O governo não tomou medidas legislativas para acautelar o interesse nacional e o interesse estratégico do Estado português no quadro das privatizações da EDP e da Redes Energéticas Nacionais (REN). Na primeira auditoria às privatizações da era da troika, o Tribunal de Contas realça que não foi fixada qualquer cláusula de penalização em caso de incumprimento das condições em matéria de interesse nacional. E a lei que deveria proteger os ativos estratégicos foi aprovada três anos depois.
O grosso das falhas apontadas a estas privatizações, realizadas entre setembro de 2011 e a primeira metade de 2012, está focado nas consultorias. O Tribunal diz que o assessor financeiro contratado, a Perella, não fazia parte de lista das entidades pré-qualificadas. A auditoria aponta ainda para falhas na gestão de conflitos de interesses ao nível das consultorias, com foco no Banco Espírito Santo de Investimento (BESI) que, depois de trabalhar com o Estado na avaliação da EDP, foi trabalhar como assessor dos investidores privados que acabaram por ganhar as privatizações da elétrica e da REN.
A primeira auditoria aponta os pontos fortes e fracos (nove contra quatro) destas duas privatizações. Um dos aspetos positivos é o reconhecimento de que o preço obtido foi superior ao do mercado, sobretudo na elétrica. É ainda sublinhado que estas operações permitiram cumprir etapas iniciais importantes do programa de assistência. Por outro lado, o Tribunal alerta para o facto de o “timing imposto” à concretização das operações ter representado um “custo de oportunidade” para o Estado que teve de vender ativos subavaliados (EDP e REN tinham-se desvalorizado na bolsa) num enquadramento económico “muito negativo”, perdendo ainda dividendos futuros.
A privatização que se seguiu foi a da ANA (Aeroportos de Portugal) que permitiu ao Estado obter o maior encaixe do programa e deverá ser objeto da próxima auditoria do TdC que vai examinar todas as operações.
Onde fica o interesse estratégico?
“Não obstante os decretos de privatização da EDP e da REN e o acordo de parceria estratégica conterem referências à salvaguarda do interesse nacional, não foi prevista qualquer cláusula de penalização para o seu incumprimento, pelo que, nestes dois processos, não foram tomadas medidas legislativas que acautelassem os interesses estratégicos do Estado português após a conclusão do processo de privatização”. Este tipo de alerta também já foi feito em relação ao caderno de encargos de privatização da TAP.
O regime de salvaguarda dos interesses estratégicos só foi aprovado três anos depois. O governo justificou esta demora com o envolvimento da Comissão Europeia nos trabalhos preparatórios, o que levou a que o regime tivesse várias alterações e versões antes de ser aprovado. O tribunal não questiona só o atraso, mas também o alcance da legislação portuguesa, quando comparada com a generalidade dos regimes em vigor nos países europeus que procuram assegurar os interesses e a segurança nacional. E constata que “a postura do Estado português revela-se menos adequada, quando comparada com a de alguns países europeus que protegem claramente os seus ativos estratégicos”, onde se inclui o setor da energia.
A venda das posições do Estado na EDP e na REN até final de 2011 (os processos só ficaram concluídos em 2012) foi uma das exigências mais agressivas em termos de calendário de execução por parte dos credores. Bruxelas, em particular, foi inflexível sobre a eliminação imediata das golden shares (acões douradas) nas empresas de energia, instrumentos que tinham como missão proteger os interesses estratégico e nacional.
Consultores: contratações à margem das regras e conflito de interesses
A morosidade na aprovação do regime de salvaguarda do interesse estratégico é a primeira alínea de uma lista de pontos fracos na auditoria aos processos de privatização da EDP e da REN. Mas a maior parte das falhas apontadas pelo Tribunal de Contas centra-se na contratação de assessores financeiros do lado do vendedor e na gestão dos conflitos de interesses.
A contratação da Perella Weinberg, como consultor financeiro, foi polémica logo na altura e atacada pela oposição. A boutique financeira, criada por ex-quadros do Morgan Stanley e onde trabalha Paulo Cartuxo Pereira, foi contratada por ajuste direto pela Caixa BI, o assessor financeiro do Estado nesta operação. A ordem terá vindo de Vítor Gaspar, então ministro das Finanças, e com o acordo ou indicação de António Borges, que então era também consultor do Estado (pago pela Parpública) para as privatizações.
O Tribunal de Contas (TdC) veio agora dar razão às críticas feitas na altura pelos concorrentes portugueses, o BESI foi o mais crítico. O contrato foi feito “à margem do universo das entidades pré-qualificadas” para assessorar o Estado nas privatizações. Apesar de o consultor ter sido contratado pelo banco do Estado, as maiores censuras na auditoria vão para a Parpublica por ter consentido nesta adjudicação.
“Ao se conformar com o acordo entre o CaixaBI e a Perella, à margem do universo das entidades pré-qualificadas estabilizado pelo artº 78 da LOE (Lei de Orçamento do Estado) de 2011, a atuação da Parpública torna-se passível de censura pública”.
A Parpública remeteu a justificação da contratação para a Caixa BI, que invocou a significativa experiência da equipa e o seu curriculum em privatizações, perante a necessidade de vender depressa. Não obstante, o banco do Estado diz que a informação sobre o curriculum da equipa da Perella é confidencial.
A auditoria revela, ainda, uma informação que o governo recusou entregar ao parlamento na altura. Quanto recebeu a Perella pela assessoria às vendas na energia? Metade do valor pago à Caixa BI, o que corresponde a cerca de 10,4 milhões de euros. A assessoria financeira da Caixa BI foi, de longe, a maior despesa na fatura de consultorias com estas operações, que totalizou 28,1 milhões de euros. Por esta fase de privatização da EDP, a Caixa BI recebeu mais de 20 milhões de euros.
Do lado do vendedor e do comprador
Mas o BESI, cujo presidente, José Maria Ricciardi, telefonou ao amigo primeiro-ministro a queixar-se de ter sido afastado das privatizações em detrimento da Perella, não se fica a rir. O Tribunal de Contas diz que a contratação do BESI como consultor de grupos concorrentes à privatização da EDP e da REN (a China Three Gorges e a State Grid que vieram a vencer os processos) configura um conflito de interesses porque o banco de investimento do BES tinha trabalhado para a Parpública na avaliação das empresas para venda.
Esta prática contraria as regras do concurso de pré-qualificação para assessorias financeiras em privatizações e a auditoria conclui que a Parpública “não tomou as devidas precauções para evitar os conflitos de interesse”. O dedo é ainda apontado à holding do Estada por “falta de transparência”, ao não publicitar contratos de consultoria no portal base. O TdC coloca, assim, “reservas” à gestão dos processos de venda da EDP e da REN.
Os pontos fortes
- O modelo de privatização seguido (ajuste direto) e o encaixe foram os adequados face às condições adversas do mercado. As duas operações renderam, em termos brutos, 3.285 milhões de euros, dos quais 2.768 milhões foram usados para abater à dívida pública. Permitiram, também, desbloquear tranches do empréstimo internacional e abrir a porta do financiamento às empresas.
- A inclusão, nos decretos de privatização posteriores, da obrigação de disponibilizar toda a informação sobre as operações.
- Modelo de remuneração dos serviços de consultoria.
- Liquidação da Capitalpor, empresa criada em 2008 para deter a participação na EDP.
Pontos fracos
- Demora em aprovar o regime de salvaguarda dos interesses estratégicos.
- Falta de revisão da lista de entidades pré-selecionadas para assessoria, que é de 2007.
- Necessidade de mudar e reforçar regras da contratação de consultoria externa.
- A Comissão de Especial e Acompanhamento das privatizações deve acompanhar todas as fases do processo. Na EDP e REN, e em outras operações que se seguiram, estas comissões de fiscalização foram nomeadas em cima das decisões.
- Estabelecer exceções ao regime de indisponibilidade das ações para permitir pagamentos adicionais ao Estado.
- Insuficiência na gestão e organização dos processos de venda pela Parpública.
- Parpública não assegurou boas práticas ao nível da gestão de conflitos de interesses na contratação de consultores externos.
- Dualidade de critérios no processo de seleção de assessores. Na área jurídica, foram convidadas várias entidades, enquanto para a assessoria financeira, o contrato mais caro, só houve um convite.
- Aceitação de serviços de assessoria por parte de uma entidade não integrada na lista de pré-qualificados (Perella).