Estava a passar-se da cabeça. Nada, mesmo nada, corria bem. Há momentos acabara de ficar sem tudo o que lhe permitia saber onde está e deixar que os outros soubessem o mesmo. Deixara a costa para ficar apenas rodeado por mar ainda de madrugada e, horas depois, o rádio foi à vida. Antes, já o motor começara a gripar, tossindo e soluçando como uma pessoa doente, até se desligar e não haver maneira de o voltar a pegar. Pelo meio o sinal de GPS também morreu e o telemóvel, hermeticamente contido num saco de plástico para evitar males aquáticos, deixara de funcionar. Tudo o que podia correr mal, corria, e de repente Salvador Alvarenga ficava com um barco que apenas era capaz de cumprir a função básica, boiar. Estava a cerca de duas horas da costa e a última mensagem trocada com terra foi uma de desespero: “Vá lá, estou mesmo a ser jodido aqui fora!”
Tinha acabado de trocar umas palavras com o chefe do barco de fibra, com cerca de sete metros e meio de comprimento, que levara para o mar. Não estava sozinho. A bordo tinha a companhia de Ezequiel Córdoba, 22 anos, nem um dia passado no oceano. O que não tinha em experiência sobrava-lhe em físico para aguentar a vida de marinheiro, por jogar futebol perto de Chocohuital, praia da província de Chiapas, costa sudoeste do México, onde se fizeram à água.
O objetivo era ir à pesca do tubarão, e entre peixe para servir de isco e espólios da pescaria, os quase 500 quilos de peixe que já tinham a bordo tiveram que ir borda fora. O barco estava demasiado pesado e instável com as ondas e a ventania que o balançavam.
Sem rádio, telemóvel, GPS e motor, ambos cansaram os músculos e membros a contrariarem a água que entrava no barco. Salvador Alvarenga começou a desesperar. Furioso, pegou num arpão e usou-o para, repetidamente, bater no motor do barco. Mais energia gastou depois, quando atirou o aparelho de rádio e o de GPS para a água. Estava a ver a vida negra e a perder a cabeça por ver que nada o ajudava a torná-la mais clara. Sabia que havia mais ou menos 80 quilómetros entre eles e a costa, mas não fazia ideia de como fariam para a alcançar. Estavam em novembro de 2012.
Em janeiro de 2014, quatrocentos e trinta e oito dias (sim, 438) e mais de 12.500 quilómetros depois, uma versão de Salvador quase desprovida de músculo, sem força no corpo para se aguentar em pé, pele esturricada pelo sol e barba indistinguível do cabelo, chegava ao atol de Tile, nas Ilhas Marshall, arquipélago da Micronésia. Desidratado, subnutrido e sozinho. É a história de sobrevivência que se passou nos 14 meses que houve pelo meio que é agora contada no livro “438 dias”. Tudo acabou quando Russel Laikidrik e a mulher, Emil Libokmeto, viram desde o quintal de casa um homem em tudo semelhante à personagem que Tom Hanks interpretou no filme “O Náufrago” (2000). E muitas razões há para se fazer esta comparação.
Após largarem da costa mexicana, e quando já nada tinham para manobrar o barco, Salvador e Ezequiel tiveram que lidar com cinco dias da tempestade. Quando já pescavam com as próprias mãos e regozijavam quando a sorte lhes dava uma tartaruga para variarem a dieta, as reservas de água esgotaram-se. Beberam a própria urina enquanto renunciavam à tentação de bebericar os milhões de litros de água salgada que os rodeava. Apenas ao 14.º dia sem avistarem o céu lhes deu água doce, que colecionaram com baldes, alguidares e sacos de plástico. Comiam tudo cru: peixe, tartarugas e até as aves que conseguiam apanhar. Conversavam, muito e a toda a hora, não deixavam o outro esmorecer na luta pela sobrevivência.
Mas, com dois meses contados à deriva, Ezequiel Córdoba adoeceu. Além do corpo se ressentir da carne crua que recebia, o mexicano perdeu motivação e, sobretudo, esperança, como conta o repórter do The Guardian que também serviu de autor do livro. Um dia, Salvador acordou assustado com os gritos que Ezequiel disparava: “Vou morrer! Vou morrer! Vou morrer!”. Momentos depois entrou em convulsões e o corpo deixou de ter vida.
A mente de Alvarenga aprisionou-o depois em devaneios e alucinações que o colocaram a falar sozinho, a encenar conversas com o falecido companheiro. Só seis dias volvidos é que o salvadorenho atirou o corpo do mexicano ao mar. “Pediu-me para contar à mãe dele que estava triste por não se poder despedir e por ela não poder cozinhar mais para ele. Que o devia deixar ir porque tinha ido com Deus”, contou, mais tarde.
Contou porque sobreviveu e não sucumbiu ao mais fácil. Renunciou sempre à hipótese de acabar com a própria vida — pois a mãe sempre lhe dissera que quem cometia suicídio não acabava no Céu — e não desesperou com os cerca de 20 cargueiros que avistou, ao longe, e as cerca de 20 vezes em que ninguém o viu a esbracejar e a gritar por ajuda. No dia em que as correntes e a sorte o levaram às Ilhas Marshall mal se aguentava em pé quando chegou à praia. “Peguei numa mão cheia de areia e parecia que estava a agarrar num tesouro. Estava totalmente destruído e magro como uma tábua. A única coisa que me sobrava eram as entranhas e os intestinos, mais a pele e os ossos. Os meus braços não tinham carne”, admite, no livro. Mas estava a salvo.
Os dias que passou nas Ilhas Marshall chocaram-no. Ao início não fitava as pessoas nos olhos, escondia a cara, mostravam o quão órfão os 14 meses à deriva no mar o deixaram de capacidades sociais. Quase tudo o chocava. Tinha medo do mar, das pessoas e só a custo entrou no barco que o levou à capital do arquipélago, onde foi hospitalizado. Centenas de jornalistas voaram para o território e Salvador Alvarenga chegou a colar um papel na porta do quarto do hospital, a implorar que o deixassem em paz.
Os governos de El Salvador e do México — o pescador emigrara do primeiro para o segundo país anos antes, no que julgara ser uma escala na viagem até aos EUA — trabalharam juntos para o tirarem dali. Muitos se escandalizaram com a sobrevivência de Salvador, outros ergueram o sobrolho e ousaram desconfiar da sua história. Foi por isso que Alvarenga chegou ao ponto de ter de se submeter a um teste detetor de mentiras. Passou semanas e meses com pavor de voltar a tocar na água do mar e a passar noites na companhia de uma luz de presença, para fugir da memória da escuridão das noites sem lua que viveu perdido no Oceano Pacífico. Foram 438 dias como náufrago, grande parte deles solitários.