Foi Cavaco Silva quem identificou o Tribunal de Contas como uma força de bloqueio à governação. O então primeiro-ministro utilizou a expressão para caracterizar entidades que levantavam obstáculos à sua governação, na fase final e difícil do cavaquismo.

As forças de bloqueio eram o então presidente da República, Mário Soares, e as suas presidências abertas em que alertava para problemas do país, e António Sousa Franco, presidente do Tribunal que veio a ser o ministro das Finanças do primeiro governo de António Guterres.

A escolha de Guilherme d’Oliveira Martins para presidir o Tribunal de Contas em setembro de 2005, em substituição de Alfredo José de Sousa, não escapou às críticas da oposição ao governo então liderado por José Sócrates. Oliveira Martins tinha no seu currículo recente cargos importantes nos executivos socialistas de António Guterres, onde foi ministro da Educação, da Presidência e das Finanças.

Da direita — PSD e CDS — à esquerda — PCP — levantaram-se vozes que qualificaram de pouco prudente a indicação do nome do então deputado eleito pelo PS, mas com o estatuto de independente, considerando que colocava dúvidas sobre a isenção e a independência do órgão responsável pela fiscalização da legalidade das contas públicas. O deputado social democrata, Miguel Macedo, em declarações ao jornal Público, usou as expressões “negativa e preocupante”, a propósito da escolha para o Tribunal.

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O chumbo das subconcessões de Sócrates e a morte do TGV

As dúvidas terão entretanto sido ultrapassadas. Quanto mais não seja, porque 2009, o Tribunal de Contas faz aquilo que era impensável para muitos: recusou dar visto prévio a contratos de concessão rodoviária que estavam já em execução, ou seja, já havia despesa feita. O chumbo das subconcessões rodoviárias adjudicadas pelo governo de José Sócrates, contratos que valiam centenas de milhões de euros em investimento, criou um precedente jurídico e gerou uma “mini-crise” no Estado.

Sem o visto do Tribunal, os contratos eram nulos, o Estado teria de reembolsar e indemnizar os privados pelos gastos realizados e os ganhos cessantes. Nos meses seguintes, governo, Estradas de Portugal, um batalhão de advogados e elementos do próprio TdC, reuniram até encontrar uma solução que contornasse o chumbo. Os contratos foram alterados de forma a ultrapassar as objeções do TdC, e acabaram por ter luz verde.

Um ano depois, o mesmo Tribunal que tinha validado os contratos, produziu uma auditoria com conclusões arrasadoras sobre as consequências da subconcessões para o interesse financeiro do Estado, os mesmos contratos que tinham passado no crivo da instituição. A auditoria sugere que os responsáveis pelo visto prévio teriam sido enganados.

A auditoria foi mais uma acha na fogueira das parcerias público privado (PPP), um tema escaldante dos últimos meses da governação socialista. Mas já não foi a tempo de travar os investimentos.

O Tribunal de Contas viria contudo a ser determinante em outro contrato polémico, a adjudicação do primeiro troço da rede de alta velocidade (TGV) da linha Lisboa/Madrid. Foi já no governo da coligação em 2011, que o TdC veio a recusar o visto prévio ao contrato, pronunciando a decisiva sentença de morte do TGV. O Estado ainda está a discutir a indemnização aos privados.

Ainda no capítulo das obras públicas da governação de Sócrates, destacou-se uma auditoria à Parque Escolar, já divulgada com a coligação no poder, que confirmou derrapagens nos custos e identificou pagamentos irregulares.

A “força de bloqueio” passou para outro tribunal: o Constitucional

Com o pedido de ajuda financeira, o Estado teve de apertar o cinto a todos os níveis. Havia menos dinheiro para gastar e cortou-se a fundo no investimento, Nos tempos da troika, a vigilância das contas públicas teve tutela internacional e a atuação do Tribunal perdeu algum protagonismo numa frente dominada pelo Fundo Monetário Internacional e pela Comissão Europeia.

Se a coligação PSD/CDS tivesse de eleger uma força de bloqueio, seria um tribunal, mas não o de contas. Foram as deliberações do Tribunal Constitucional que mais travaram as políticas de “austeridade” e condicionaram a governação. Ou não fosse este um período de exceção na governação nacional, marcado por medidas “extraordinárias e temporárias”.

Entre 2012 e 2014, o Tribunal Constitucional proferiu pelo menos oito acórdãos que inviabilizaram medidas da coligação de controlo das contas públicas. Os vetos mais importantes do ponto de vista de valores em causa concentraram-se nos cortes de salários da Função Público e das pensões em pagamento, e dos respetivos subsídios. A requalificação da Função Pública, que abria uma porta ao despedimento, a convergências de pensões privadas com públicas (que reduzia as reformas em pagamento no Estado), foram outras iniciativas “chumbadas”.

Ainda assim, o órgão liderado por Oliveira Martins foi deixando as suas marcas na vida política e na agenda mediática: nos pareceres à conta geral do Estado, onde vai atualizando a fatura do Banco Português de Negócios, e em algumas auditorias setoriais.

Privatizações, dúvidas sobre concessões e uma auditoria “arrasadora”

Foi neste verão, num período já perigosamente próximo da campanha eleitora, que saíram algumas das auditorias mais críticas à atuação do último Governo. No final de junho é divulgada a primeira auditoria às privatizações, um tema sensível da última legislatura, e onde são deixados recados duros à forma como foram conduzidos os processo de venda da EDP e da REN, com conflito de interesses nos assessores e a conclusão de que não foram acautelados os interesses estratégicos nas empresas de energia. 

Quinze dias depois sai aquela que porventura terá sido à auditoria mais forte contra a governação, e que incidiu sobre a ADSE, o subsistema de saúde dos funcionários públicos e pensionistas do Estado, concluindo que os beneficiários estavam a descontar em excesso para financiar o défice do Estado. As ondas de choque foram enormes e o governo anunciou que iria rever o modelo de financiamento e competências da ADSE.

Na semana anterior tinha sido conhecida mais uma decisão negativa do Tribunal para a política do governo, neste caso em matéria de privatizações. Os juízes recusam dar o visto prévio aos contratos de manutenção de comboios entre a CP e a sua participada EMEF. Os 11 contratos  asseguravam encomendas de 350 milhões de euros ao acionista privado da EMEF. O concurso de privatização acabou por ser anulado por causa da queixa apresentada pela Bombardier em Bruxelas por ajudas de Estado ilegais à empresa de manutenção ferroviária.

O Tribunal não tem poder para impedir as privatizações, pode apenas produzir auditorias sobre os processos depois das operações concretizadas.  Mas já em matéria de concessões de serviços públicos a privados, o visto prévio do TdC é indispensável para os contratos produzirem efeitos. E até agora, ainda não aprovou nenhum dos contratos de concessão dos transportes públicos em Lisboa e no Porto.

Aliás foram as dúvidas dos juízes sobre a concessão do Metro do Porto, que devolveu o contrato com pedidos de esclarecimento, que terão levado o vencedor do primeiro concurso a recuar na caução. O governo chocou a oposição ao entregar por ajuste direto a concessão, a poucas semanas das legislativas. Houve apelos diretos ao Tribunal de Conta para chumbar o contrato. Ainda não há decisão.

A renegociação das parceria público privado rodoviárias, outro tema caro ao último governo, também aguarda a luz verde dos juízes que já devolveram os primeiros contratos com pedidos de esclarecimento. Aguardam-se os próximos capítulos, já sem Oliveira Martins à frente do Tribunal de Contas, depois de dez anos a ocupar o cargo.