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Críticas, dúvidas, subentendidos. 9 chaves para perceber o discurso do Presidente

Este artigo tem mais de 5 anos

No discurso em que designou Passos como primeiro-ministro, Cavaco distribuiu críticas violentas, perspetivou o que viria com um Governo de esquerda - e deixou recados subtis e dúvidas. Descubra quais.

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MANUEL DE ALMEIDA/LUSA

MANUEL DE ALMEIDA/LUSA

Cavaco Silva fez um dos discursos mais dramáticos da sua história, na designação de Passos Coelho como primeiro-ministro. O alvo foi o PS – sem reservas. Mas há muitas entrelinhas que convém rever:

1. O voto nas legislativas foi pró-euro

Na comunicação ao país que realizei no dia 6 de outubro, afirmei que Portugal necessita de uma solução governativa que assegure a estabilidade política. Referi também que essa solução governativa deve dar garantias firmes de que respeitará os compromissos internacionais historicamente assumidos pelo Estado português e as grandes opções estratégicas adotadas desde a instauração do regime democrático, opções que – importa ter presente – foram sufragadas pela esmagadora maioria dos cidadãos nas eleições de dia 4 de outubro.

Cavaco Silva chamou Passos Coelho a Belém dois dias depois das eleições e nessa terça-feira fez uma declaração ao país em que revelou ter encarregue o líder do PSD de procurar um apoio mais alargado – mas com os socialistas, por estarem também de acordo com os principais compromissos do país na UE.

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Aqui, o Presidente reforça três linhas de leitura: que os votos de PSD, PS e CDS (todos pró-euro) são largamente maioritários (com 70% dos votos expressos); que só estes partidos asseguram uma solução estável (pelas mesmas razões); e que estes compromissos são a base do “regime”, tal como o conhecemos. 

2. O bloco central não se fez por causa… do PS

Os contactos efetuados entre os partidos políticos que apoiam e se reveem no projeto da União Europeia e da Zona Euro não produziram os resultados necessários para alcançar uma solução governativa estável e duradoura. Esta situação é tanto mais singular quanto as orientações políticas e os programas eleitorais desses partidos não se mostram incompatíveis, sendo, pelo contrário, praticamente convergentes quanto aos objetivos estratégicos de Portugal. (…) Lamento profundamente que, num tempo em que importa consolidar a trajetória de crescimento e criação de emprego e em que o diálogo e o compromisso são mais necessários do que nunca, interesses conjunturais se tenham sobreposto à salvaguarda do superior interesse nacional.

No discurso de dia 6, Cavaco sublinhou a necessidade de os partidos que suportam o Governo cumprirem o Tratado Orçamental, que contém metas sobre a dívida pública e o défice estrutural. Também no discurso desta quinta-feira, o Presidente diz que o essencial da estratégia para os próximos 4 anos é o compromisso com o euro. Cavaco acrescenta agora, pela primeira vez, que vê como “convergentes” os programas da coligação e do PS – pelo que não vê ‘desculpas’ para que as duas partes não tenham chegado a um acordo.

É no final da frase que se vê o subentendido: Cavaco fala de “interesses conjunturais” sem especificar, mas estes interesses são uma referência indireta às preocupações do PS em chegar ao poder (ou, no limite, até na permanência do líder do PS no Largo do Rato). Neste caso, Cavaco julga que essas razões se sobrepuseram ao interesse do país.

3. Passos porque ganhou (e porque com Sócrates foi assim)

Neste contexto, e tendo ouvido os partidos representados na Assembleia da República, indigitei hoje, como primeiro-ministro, o dr. Pedro Passos Coelho, líder do maior partido da coligação que venceu as eleições do passado dia 4 de outubro. Tive presente que nos 40 anos de democracia portuguesa a responsabilidade de formar Governo foi sempre atribuída a quem ganhou as eleições. Assim ocorreu em todos os atos eleitorais em que a força política vencedora não obteve a maioria dos deputados à Assembleia da República, como aconteceu nas eleições legislativas de 2009, em que o PS foi o partido mais votado, elegendo apenas 97 deputados, não tendo as demais forças políticas inviabilizado a sua entrada em funções.

Cavaco recupera a história dos últimos 40 anos para vincar várias mensagens: que Costa, Jerónimo e Catarina Martins não têm razão ao sugerir que ele devia nomear o líder do PS; que Passos foi o vencedor e tem direito a governar pelo voto do povo; e que ele próprio, Cavaco Silva, seguiu o mesmo exemplo com José Sócrates em 2009 – no momento em que o PS perdeu a maioria absoluta. E lá está o acrescento: nessa altura, vinca Cavaco, PSD e CDS juntos obtiveram mais lugares na Assembleia do que o PS, mas não reivindicaram em momento nenhum a formação de Governo com base nessa soma de lugares.

4. O que defendem o PCP e Bloco? E como farão?

A observância dos compromissos assumidos no quadro da Zona Euro é decisiva, é absolutamente crucial para o financiamento da nossa economia e, em consequência, para o crescimento económico e para a criação de emprego. Fora da União Europeia e do Euro o futuro de Portugal seria catastrófico (…).
É tanto mais incompreensível que as forças partidárias europeístas não tenham chegado a um entendimento quando, num passado recente, votaram conjuntamente, na Assembleia da República, a aprovação do Tratado de Lisboa, do Tratado Orçamental e do Mecanismo Europeu de Estabilidade, enquanto os demais partidos votaram sempre contra

Estas palavras vão direitinhas para o PCP e o BE, que têm nos seus programas a hipótese de saída de Portugal do euro – numa crítica estruturada à forma como está concebida e direcionada a integração económica e monetária. Aliás, nunca antes como aconteceu nesta campanha eleitoral estes partidos foram tão longe nas críticas às regras orçamentais da União com dirigentes dos dois partidos até a assumirem que Portugal fora do euro até poderia ser desenvolvido. Neste parágrafo, fica implícito que o Presidente, a aceitar numa segunda fase um Governo de esquerda, quereria bem explícito no acordo que estes dois partidos não colocarão em causa a integração no Euro – e que a sua ação política teria de o respeitar. 

E fica depois um aviso para os pilares desta pertença, todos votados na AR apenas por PSD, PS e CDS – com votos contra da esquerda. Colocarão PCP e BE em causa estes pilares? Como é que votam quando estiverem em causa leis que derivem destes documentos? A resposta (do próprio PR) está umas linhas mais à frente: 

Se o Governo formado pela coligação vencedora pode não assegurar inteiramente a estabilidade política de que o país precisa, considero serem muito mais graves as consequências financeiras, económicas e sociais de uma alternativa claramente inconsistente sugerida por outras forças políticas.

Aqui o aviso é dramático e explícito: os efeitos de um Governo da esquerda unida são piores do que um Governo PSD/CDS instável. Será “inconsistente”, pode durar pouco e pode dar mau resultado.

5. O PS fica na mão dos extremos; o pior momento para experiências

Em 40 anos de democracia, nunca os governos de Portugal dependeram do apoio de forças políticas antieuropeístas, isto é, de forças políticas que, nos programas eleitorais com que se apresentaram ao povo português, defendem a revogação do Tratado de Lisboa, do Tratado Orçamental, da União Bancária e do Pacto de Estabilidade e Crescimento, assim como o desmantelamento da União Económica e Monetária e a saída de Portugal do Euro, para além da dissolução da NATO, organização de que Portugal é membro fundador. 
Este é o pior momento para alterar radicalmente os fundamentos do nosso regime democrático, de uma forma que não corresponde sequer à vontade democrática expressa pelos portugueses nas eleições do passado dia 4 de outubro.

A crítica à solução instável acaba com o PS na mira do PR. Se os socialistas têm garantido que o acordo que está a ser negociado não põe em causa os compromissos internacionais, o Presidente mostra-se muito desconfiado.

Primeiro, explica que um governo do PS que só tem maioria com estes dois partidos fica, na prática, dependente destes em cada momento da legislatura (e cai sem o apoio destes); segundo, anota que o PS está a fazer uma mudança “dos fundamentos do regime”, fazendo uma experiência na pior das alturas; terceiro, insiste que com 70% dos votos a serem entregues a partidos pró-euro, o PS está a desrespeitar o voto de 4 de outubro.

6. Qual acordo? 

Aliás, é significativo que não tenham sido apresentadas, por essas forças políticas, garantias de uma solução alternativa estável, duradoura e credível.

Na sequência das críticas à inconsistência que vê na proposta da esquerda, Cavaco ainda deixa mais uma farpa a António Costa: a solução que lhe disse, em Belém, que estaria em condições de apresentar não traz garantias de que o PS é capaz de ter um Governo para quatro anos – aquilo que o PR pediu a Passos. E a fórmula de Costa (apoio parlamentar do BE e PCP) não é “estável” nem “credível”. E lá sobra a dúvida: se tiver que decidir sobre esta proposta, Cavaco aceita-a? Impõe condições? Admite não empossar Costa?

7. Isto vai ter consequências (e um aviso forte – e encriptado)

Depois de termos executado um exigente programa de assistência financeira, que implicou pesados sacrifícios para os portugueses, é meu dever, no âmbito das minhas competências constitucionais, tudo fazer para impedir que sejam transmitidos sinais errados às instituições financeiras, aos investidores e aos mercados, pondo em causa a confiança e a credibilidade externa do país que, com grande esforço, temos vindo a conquistar. Devo, em consciência, dizer aos portugueses que receio muito uma quebra de confiança das instituições internacionais nossas credoras, dos investidores e dos mercados financeiros externos. A confiança e a credibilidade do País são essenciais para que haja investimento e criação de emprego.

O Presidente anota que um governo que inclua o PCP e BE – e que possa aplicar políticas que ponham em causa as metas definidas – pode pôr em causa a credibilidade de Portugal – e provocar um regresso aos tempos da crise de 2010/2011, quando Portugal esteve na mira dos investidores e mercados. 

A dúvida fica no início desta parte do discurso do Presidente: o que quer dizer Cavaco Silva quando diz que é seu “dever” “impedir que sejam transmitidos sinais errados”? Hipóteses de trabalho: Cavaco Silva vai colocar condições estritas a Costa para aceitar este acordo (caso se concretize)?; admite Cavaco deixar Passos em gestão e nem dar posse a um governo de esquerda? Não há resposta – para já.

8. Agora é com os deputados (quais?)

A nomeação do primeiro-ministro pelo Presidente da República não encerra o processo de formação do Governo. A última palavra cabe à Assembleia da República ou, mais precisamente, aos deputados à Assembleia da República. A rejeição do programa do Governo, por maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções, implica a sua demissão.

O primeiro-ministro é indigitado pelo Presidente, mas a formação do Governo depende, num sistema parlamentarista como o português, da Assembleia da República – e Cavaco tem dito várias vezes que o processo está essencialmente lá (e não nele). A parte mais surpreendente desta frase do Presidente é, porém, o acrescento que faz (“ou, mais precisamente”). Cavaco quis sublinhar que a decisão não é estritamente partidária – mas da consciência de cada deputado. Deixando implícito o desafio a alguns para que desalinhem da posição do partido e permitam a Passos governar.

Para quem é a mensagem? Cavaco, claro, não diz – mas não é impossível dizer que se destina em particular aos críticos no PS de um acordo de esquerda. Alguns já se pronunciaram nesse sentido, de Sérgio Sousa Pinto a vários seguristas. À direita bastariam 9 desalinhados no chumbo ao programa de Governo. Ou algumas saídas da sala. Problema: esta é matéria de disciplina partidária – e quem a violar arrisca-se a ser expulso do partido.

9. E depois, que fará Cavaco?

É, pois, aos deputados que cabe apreciar o programa do Governo que o primeiro-ministro apresentará à Assembleia da República no prazo de dez dias após a sua nomeação. É aos deputados que compete decidir, em consciência e tendo em conta os superiores interesses de Portugal, se o Governo deve ou não assumir em plenitude as funções que lhe cabem. Como Presidente da República assumo as minhas responsabilidades constitucionais. Compete agora aos deputados assumir as suas.

Cavaco não diz que não dá posse a um futuro Governo de esquerda depois de uma moção de rejeição ao programa de Governo de Passos Coelho. O Presidente faz vários avisos, alguns até dramáticos, mas em momento algum diz que inviabilizará essa solução se assim os deputados o decidirem. Quando um Governo é derrubado, o Presidente pode dissolver o Parlamento e convocar eleições ou pode pedir a outro partido que forme Governo. Por lei, Cavaco está impedido de dissolver o Parlamento (a proibição vigora nos primeiros seis meses de uma nova Assembleia para dar mais estabilidade). Assim, só a partir de abril é que o Presidente (neste caso, o sucessor de Cavaco) poderá convocar eleições. O expectável, assim, é que Cavaco ainda dê posse a um Governo de esquerda, escolhido pelos deputados, se o Governo de Passos/Portas for derrubado – mas certezas, no discurso nenhuma transparece.

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