Cândida Ventura morreu esta madrugada no Hospital de Portimão, na sequência de problemas respiratórios. Tinha 97 anos, muitos dos quais vividos na clandestinidade, nos anos em que foi funcionária e dirigente do PCP, nas décadas de 1940 e 1950. Depois de ter sido presa pela PIDE em 1960, saiu em liberdade condicional em 1963, tendo saído do país e ido viver para a antiga Checoslováquia, onde passou a representar o partido. Foi aí que assistiu, vivendo por dentro, a “Primavera de Praga” e a posterior invasão do país pelas tropas do Pacto de Varsóvia. Pouco depois do 25 de Abril, de regresso a Portugal, saiu do PCP e, em 1984, escreveu “O socialismo que eu vivi“, um livro marcante onde relata a sua experiência e denuncia a opressão que caracterizava os regimes comunistas.

A edição de 1984 de "O socialismo que eu ivi"

A edição de 1984 de “O socialismo que eu vivi”

O corpo de Cândida Ventura será cremado em Lisboa, devendo as suas cinzas ser depois lançadas ao mar do Algarve. Por vontade da própria, não haverá qualquer cerimónia fúnebre.

Primeira mulher a chegar ao Comité Central

Cândida Ventura nasceu em Moçambique, a 30 de junho de 1918, na então Lourenço Marques, mas a sua família regressaria pouco tempo depois a Portugal, indo viver para o Algarve. Filha de uma professora primária e com o pai a trabalhar nas Termas de Monchique, veio estudar para Lisboa com apenas 11 anos, primeiro no Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho, depois na Faculdade de Letras. Seria nessa altura que, aos 19 anos, aderiu ao PCP, tendo desenvolvido atividade política e associativa na Universidade de Lisboa e, depois, na de Coimbra, onde completou a licenciatura. É nesses anos que conhece Álvaro Cunhal, com quem trabalha diretamente entre 1937 e 1938, nomeadamente no jornal O Diabo, nesse tempo uma publicação ligada à resistência anti-salazarista. É também nessa época que convive com figuras como Vitorino Magalhães Godinho, a primeira pessoa que a introduziu ao marxismo, ou Piteira Santos, com quem de resto se chegaria a casar, numa união que durou menos de um ano.

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Pouco tempo depois de terminar a licenciatura, em 1943, mergulhou na clandestinidade como funcionária do partido. Em 1946 tornou-se na primeira mulher a ascender ao comité central depois da reorganização do PCP, sendo da sua responsabilidade a publicação clandestina 3 Páginas, destinada às camaradas das casas clandestinas do partido.

É nessa condição de dirigente do PCP que, depois de um processo interno em que foi acusada de trabalho fracionista, obrigada a uma longa autocrítica e despromovida, sendo depois reabilitada, visita pela primeira vez a União Soviética no final da década de 1950. Ao passar primeiro por Praga, encontra-se aí com um líder histórico do PCP, José Gregório, que a apresenta a Arthur London, uma das vítimas das purgas estalinistas de alguns anos antes.

Em 1960, poucos meses depois da fuga de Peniche de Álvaro Cunhal e numa altura em que manifestava reservas às mudanças de linha política que este estava a promover, é presa em Lisboa por uma brigada da PIDE. Submetida a torturas brutais (como estava grávida, acabou por abortar), teve um comportamento exemplar e acabou por ser condenada a cinco anos de prisão, seria libertada em 1963 por motivos de saúde, saindo então do país e indo viver para a Checoslováquia, onde representava o PCP na redação da publicação doutrinária do movimento comunista, a “Revista Internacional – Problemas da Paz e do Socialismo”.

É assim que conhece os dirigentes que protagonizariam a tentativa de dar um “rosto humano” ao socialismo, iniciando o processo de abertura que ficaria conhecido como “Primavera de Praga”. Torna-se então amiga de Alexander Dubček, o líder dos comunistas checoslovacos que acabaria por ser afastado do poder pelos tanques do Pacto de Varsóvia, que invadiram o país em agosto de 1968, acabando abruptamente com a esperança de reformar o comunismo por dentro. Como mais tarde contaria no livro autobiográfico “O socialismo que eu vivi“, é nessa altura que rompe afetivamente com aquela que fora a causa de toda a sua vida, uma rutura que só formalizaria já em Portugal, em 1976.

Cândida Ventura tornaria a sua dissidência pública em 1981, num comício de apoio ao povo polaco por altura da revolta do Solidariedade, o movimento sindical que começou em Gdansk e abalou os alicerces do regime.

Uma dissidente no movimento comunista

Em todas as dissidências comunistas há o momento em que se começa a ter dúvidas. No caso de Cândida Ventura é relativamente fácil localizar esse momento: a sua viagem em 1958 à União Soviética com passagem por Praga. Sintomaticamente, no seu livro, o capítulo que relata essa viagem chama-se “As grandes revelações” e é de crer que a militante que abraçara tão jovem a fé comunista estivesse, nessa altura, mais sensível para os problemas de funcionamento dos partidos comunistas e dos países socialistas. É que ela mesmo acabara de passar por um processo de purga interna, sob acusação de fraccionismo, sendo reabilitada depois da denúncia, no XX Congresso do PCUS que se realizou em 1956, dos crimes do estalinismo.

Um dos momentos chave dessa viagem é o encontro com Arthur London, de quem se tornaria amiga e que muita anos depois prefaciaria o seu livro. Vale a pena recordar o que ele aí escreveu (há uma 3ª edição de “O socialismo que eu vivi” de 2012, da Bizâncio, que ainda está disponível no mercado):

“Um dia de Maio de 1958 [José Gregório] apresentou-nos uma jovem companheira em trânsito para Moscovo: “Uma excelente militante, membro do Comité Central… Ela ficará feliz por vos conhecer”, disse ele. Revejo muito bem aquela quem durante muito tempo nós chamávamos Catherine, pequena, delicada e loira, cuja silhueta juvenil se destacava na entrada do apartamento. Alonso (era assim que chamávamos a José Gregório) tinha-lhe certamente falado do meu drama, pois revejo ainda o olhar marejado de lágrimas, comovido, condoído, com que me envolveu no momento em que me apertava a mão”.

O laço que então se estabaleceu duraria até Arthur London morrer em Paris, numa casa por onde Cândida Ventura passaria muitas vezes, fortalecer-se-ia sobretudo durante os anos em que London e outros dirigentes comunistas como Dubček acreditaram na possibilidade de reformar o comunismo e criar um socialismo de rosto humano.

A ligação próxima de Cândida Ventura aos protagonistas da “Primavera de Praga” seria de resto reconhecido recentemente, a 13 de Novembro de 2009, quando foi homenageada e condecorada em Bratislava, numa cerimónia de comemoração do 20º aniversário da independência da Eslováquia. Foi assim que a Fundação Alexander Dubček justificou a condecoração que então lhe atribuiu:

A medalha é concedida [a Cândida Ventura] pelo apoio efectivo ao movimento de regeneração de 1968, na Checolosváquia, pelo apoio à política de reformas de Alexander Dubček, e pelo esforço de conservação do seu legado e das suas ideias humanistas e de solidariedade na consciência dos cidadãos europeus e do seu Portugal natal. Com gratidão e consideração.”

A dissidência não é, contudo, um processo fácil ou linear, sobretudo quando se acaba por estar prisioneiro de um passado, de um partido e de um exílio. E mesmo quando esta acaba por ser assumida no regresso a Portugal, num desafio directo a Álvaro Cunhal e à sua liderança, o PCP faria tudo para isolar Cândida Ventura, tendo conseguido mesmo que a sua família algarvia se afastasse de alguém que apresentavam como “traidora”.

Foi nestas circunstâncias difíceis, por vezes de enorme isolamento, que Cândida Ventura viveria os seus últimos anos, num pequeno apartamento em Portimão.