“Avó, aquele menino é do meu tamanho e leva um saco tão grande às costas… Porquê?”
A avó respondeu-lhe que são refugiados, imigrantes. O que é diferente de ser-se emigrante como os pais dela, bisavós dele, o foram um dia, saídos de Portugal e à procura de um lugar melhor para viver fora daqui. Manuel tem seis anos. A mãe, Jandira Crespo, diz que ele é tão atento ou mais ainda que o irmão mais velho, de 11 anos. Jandira tem 37 anos e vive em Oeiras com os três filhos, um deles com apenas um ano de idade.
Conta-nos que a pergunta que o filho Manuel fez à avó não é rara de ser ouvida lá por casa. “Ainda na sexta-feira passada falámos sobre os refugiamos. Eles questionam-se sobre o que está a acontecer. A mim, quando surgiu a fotografia daquele menino estendido na praia, morto, perguntaram-me porque razão é que aquilo lhe aconteceu.” E o que se lhes diz? “O que nós lhes explicamos é que aqueles senhores e aqueles meninos são refugiados. Os bisavós deles, meus avós, também foram emigrantes, para o Brasil e para Moçambique. É diferente, sim. Não eram refugiados. Mas isso fá-los identificarem-se com a situação. É importante que o façam. Explico-lhes que são imigrantes por causa da guerra, por terem uma opinião diferente da que é a dos seus líderes, da que é a dos seus governos, e por isso têm que procurar uma vida melhor na Europa. E eles compreendem”, explica Jandira.
Mas pode uma criança compreender, em tenra idade, o que lá se passa, no Mediterrâneo, com os refugiados? O psicólogo clínico Carlos Céu e Silva acredita que sim. “Quando as crianças são confrontadas com este tipo de imagens, há, naturalmente, uma identificação por parte delas. Uma criança a partir dos quatro, cinco anos, já consegue assimilar o conceito de morte, de miséria, de medo. As crianças interrogam-se: será que aqueles meninos podíamos ser nós? Será que nos vai acontecer o mesmo? O mais importante é a resposta dos pais. Sempre.”
A xenofobia só surge quando não há uma educação para a cidadania. E as crianças vão acabar por ter a mesma opinião que os pais.” Jandira Crespo, Oeiras
E há dois tipos de pais, explica o psicólogo: “Há os pais que explicam a situação política daqueles países, que explicam aos filhos que os refugiados têm que fugir em busca de melhores condições de vida. E há os pais que não tem uma resposta tão acertada, eu diria mesmo que é uma resposta profundamente errada, pais que estão desempregados, pais que vêm de meios desfavorecidos, que não têm uma educação que lhes permita compreender a crise dos refugiados como ela deve ser compreendida, e que, por isso, se sentem marginalizados com a chegada dos refugiados, e passam para os filhos uma certa xenofobia. Às crianças tem que lhes ser explicado o que está a acontecer. É importante que elas compreendam que este é um drama real, que não é uma invasão, que estes refugiados não vêm roubar os empregos a quem cá vive, e que é necessário humanismo para lidar com a situação”.
Jandira Crespo sabe que o que lhes diz em casa, aos filhos, é fundamental. Mas mais fundamental é o como se lhes diz. “Se os pais têm uma opinião xenófoba para com os refugiados, os filhos também a terão. É claro que há muitos pais que têm uma opinião xenófoba. Está-nos enraizado, é cultural. Não é uma questão meramente social, de classes, mas uma questão de formação. Se a têm ou não têm. A xenofobia só surge quando não há uma educação para a cidadania. E as crianças vão acabar por ter a mesma opinião que os pais. Se os pais lhes dizem que os refugiados vêm para cá retirar-lhes o conforto, que se sentem ameaçados pela vinda deles, é natural que as crianças sintam o mesmo. Em minha casa isso não existe. Está errado. Não pode nem deve existir.”
O lugar da escola e do professor na discussão da crise dos refugiados
Chama-se Not Just Numbers. É uma iniciativa da Organização Internacional para as Migrações e do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) que propõe que, nas escolas, professores e alunos discutam abertamente a problemática dos refugiados. Há exercícios práticos, vídeos, fotografias e também conceitos para compreender (apresentamos-lhe um glossário desses conceitos no final deste artigo), que lhes são disponibilizados.
A intenção é que as crianças e os alunos mais velhos, entre os 12 e os 18 anos, se envolvam nas questões da migração e do asilo a refugiados, questões que têm gerando, por ausência de informação e formação, “discriminação, xenofobia e racismo”, explica o ACNUR. “Esta compreensão pode ajudar a promover o respeito pela diversidade e encorajar a coesão social. Em particular, é necessário divulgar mais informação aos jovens, que são os decisores políticos de amanhã, mas cujas opiniões sobre migração e asilo nem sempre se baseiam em informações factuais e equilibradas”, conclui o Alto Comissariado da ONU.
Filinto Lima é professor do 1.º Ciclo, diretor do Agrupamento de Escolas Dr. Costa Matos, em Vila Nova de Gaia, e vice-presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos de Escolas Públicas. “Eu não lhe vou dizer que as escolas estão desde já preparadas, ou pelo menos a preparar algo, para explicar a crise dos refugiados aos alunos. Não estão. Mas as escolas não se vão alhear, pelo menos no agrupamento que eu dirijo, de explicá-la quando as questões surgirem – e sei que vão surgir”, explica.
Mas há, nas escolas, e desde já, disciplinas onde se expõem (ou podem vir a expor) problemáticas como a dos imigrantes e dos refugiados. “Tendo em consideração a idade dos alunos, se são do 1.º Ciclo, se são pré-adolescentes ou alunos do ensino secundário, a explicação dos professores sobre o que são os refugiados, e concretamente porque é que há refugiados no Mediterrâneo, será, naturalmente, dada de modo diferente. A explicação é a mesma, o modo é que não o é. Mas eu creio que no 2.º Ciclo, por exemplo, há a vantagem de existir uma disciplina, a de Educação para a Cidadania, que vai certamente ser útil para desmistificar tudo isto.”
É preciso classificar e clarificar os conceitos com que as crianças se deparam nos jornais, nos noticiários, em todo o lado. O que é um emigrante, o que é um refugiado, o que é ser-se clandestino ou asilado. Essa é a primeira abordagem do professor. Filinto Lima, Professor
O que se diz na escola, como se diz, é fazedor de opinião entre as crianças. “A escola é fundamental para que eles compreendem o que se passa em redor. O que eu noto, muitas vezes, é que quando lhes coloco uma questão, quando leio uma notícia ou ouço alguma no telejornal, e os questiono sobre aquilo, noto que eles já estão informados, e essa informação veio da escola e não só de casa. Os professores, aí, são fundamentais”, explica Jandira Crespo, que tem um filho no 1.º e outro no 2.º Ciclo.
O primeiro passo é o que Filinto Lima propunha: desmistificar. E elucidar. “É preciso classificar e clarificar os conceitos com que as crianças se deparam nos jornais, nos noticiários, em todo o lado. O que é um emigrante, o que é um refugiado, o que é ser-se clandestino ou asilado, todos esses conceitos. Essa é a primeira abordagem do professor. Posteriormente, e como os alunos são curiosos, mais a mais os pequenitos, a questão dos refugiados pode ser trazida para a sala aula quando se abordar a geografia, por exemplo, explicando-lhes de onde são os refugiados, para onde vão, e, naturalmente, porque razão de deslocam de país para país”, garante o diretor do Agrupamento de Escolas Dr. Costa Matos.
Mas a discussão também pode (e deve) sair da sala de aula. “Eu creio que os professores estão preparados para responder em aula às dúvidas dos alunos. Em qualquer temática que surja na ordem do dia, e não só sobre a temática dos refugiados, que, infelizmente, tem sido a temática mais presente. Os professores podem tratar os assuntos, não só em sala de aula, mas também no recreio, em ambiente informal, ou até em colóquios que as escolas organizem, e em que um refugiado possa dar o seu testemunho aos alunos. O que nós, professores, educadores, não podemos fazer é virar a cara à realidade. Não vale a pena dizer às crianças, no 1.º Ciclo, que aquele menino que deu à costa, afogado, e que veio nas notícias, estava a dormir. Isso é escamotear a realidade. É necessário, quase uma obrigação moral, explicar-lhes quais os motivos que estão na base daquelas imagens. Não desvalorizá-las.”
O psicólogo clínico Carlos Céu e Silva crê que o papel dos professores, nas aulas, por complemento à educação dos pais, é essencial para tratar com as crianças a questão dos refugiados – e quaisquer outras questões que sejam delicadas de compreender. “Qualquer criança, logo desde o 1.º Ciclo, com seis ou sete anos, já tem capacidade cognitiva e emocional para compreender as explicações dos adultos acerca destes fenómenos, como o são as migrações. Se vão compreender as explicações mais políticas? Mais económicas? Não. Não em tão tenra idade. Mas os adolescentes, sim. Tudo isto pode ser feito, nas escolas, com pedagogia, através de conversas, de exercícios práticos, fazê-lo, aos alunos, intervir socialmente, de forma descontraída. E aos professores o que se lhes pede é que tenham o conhecimento e as ferramentas para lidar o assunto, que é delicado, e sempre, sempre com uma linguagem acessível”, conclui.
A violência das imagens dos refugiados é negativa para as crianças?
“Ao longo da história, as pessoas têm-se movimentado, muitas vezes para melhorarem as suas condições de vida, para darem às suas famílias e filhos melhores oportunidades ou para fugirem à pobreza ou a perseguições, instabilidade e guerra. Mas até que ponto percebemos estas questões e por que são importantes?”, questiona o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados.
Quando as crianças se deparam com as imagens do refugiados, há sempre um primeiro impacto que é violento, que é traumático. Mas há outro problema. O constante bombardear de informação sobre refugiados tende a criar uma sociedade mais insensível, até reaccionária.” Carlos Céu e Silva, Psicólogo Clínico
Jandira não acredita que ocultar dos filhos a realidade, que desviar-lhes a atenção da violência que os jornais trazem à estampa, a que as televisões dão tempo de antena, vá fazer-lhes melhor do que confrontá-los, explicar-lhe o porquê de tudo aquilo. “É impensável ocultar o que está a acontecer. Isso não. Ocultar, não. O que nós, pais, temos que fazer é consciencializá-los, aos nossos filhos, que o que se está a passar é grave, que aqueles refugiados precisam de ajuda, para que, um dia, quando eles foram adultos, tenham a sua própria opinião, para que se tornem melhores cidadãos, para que possam dar a mão a quem mais precisar.”
Carlos Céu e Silva garante que a violência das imagens, “tantas e tantas vezes repetidas”, não é positiva nas crianças. Mas o problema da repetição é outro. “Quando as crianças se deparam com as imagens do refugiados, nos jornais ou nas televisões, tanto faz, há sempre um primeiro impacto que é violento, que é traumático. Claro que é. Mas há outro problema, talvez maior, e que quase nos passa ao lado. É que com o constante bombardear de informação sobre refugiados, informação de uma profunda crueza, de um profundo realismo, como a fotografia do menino afogado na costa do Mediterrâneo, esta insistência na repetição tende a criar uma sociedade mais insensível, até reaccionária.”
Mas estará mesmo a proliferação, talvez desenfreada, repetitiva, de notícias sobre refugiados, com imagens que são violentas, a criar uma geração de crianças indiferentes a tudo aquilo? “Não. Eles ficam impressionados com as imagens. Se me perguntar se eles ficam impressionados com o crime, com os roubos, com tudo isso que se vê na televisão e nos jornais, respondo-lhe que não. Aí, talvez por causa dos videojogos, dos filmes mais violentos que vêem, são mais insensíveis. Mas quando vêm crianças, como eles, tantas vezes mortas, sujas, subnutridas, ficam impressionados, sim”, conta Jandira Crespo.