É um dos pontos mais surpreendentes do despacho de acusação dos Vistos Gold e relaciona-se com um tema sensível nestes anos de crise económica: as relações entre Portugal e Angola.
A investigação do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) detetou duas situações irregulares que envolvem António Figueiredo, ex-presidente do Instituto de Registos e Notariado (IRN), e o empresário angolano Eliseu Bumba:
- A alegada manipulação do protocolo de cooperação na área da Justiça entre Portugal e Angola que terá levado a um acordo entre Figueiredo e Bumba para o pagamento de 1,2 milhões de euros. Acordo este que estará na origem do crime de corrupção para ato ilícito que é imputado ao ex-presidente do IRN e ao empresário angolano. Este acordo tinha como objetivo a elaboração de um projeto de revisão dos códigos dos diversos registos (civil, comercial, predial e automóvel) e do notariado de Angola.
- A assinatura, no início de 2014, de um contrato entre o escritório ACPCP – Advogados Associados e a Merap Consulting, de Eliseu Bumba, avaliado pelo DCIAP entre 300 a 400 milhões de euros para a modernização da justiça angolana. Este contrato não foi alvo de avaliação penal por parte do DCIAP porque a sua jurisdição diz apenas respeito a factos que ocorreram no território nacional.
Explicando em pormenor.
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O acordo de António Figueiredo
Os ministérios da Justiça de Portugal e de Angola assinaram a 11 de fevereiro de 2013 um protocolo de cooperação que visava essencialmente a “troca de experiência e de informações entre peritos” na elaboração de leis e outros textos jurídicos e da formação de quadros. Isto é, Portugal comprometeu-se a ajudar a reformar o edifício jurídico da República de Angola e a promover na formação dos quadros da justiça daquele país. Tudo boas intenções entre dois países amigos, com o custo zero dos serviços e know-how colocados à disposição do governo angolano a servir como prova de amizade.
Custo zero? De acordo com os procuradores do DCIAP, António Figueiredo terá manipulado esse protocolo no sentido de recolher alegados ‘pagamentos por fora’ por via de um acordo que estabeleceu com o empresário Eliseu Bumba (que também é descrito pelo MP no despacho de acusação como tendo sido secretário do Consulado Geral de Angola em Lisboa).
Bumba terá acordado pagar a Figueiredo a quantia de 1,2 milhões de euros pela elaboração do projeto de revisão dos códigos dos diversos registos (civil, comercial, predial e automóvel) e do notariado de Angola. Isto é, segundo o DCIAP, o ex-presidente do IRN e o empresário angolano ter-se-ão aproveitado do protocolo estabelecido entre os dois países para acordarem negócios privados que, segundo o DCIAP, corresponderão a um ato de corrupção. Porquê? Porque António Figueiredo estava envolvido na execução do protocolo enquanto alto dirigente da administração pública portuguesa. Grosso modo, e de acordo com a acusação, Figueiredo terá exigido ser pago a título pessoal pelo trabalho que os funcionários do IRN e outros profissionais jurídicos iriam desempenhar no âmbito desse protocolo.
A concorrência de Rangel
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O interesse de António Figueiredo no negócio da produção legislativa de Angola levou-o a estar atento a concorrência. Foi nesse contexto que o ex-presidente do IRN percepcionou Rui Rangel como um concorrente. Isto porque o juiz desembargador, segundo o DCIAP, será o autor real do livro “Código de Registo Civil e Legislação Complementar, Comentado e Anotado” assinado por Eliseu Bumba, Isabel Rocha Almeida e Maria Assunção Viegas. Rangel deslocou-se mesmo a Luanda em junho de 2014 para apresentar o livro na presença de Rui Mangueira, ministro da Justiça de Angola. O alegado facto da viagem e estadia de Rangel e do seu filho terem sido pagas pelas empresas de Eliseu Bumba valeu-lhe uma participação disciplinar para o Conselho Superior de Magistratura.
Para tal, foram essenciais as sociedades Merap Consulting, que representava o Ministério da Justiça de Angola na execução do protocolo estabelecido com Portugal, e a Lusomerap, filial em Portugal da empresa angolana. Ambas eram geridas por Eliseu Bumba.
O DCIAP, contudo, só conseguiu detetar uma pequena parte do dinheiro que alegadamente terá sido entregue por Bumba a Figueiredo: cerca de 100 mil euros que o ex-presidente do Instituto dos Registos e Notariado terá alegadamente depositado nas suas contas bancárias.
Até as viagens e estadia em Luanda dos técnicos do IRN que ministraram cursos de formação a colegas angolanos, e que deviam ser integralmente suportadas pelo Estado angolano, terão dado origem a situações censuradas pelo DCIAP. Porquê? Porque António Figueiredo prometia o pagamento de pocket money que extravaza, segundo a acusação, a fronteira e o valor da simples ajuda de custo pelas seguintes razões:
- porque era pago em dinheiro vivo devidamente acomodado em envelopes e entregue por funcionários da Merap de Eliseu Bumba;
- E porque o valor entregue variava entre os 2.000 e os 5.000 dólares.
Aliás, segundo o DCIAP, Figueiredo terá aliciado os funcionários do IRN precisamente com os valores dessas ajudas de custo.
De acordo com a acusação do DCIAP, Figueiredo alegadamente “promovia e facilitava, também, ao abrigo da cooperação entre os Estados, a deslocalização para Angola de funcionários do IRN, consigo conluiados, em troca de vantagens pecuniárias a que não teriam direito” com o alegado “objetivo real de trabalharem para a Merap, visando serem links de captação de informação e facilitação de determinados contactos essenciais para a prossecução dos seus interesses comerciais”.
António Figueiredo, segundo o DCIAP, também angariava outros negócios para as empresas de Eliseu Bumba, com o alegado objetivo de cobrar uma comissão sobre o mesmo – “ou com a promessa de mais tarde lhe ser cedida parte do capital social ou lucros dessas empresas”, lê-se na acusação.
Tudo isto levou o DCIAP a fazer uma dura censura da atuação do ex-presidente do IRN:
António Figueiredo, através destes esquemas, mostrava uma avidez por dinheiro e propunha-se fazer todos os negócios possíveis em Angola, na perspetiva de que Angola era uma mina e que tinha que arrebanhar por todo o lado e armazenar o tempo todo, mercadejando a violação dos deveres inerentes às funções públicas que exercia como primeiro dirigente do IRN”, lê-se no despacho de acusação.
Contactado pelo Observador, Rui Patrício , advogado de António Figueiredo, afirmou: “Agora que cessou o segredo e a defesa pode ter acesso ao processo e iniciar algum contraditório, vamos analisar tudo com atenção e decidir o quando e o como da defesa”.
O Observador tentou contactar Eliseu Bumba mas sem sucesso.
2. O acordo de 300 milhões de euros para a modernização da Justiça angolana
Pelo meio, algo mais saltou à vista dos investigadores: um contrato, que não foi alvo de avaliação e censura penal por parte do DCIAP, mas que contém valores elevados. Trata-se de um acordo feito entre a Merap Consulting, uma sociedade de Eliseu Bumba, e o escritório ACPC – Advogados Associados, por um valor que se situa entre os “300 e os 400 milhões de euros”, segundo o despacho de acusação do DCIAP.
O escritório ACPC, um dos mais importantes de Luanda, terá sido contratado no início de 2014 pelo Ministério da Justiça de Angola para realizar o mesmo trabalho que já tinha sido acordado com António Figueiredo: projeto de revisão dos códigos dos diversos registos (civil, comercial, predial e automóvel) e do notariado. Com este contrato, o escritório ACPC ultrapassou Eliseu Bumba como interlocutor privilegiado de Rui Mangueira, ministro da Justiça de Angola, mas o mesmo não terá posto em causa o acordo entre Bumba e Figueiredo, segundo o DCIAP.
Quem são os sócios do ACPC - Advogados Associados?
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Este escritório tem origem em sociedades que foram lideradas por Carlos Feijó (ex-ministro de Estado e Chefe da Casa Civil do presidente José Eduardo dos Santos) e por Raul Araújo (atual juiz do Tribunal Constitucional de Angola, coordenador da Comissão de Reforma da Justiça e do Direito) e ex-bastonário da Ordem dos Advogados entre 2002 e 2004) e por Edeltrudes Costa (atual ministro de Estado e Chefe da Casa Civil do Presidente da República). Feijó já saiu da sociedade que chegou a ter o seu nome, enquanto que Araújo e Costa têm a ligação à ACPC suspensa em virtude dos cargos públicos que exercem.
Bumba, lê-se no despacho de acusação, ficou como prestador de serviços do escritório ACPC através da ‘sua’ Merap Consulting, tendo assinado um contrato com aquela sociedade de advogados que alegadamente lhe garantiu o “controlo da execução do plano [de revisão dos códigos], atuando o ACPC em representação do Ministério da Justiça angolano em todo o processo”. Em troca, a Merap receberia a “quantia de 150.000.000.00 Kwanzas, ou seja, o equivalente a 1.000.000 euros”, lê-se no despacho de acusação. Tal valor seria pago em quatro tranches:
- 15% na assinatura do contrato (sensivelmente 150.000 euros)
- 30% aquando da compilação e diagnóstico do direito aplicável (sensivelmente 300.000 euros)
- 20% aquando da apresentação da versão harmonizada das propostas (sensivelmente 200.000 euros)
- e os restantes 35% aquando da apresentação da versão final das propostas legislativas (350.000.00 euros).
Este contrato, enfatizam os quatro procuradores responsáveis pela acusação do caso vistos Gold, fazia parte de um plano mais geral de aconselhamento na elaboração de uma política de reforma geral do setor da Justiça em Angola “que foi contratualizado com a Merap, em moldes desconhecidos, e que tinha como contrapartida para esta 300 ou 400 milhões de euros”, lê-se na acusação do DCIAP que o Observador revelou em exclusivo esta terça-feira.
Refira-se que o projeto de modernização da justiça angolana está igualmente a cargo da Comissão de Reforma da Justiça e do Direito, nomeada em 2012 pelo Presidente José Eduardo dos Santos. Este organismo presta contas ao Ministério da Justiça de Angola, tendo como coordenador Raul Araújo, sócio fundador da primeira sociedade que deu origem ao escritório ACPC e atual juiz do Tribunal Constitucional de Angola.
Raul Araújo ficou conhecido em Portugal quando criticou em 2014 a reforma do mapa judiciário do governo de Passos Coelho por ter provocado a “anarquia” em território nacional.
O escritório ACPC – Advogados Associados, os seus advogados e Raul Araújo não são visados pela investigação do caso Vistos Gold, não sendo suspeitos da prática de qualquer crime. A jurisdição do DCIAP diz respeito apenas a factos que ocorreram em território nacional.