No dia 7 de janeiro de 2015 o mundo ficou de olhos postos em Paris. Mais concretamente no número 10 da Rue Nicolas-Appert e na redação do jornal satírico Charlie Hebdo. Nesse dia, ao fim da manhã, um Citröen C3 preto parava no meio a rua e dois homens de cara tapada e armados com armas de assalto entraram no número 6. Era a porta errada. Queriam a redação do Charlie Hebdo e depressa corrigiram o erro. Entraram e mataram 12 pessoas ferindo outras 5. Entre as vítimas mortais estão o publisher do jornal, Stéphane Charbonnier, três cartoonistas – Jean Cabut, Georges Wolinski, e Bernard Verlhac e o escritor e economista Bernard Maris.

As autoridades tinham sido, entretanto, alertadas para o massacre. E quando os terroristas saíam da cena do crime um carro da polícia bloqueava-lhe a saída. Mas não os travou. Os atacantes abriram fogo, enquanto algumas testemunhas fotografavam e filmavam a troca de tiros. Os polícias saíram ilesos mas tiveram que abrir caminho.

HORIZONTAL, MEDIA, PRESS, SATIRICAL PRESS, NEWSPAPER, TERRORISM, TERRORIST ATTACK, SHOOTOUT, TERRORIST ACTION, CRIME, CRIME AGAINST THE PERSON, TUERIE, MURDER, STREET, CAR, FIRING POSITION, MURDERER, WEAPON, ISLAMISM, ISLAMIC JIHAD, JIHADIST,

À saída da redação do Charlie Hebdo os atacantes trocaram tiros com um carro da polícia que tinha, entretanto, chegado ao local

Outra sorte teve um outro polícia, Ahmed Merabet. Na fuga, o Citröen C3 parou a meio do caminho para um dos ocupantes sair do veículo e iniciar outra troca de tiros com Ahmed, que seguia no passeio. Foi ferido, caiu no chão, acabando por ser morto à queima-roupa. Tudo isto ficou registado em vídeo, numa das imagens que mais chocaram o mundo. Subiam para 13 as vítimas mortais.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Mais tarde os terroristas roubaram outro carro, um Renault Clio cinzento, e desapareceram. Paris ficou em alerta máximo e foi lançada uma enorme operação de caça ao homem com um dispositivo adicional de 500 polícias nas ruas da capital francesa. Terminava assim o dia 7 de janeiro de há um ano. Mas não terminava aqui a odisseia de terror por terras gaulesas.

E depois do adeus

Em 2006 o jornal satírico satirizou Maomé republicando cartoons de um jornal dinamarquês. As ameaças de violência e de morte começaram a ser habituais. Mas nunca ninguém pensou que se iriam concretizar.

No dia 7 os atacantes ligados à Al Qaeda queriam acabar com o Charlie Hebdo – em resposta por ofenderem a sua religião. A resposta que o mundo deu a esta tentativa de assassinato de um meio de comunicação foi tornar-se nele próprio (o slogan “Je suis Charlie” correu o globo). O jornal que antes esteve perto de fechar as portas estava agora nas bocas do mundo, e o escrutínio perante qualquer trabalho dos seus cartoonistas não parou de aumentar.

Um ano depois, a circulação das publicações atingiu níveis recorde aumentando dez vezes. Mas terão sido as mortes e o trauma dos seus trabalhadores um preço que valeu a pena pagar? A resposta tem sido constantemente dada pelos sobreviventes – e é obviamente ‘não’.

Um milhão de impressões assinala a edição do primeiro aniversário da tragédia. Como sempre a capa é polémica. E merece a condenação do Vaticanopor mostrar um Deus assassino que um ano depois “continua em fuga”.

Como diz o Telegraph, o Charlie Hebdo passou a ser um nome familiar a toda a gente. O semanário que registava o número de vendas abaixo dos 30 mil exemplares, regista agora mais de 180 mil assinantes e distribui pelo menos 100 mil cópias nas bancas, com uma tiragem cerca de 10 mil revistas para fora de França.

No entanto a repentina subida de vendas e de receitas iniciaram algumas disputas internas. Alguns exigiam que todos os funcionários se tornassem acionistas com percentagens iguais. Os gastos com segurança e com a mudança para escritórios altamente vigiados, de que até o endereço é secreto, deixaram outros desconfortáveis e com dificuldades de adaptação a uma vida cercada por escoltas policiais e guarda-costas.

Ao Telegraph Patrick Pellou, um colunista do Charlie Hebdo, explica que tiveram “ameaças de morte durante anos e pensámos que iriam parar (depois do ataque), mas não pararam. Por outro lado, aumentaram”.

Ameaças que se ficarão a dever à continuidade das capas polémicas e controversas ao longo deste ano de ressaca do trauma. Vários exemplos, o primeiro dos quais a capa no rescaldo da morte da criança síria Aylan Kurdi, cuja fotografia do seu corpo estendido à beira-mar numa praia turca emocionou e chamou a atenção do mundo para o problema dos refugiados.

Aylan surge sob o título “tão perto do objetivo” e ao lado de um cartaz publicitário de fast food.

Nesta outra capa um homem, que aparenta ser Jesus Cristo, aparece ao lado de uma criança afogada e com o seguinte texto: “A prova de que a Europa é cristã. Os cristãos andam sobre a água. As crianças muçulmanas afundam.”

O escrutínio global a que o Charlie Hebdo foi submetido deixa o mundo em expectativa para conhecer a próxima publicação aquando de um acontecimento mediático. Tudo isto leva a críticas, elogios, discussão ou até, e como revelou Patrick Pellou, ao aumento das ameaças de morte.

Por exemplo, todos queriam conhecer a reação do jornal satírico aos atentados do último dia 13 de novembro em Paris e que vitimaram 130 pessoas. Apenas alguns meses depois do ataque ao jornal, o terror voltava à sua cidade. Foi esta:

charlie hebdo 13 de novembro

A capa do Charlie Hebdo no rescaldo dos atentados de Paris no dia 13 de novembro de 2015

Na edição que assinala o primeiro aniversário dos ataques à redação do jornal, o editor Laurent Sourisseau, conhecido como Riss, escreveu um editorial que resume um pouco de tudo isto.

Começando por dizer que “no dia 7 de janeiro de 2015, por volta das 11h30 da manhã, algo muito especial aconteceu”, Riss explica que quando foram publicados os cartoons de Maomé em 2006 “ninguém pensava verdadeiramente que um dia terminaria em violência. É impensável para a religião matar jornalistas em França no século XXI”. Afirmando depois que desde a sua fundação, em 1970, o Charlie Hebdo sempre teve uma existência frágil devido à sua precariedade financeira, depois do ressurgimento em 1992 após 12 anos de portas fechadas.

Depois do ataque no ano passado, o editor diz que muitas pessoas “olharam para nós como se fôssemos zombies” mas a equipa continuou determinada para não deixar que “dois pequenos tontos com capuzes acabem com o trabalho das nossas vidas”.

O texto termina depois garantindo que “as convicções dos ateus e das pessoas seculares podem mover ainda mais montanhas do que a fé dos crentes”.