irreversível ou quase irreversível, a mera possibilidade da eutanásia, a promessa de que a eutanásia será considerada, onde e quando for necessária, tem prevenido os suicídios e as tentativas de suicídio, sobretudo as mais violentas, ao contrário do que acontece com pacientes a eutanásia foi rejeitada”, explicou.

Em 2014, de acordo com um artigo recente da revista New Yorker, 13 por cento dos belgas que recorreram à eutanásia para pôr fim à vida não se encontravam numa situação terminal de doença. Três por cento sofriam de uma desordem psiquiátrica. É precisamente esse o caso de “Laura”, uma jovem belga de 24 anos que sofre de uma depressão grave, e cuja história o jornal belga De Morgen deu a conhecer no passado mês de junho, e a norte-americana Newsweek, no começo desta semana, trouxe para o debate o outro lado do Atlântico.

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Quando um doente está próximo da morte, é-lhe mais fácil decidir se quer ou não a eutanásia ou o suicídio medicamente assistido. Em casos psiquiátricos, como o da ‘Laura’, é mais problemático, até chocante”, recorda Laura Ferreira Santos

Nos Estados Unidos, nem de propósito, contam-se pelos dedos de uma mão os estados em que o suicido medicamente assistido é permitido por lei. Lá, ao doente só é concedida a dose letal de Pentobarbital de Sódio se os médicos concluírem que é um doente terminal e que não terá mais do que três meses de vida. Na Bélgica, por outro lado, que foi o segundo país do mundo, logo a seguir à Holanda, a autorizar o uso da eutanásia, não só a lei não faz referência às doenças terminais, como a questão da esperança de vida não se põe.

A Bélgica legalizou a eutanásia em 2002. “O paciente deve ter um quadro clínico intratável e com um sofrimento físico ou psicológico constante e insuportável, que não pode ser aliviada, e que é o resultado de uma doença grave e incurável decorrente de acidente ou doença”, lê-se na lei belga. As mais recentes estatísticas mostram que o número de casos de eutanásia tem crescido a um ritmo acelerado. Em 2013, registaram-se 1.807 mortes por eutanásia, contrastando com os 1.432 casos de 2012.

“Nem na Bélgica, nem na Holanda ou no Luxemburgo, países em que a eutanásia e o suicídio medicamente assistido coexistem, a lei não se refere apenas aos casos terminais. Mas os casos de ordem psiquiátrica sempre foram os que colocaram mais problemas nos três países a que me referi. Quando um doente está próximo da morte, é-lhe mais fácil decidir se quer ou não a eutanásia ou o suicídio medicamente assistido. Em casos psiquiátricos, como o da ‘Laura’, é mais problemático, até chocante”, recorda Laura Ferreira Santos, professora na Universidade do Minho e autora, entre outros, do livro “Ajudas-me a Morrer?”, sobre a prática da eutanásia e do suicídio medicamente assistido.

A vontade de “Laura” é consciente?

A taxa de suicídio na Bélgica, excluindo os casos de eutanásia, é a segunda mais alta da Europa. Um fenómeno que se atribui a personalidade dos belgas, sobretudo na Flandres, conhecida por “binnenvetter”, ou seja, alguém que contém as emoções no interior. “A depressão potencia o comportamento suicida e a ideação suicida. O primeiro é o resultado da segunda. Se a depressão vem acompanhada de um sofrimento psicológico muito intenso, com isolamento, com ausência de esperança, com ausência de perspetivas de vir a recuperar e ter uma vida que lhe seja agradável, se o doente se sente abandonado por todos, é evidente que o risco de suicídio é maior. Por outro lado, algumas destas depressões graves são muitas vezes acompanhadas de ideias delirantes e de alucinações. As ideias delirantes podem agravar profundamente o sofrimento do doente. E isso parece-me ser o caso da jovem belga”, explica Fernando Almeida, psiquiatra e professor no Instituto Universitário da Maia e no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar.

Mas há doentes com depressões graves, com um sofrimento intenso, com a tal ideação suicida, que “melhoram espantosamente”, lembra Fernando Almeida. “Não é uma doença incurável. O tratamento existe e pode passar por antidepressivos, por eletrochoques ou por psicoterapia. Há várias alternativas. Mas é difícil ajudar um doente que tem poucos recursos internos e externos. Os internos são a sua própria personalidade, a sua própria vontade de melhorar, e os externos são a família e os amigos, como que sendo os alicerces que tem na sociedade.”

Quando o sofrimento psíquico é grave, o doente não é capaz de decidir em consciência se quer ou não pôr termo à vida”, garante o psiquiatra Fernando Almeida

Rui Nunes, presidente da Associação Portuguesa de Bioética e professor na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto lembra que um paciente com um estado de depressão grave não pode tomar uma decisão como esta. “Até nos países que defendem a eutanásia, como a Bélgica, é exigido que o paciente esteja com capacidade para tomar a decisão de morrer. A jovem belga que pede eutanásia, pede-a por sofrer de uma doença psiquiátrica, uma depressão grave, e não por sofrer de uma doença terminal, crónica ou incurável. Não se pode discutir a eutanásia num paciente que não tem condições psicológicas para decidir. É um equivoco médico que deveria ser corrigido. Uma condição destas ‘mina’ a liberdade de um paciente na hora de decidir.”

“Quando o sofrimento psíquico é grave, o doente não é capaz de decidir em consciência se quer ou não pôr termo à vida. Mas para mim, como psiquiatra, desistir de uma jovem de 24 anos, que é moldável como todos os jovens, que tem uma vida pela frente, desistir de a tratar e de fazer algo por ela, a mim, nunca se colocaria tal hipótese”, garante o psiquiatra Fernando Almeida, e lembra: “Eu tive vários doentes com ideação suicida grave em quem, depois do tratamento, a doença desapareceu. Mas o tratamento pode ser prolongado. A jovem belga está em tratamento há três anos, não é? Não é um período que se possa dizer que é longo. É claro que quando mais tempo se passar, pior será o prognóstico. Mas insisto: ela só tem 24 anos.”

Laura Ferreira Santos não crê que haja facilitismo na hora de avaliar se a morte é a derradeira solução para um doente. “Na Holanda, por exemplo, um terço de todos os pedidos de eutanásia é recusado. Não há o facilitismo que se pensa que há. Mas a situação é mais grave. Há doentes que sabendo que a resposta é ou vai ser negativa à eutanásia, encontram maneiras de eles próprias porem termo à vida com a assistência, não da lei, mas de terceiras pessoas. Muitas escolhem morrer à fome e à sede com a ajuda de profissionais de enfermagem ou familiares.”

Também há portugueses a morrer por eutanásia ou suicídio medicamente assistido

Em 2009, citado pelo Diário de Notícias, Ludwig Minelli, o secretário-geral da Dignitas, uma associação suíça que ajuda locais e estrangeiros a recorrer ao suicídio medicamente assistido, dizia que eram sete os portugueses inscritos. A associação tem mais de seis mil inscritos provenientes de 55 países. Para entrar, tem de ser paga uma inscrição no valor de 130 euros e uma quota anual de 53 euros. Quando pretender pôr fim à vida, o inscrito tem de desembolsar perto de dois mil euros, o que já inclui os custos dos medicamentos, a cremação e o envio do corpo para o país de origem.

Contactada pelo Observador, a Dignitas recusou-se a dizer quantos portugueses estão hoje inscritos. Laura Ferreira Santos crê que já terão morrido “duas senhoras e um senhor”, mas lembra que a Dignitas não é uma “clínica da morte”. “Na Suíça há duas associações, a Dignitas e a Exit International, onde há muitos estrangeiros, entre os quais portugueses, que estão inscritos para o suicídio medicamente assistido. O que não quer dizer que quem se associa a elas esteja em lista de espera para morrer. A Dignitas, que é a mais conhecida de ambas, não é uma clínica, mas uma associação de voluntários, em que há um ou dois quartos onde é dada a beber aos doentes a substância letal. Mas o processo é moroso e só é aceite quando os doentes são avaliados por um médico.”

Na Suíça, ao contrário da Bélgica, não existe uma lei sobre o suicídio medicamente assistida. “O que existe é um consenso. O artigo 15º do Código Penal suíço diz que se alguém ajudar outra pessoa a pôr termo à vida por motivos egoístas, é penalizado. Ora, por motivos altruístas não o deve ser. E o artigo nem se aplicava a questões de doença, mas a questões amorosas e financeiras. Quando a Exit Internacional aplicou isto no cantão alemão da Suíça, percebeu-se que eram motivos altruístas, e que ninguém ia beneficiar com a morte, pelo que não foram penalizados, e consensualizou-se que era possível fazê-lo”, explica Laura Ferreira Santos.

Em qualquer dos casos [eutanásia ou suicídio medicamente assistido] o doente só tem o direito a morrer com dignidade depois de um longo processo burocrático, em que se analisam e reanalisam os seus exames médicos”, explica a Laura Ferreira Santos.

Em Portugal, por altura da aprovação na Assembleia da República do projeto de lei do PS que regula o testamento vital, em 2009, muito se discutiu o que é, e que diferença há entre o testamento vital, a eutanásia e o suicídio medicamente assistido. “O testamento vital é um avanço cultural, que é unânime, que foi aprovado por unanimidade na Assembleia da República faz três anos no dia 16 de julho, que é uma ferramenta útil e que veio auxiliar os doentes, as famílias dos doentes e todos os profissionais da saúde”, recorda Rui Nunes.

Na eutanásia é uma terceira pessoa, um médico, por exemplo, que põe termo à vida do doente. No suicídio medicamente assistido, não. “É o próprio doente que tem de ingerir a substância letal. Mas em qualquer dos casos o doente só tem o direito a morrer com dignidade depois de um longo processo burocrático, em que se analisam e reanalisam os seus exames médicos, em que é o seu caso clínico é devidamente tratado por uma comissão — e não por um só médico. O testamento vital, por outro lado, tem que ver com os tratamentos, que os doentes aceitam ou recusam, como o recurso à reanimação, o uso do ventilador, da alimentação e da hidratação artificiais, e a decisão é tomada por antecipação e com lucidez”, explica a professora da Universidade do Minho, Laura Ferreira Santos.