A União Bancária e a Nova Fronteira da Regulação Financeira na União Europeia esteve em debate na Universidade Católica, em Lisboa. E, ali a poucos metros de distância, no mesmo dia, na Faculdade de Direito de Lisboa, discutia-se a outra face da mesma moeda: “O sistema financeiro português: 40 mil milhões (de euros) de imparidades depois”.

Dificilmente se poderiam encontrar dois grupos de oradores mais díspares, o que levou a que a segunda conferência se tenha focado no passado, ao passo que, na primeira, de passado pouco ou nada se falou – e o futuro era a única coisa que parecia importar. O único orador em comum foi – ou, melhor, era para ter sido – o ministro das Finanças, Mário Centeno.

Na primeira conferência, a da Católica, que durou dois dias (segunda e terça-feira), marcaram presença os protagonistas institucionais dos últimos casos da banca nacional (Banif e Novo Banco). Do governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, a Johannes Laitenberger, o diretor-geral da Concorrência europeia (a famosa DG Comp), passando pelos dois últimos responsáveis pela supervisão do Banco de Portugal — Pedro Duarte Neves e António Varela — e, ainda, pelo antigo presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso. Na plateia, figuras de relevo como Vítor Bento, Jorge Braga de Macedo e Luís Mira Amaral.

Na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, estiveram outros protagonistas do drama bancário nacional, com destaque para o antigo presidente do último banco resolvido em Portugal, Jorge Tomé, que falou sobre a resolução do Banif num painel intitulado “Os contribuintes do costume”. No painel intitulado o “Novo Banco: Um calote,” estiveram  deputados que passaram pela comissão de inquérito ao Banco Espírito Santo (Mariana Mortágua do Bloco de Esquerda e João Galamba do PS), o social democrata Leitão Amaro e António Menezes Cordeiro.

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Na Católica, havia welcome coffee, coffee break e almoço para os participantes. No auditório da Faculdade de Direito, o café do intervalo da sessão da manhã, que durou apenas cinco minutos, estava na máquina de vending e custava 40 cêntimos. Na Católica, os relativamente escassos jornalistas presentes foram informados de que alguns oradores não queriam ser “abordados” nos intervalos.

A urgência de debater a supervisão e as decisões que ninguém entende

O ministro das Finanças estava anunciado para os dois eventos. Mário Centeno apareceu, sim, na abertura da conferência da Faculdade de Direito, onde anunciou a intenção do governo de lançar o debate sobre a mudança do modelo de supervisão financeira, uma reflexão que classificou de “urgente“. O governante lembra decisões de um passado recente sobre a arquitetura do sistema financeiro. “Ainda não encontrei ninguém que concorde com elas“. 

No entanto, os principais visados por esta “reflexão”, altos quadros e dirigentes do Banco de Portugal e da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, estavam do outro lado da Avenida dos Combatentes, na conferência da Católica, a cujo encerramento Mário Centeno acabou por faltar, por ter outros eventos na agenda.

Na conferência a que Centeno não faltou, no auditório da Faculdade de Direito, ouviu-se uma história real sobre a aplicação em Portugal das regras de resolução bancária, com contradições, ziguezagues e voltefaces das autoridades nacionais e europeias, as mesmas que estavam representadas ao mais alto nível na Católica.

Na versão do antigo presidente do banco, o processo que conduziu à liquidação do Banif terá começado na primeira reunião que teve com a troika quando foi dito à administração que não havia dinheiro para o Banif.

“Nem nos sentámos na reunião”. Foi por mérito e insistência do governo e do Banco de Portugal que o banco recebeu entre 2012 e 2013 uma ajuda de 1,1 mil milhões de euros, testemunhou Jorge Tomé, que lembrou a elevada exposição que o Estado tinha na altura no banco através de obrigações garantidas. O mesmo governo e o seu sucessor e ainda o mesmo Banco de Portugal acabaram por selar um desfecho que Tomé descreveu como “liquidação”, cedendo na aparência à teimosia de Bruxelas em relação à viabilização do pequeno banco português.

Uma reviravolta que o anterior presidente diz não compreender, considerando que havia alternativas menos custosas para o Estado.

O Novo Banco foi o tema central do painel seguinte, com a deputada do Bloco de Esquerda, Mariana Mortágua, a defender o bail-in (imputação de perdas a investidores de obrigações) decidido pelo Banco de Portugal, como uma solução preferível à imputação de mais encargos aos contribuintes. Considera contudo que deveria ter sido feito mais cedo.

Também o socialista João Galamba prefere o bail-in aos contribuintes do costume, mas “não agora”, porque defrauda as expetativas dos investidores e não está fundamentada a escolha “conveniente” destas cinco obrigações. O deputado mostrou-se ainda contra o modelo do fundo de resolução, sobretudo quando este mecanismo é usado sem a necessária capitalização. O que faz “é contagiar banca” e atirar a fatura para os contribuintes, numa referência à resolução do Banco Espírito Santo.

O deputado social-democrata Leitão Amaro também saudou uma decisão que não envolveu os contribuintes, mas deixou a preocupação: Como é que o mesmo regulador toma duas decisões tão contraditórias no espaço de uma semana? A resolução do Banif, que poupou alguns dos investidores e depositantes à custa dos contribuintes, e, no caso BES, a transferência de dívida para o “banco mau”, uma operação que permitiu recapatalizar o Novo Banco com as perdas dos investidores, salvaguardando os contribuintes.

A União Bancária como a salvação para a união monetária

A conferência da Católica começou logo na segunda-feira e a abertura coube a um governador do Banco de Portugal mais mordaz do que é habitual. Carlos Costa reiterou a sua defesa da União Bancária. Disse, até, que os seus contornos foram imaginados por si e pelo governador francês, Christian Noyer, outro responsável que – por coincidência – levou para um evento há vários anos um discurso que, tal como o de Carlos Costa, defendia a necessidade de um aprofundamento das relações bancárias na zona euro.

Porém, Carlos Costa não se ficou pelos elogios à União Bancária e dedicou boa parte do seu testemunho a falar sobre as “preocupações” que certos aspetos da aplicação da União Bancária lhe estão a suscitar. O governador do Banco de Portugal pediu que se acelerem “rapidamente” os trabalhos de construção da União Bancária europeia, porque o facto de esta estar “em construção” gera uma “esquizofrenia entre quem toma as decisões e quem paga e dá a cara por elas”.

Isto acontece, em grande medida, explicou Carlos Costa, porque desde 1 de janeiro que entrou em plenas funções o Conselho Único de Resolução, o organismo que passa a tomar as decisões sobre como reagir a casos de problemas em bancos. Contudo, as suas decisões têm, depois, de ser financiadas (para já) e geridas, no terreno, pelas autoridades nacionais. Enquanto este fundo não estiver plenamente fundeado – graças às contribuições dos bancos da zona euro – continuará a haver uma compartimentalização das responsabilidades financeiras, apesar de, em última análise, haver uma centralização das decisões.

Regras duras e inconvenientes, mas cruciais e inevitáveis”

Carlos Costa fechou a sua intervenção dizendo que, se não for bem aplicada, a União Bancária poderá gerar “ressentimentos” que façam com que se torne parte do problema e não parte da solução para a crise. Esta era a deixa de Johannes Laitenberger, ex-chefe de gabinete de José Manuel Durão Barroso e, desde setembro, diretor da Direção-geral da Concorrência europeia. Um organismo que tem tido uma grande importância para Portugal nas questões relacionadas com a banca, tendo em conta que boa parte dos bancos receberam ajudas de Estado.

Laitenberger, em jovem, passou um ano em Portugal a estudar Filosofia. Um tempo que lhe deixa uma muito portuguesa “saudade”, como afirmou na sua curta introdução feita num português perfeito. A apresentação, propriamente dita, foi feita em inglês.

O chefe da DGComp disse que “a crise mostrou que os bancos, na Europa, quando entram em problemas muito facilmente geram problemas que rapidamente se propagam muito além dos seus clientes e depositantes”. Na União Bancária, “o principal objetivo é o de quebrar o círculo vicioso entre os bancos e os Estados e criar uma fundação sólida para o setor bancário europeu, assegurando um campo nivelado (level playing field) para todos os bancos na Europa”.

Em tempos de crise, há uma tentação para menosprezar as regras da Concorrência. Mas as regras da Concorrência e as regras relativas aos auxílios de Estado são um elemento crucial para a equidade entre os Estados-membros e as empresas. Fundamental para os contribuintes. Porque têm potencial para criar distorções na economia, as ajudas de Estado devem ser sujeitas a regras — são possíveis mas apenas quando sujeitas a regras restritas.

A intervenção de Johannes Laitenberger procurou, também, inspirar confiança de que as reestruturações levadas a cabo na banca europeia, algumas das quais com patrocínio estatal, deixaram os bancos “mais eficientes, mais seguros, mais capitalizados”. Quanto aos outros, os que não conseguirem restaurar a sua viabilidade, não serão “mantidos artificialmente vivos”, garante. E quando isso acontecer, a prioridade número um é proteger os contribuintes.

As novas regras, que entraram em vigor a 1 de janeiro de 2016, pressupõem a utilização de fundos dos credores e dos depositantes acima de 100 mil euros em casos de resolução de bancos. A mudança de paradigma de bailout (resgates estatais) para bail-in é algo “essencial para assegurar a viabilidade da União Bancária”.

As decisões que levam à criação da União Bancária, e nomeadamente a diretiva que define o envolvimento dos stakeholders e não dos contribuintes, são decisões difíceis, mas acredito profundamente que a União Bancária, se for implementada adequadamente, podem lançar as bases para uma Europa melhor.

Johannes Laitenberger foi o único (além de Carlos Costa) que não permitiu uma sessão de perguntas e respostas. Não foi possível perguntar, por exemplo, em que contexto podem continuar a existir bancos públicos na zona euro tendo em conta que qualquer cêntimo público que entre num banco pode ser considerado ajuda de Estado e, portanto, obrigar a resolução.

Laitenberger também não ficou para responder a algumas questões lançadas por Manuel Sebastião, ex-presidente da Autoridade da Concorrência e um dos organizadores da conferência. Manuel Sebastião, em substituição de António Cabral, lançou várias questões sobre o funcionamento prático da União Bancária, defendendo que “precisamos de pensar um pouco mais” sobre as regras e sobre a forma como se resolvem problemas nos bancos.

E deu um exemplo: “Todos nós, nos nossos apartamentos, no dia a dia, sabemos que não devemos criar riscos de incêndio, como sair de casa e deixar o forno ligado. Todos tentamos evitar a ocorrência de incêndios. Porém, os incêndios ocorrem. E, quando ocorrem, são sistémicos: podem espalhar-se para outros apartamentos do mesmo prédio ou para os prédios vizinhos. Aí, portanto, serei eu o único responsável pelo que aconteceu? Ou serão os outros apartamentos do mesmo condomínio? Ou será que apagar o fogo cabe ao serviço de bombeiros da minha cidade?”

Manuel Sebastião questionou, ainda, as regras que obrigam a um qualquer banco que entre em dificuldades, automaticamente, a ser alvo de uma resolução. “O que teria sido de um banco como o Lloyds se não tivesse recebido ajuda estatal e tivesse sido, logo, sujeito a uma resolução?”