Título: As Horas Invisíveis
Autor: David Mitchell
Editora: Presença
Páginas: 630
Preço: 24,90€
Pode parecer tanto absurdo como expectável acusar de irrealismo um romance que narra a épica luta entre Horologistas (pessoas boas que transmigram por toda a eternidade, só podendo ser mortas no Crepúsculo) e Anacoretas da Capela do Cátaro Cego (pessoas más que conseguem parar o seu processo de envelhecimento, bebendo a alma de crianças inocentes), mas é precisamente a falta de realismo que mais choca em As Horas Invisíveis.
Decerto não esperamos que o romance de David Mitchell nos convença da real possibilidade de, sem o nosso conhecimento, estar neste momento a decorrer uma guerra entre clubes secretos de imortais, mas não seria descabido desejar que ao menos as regras deste universo paralelo criado pelo escritor britânico fossem claras e respeitadas ao longo das demasiadas páginas do romance. Nas primeiras quatrocentas, os acontecimentos paranormais são pouco frequentes, vivendo-se um período de acalmia antes da tempestade em que Mitchell aproveita para subtilmente espalhar pistas acerca do que irá mais tarde acontecer. Esta longuíssima introdução é seguida de cento e cinquenta páginas em que a velocidade acelera brutalmente, deixando-nos confusos e sem compreender quase nada acerca da ascensão e queda dos fiéis da Capela do Cátaro Cego.
Desde que haja tempo
Depois do silêncio e da calma nos adormecerem, o estrondo e o fogo-de-artifício deixam-nos atordoados. A partir do momento em que os Horologistas evitam a morte da vidente Holly Sykes às mãos dos Anacoretas, nada se percebe. Não se percebe o que acontece quando os Horologistas transmigram, não se percebe em que condições o podem fazer e não se percebe nunca o que acontece às almas das pessoas cujos corpos são tomados por transmigrantes.
No entanto, é no combate derradeiro entre Horologistas e Anacoretas que a ininteligibilidade do universo mitchelliano se revela em todo o seu esplendor. Ao verem impressões digitais de Anacoretas na roupa de Sadaqat (provavelmente captadas pelo poder da super-visão dos Horologistas, poder esse a que não é feita qualquer referência ao longo do livro), os Horologistas deduzem que o seu fiel pajem seja afinal um agente infiltrado. Por isso, em vez de o deixarem preso e sem qualquer possibilidade de comunicar com os seus colegas inimigos, levam-no para a invasão à Capela, convencendo-o de que a pasta adesiva que traz na mochila é afinal carga hiper-explosiva. Depois de traídos e encurralados por um outro agente duplo, os Horologistas são submetidos ao tradicional monólogo dos vilões que, como sabemos, antecede sempre a reviravolta narrativa em que surpreendentemente os Horologistas, apesar de em inferioridade numérica, conseguem vencer a ameaça inimiga graças ao sacrifício altruísta de Esther Little. De toda esta batalha cujos contornos não são nunca claros, sobrevivem apenas Marinus e Holly Sykes, que acaba por ser salva num gesto derradeiro de amor de Hugo Lamb, o Anacoreta arrependido com quem Sykes vivera uma tórrida noite de amor nos Alpes Suíços.
O irrealismo não se circunscreve, todavia, ao universo fantástico de As Horas Invisíveis. Também as personagens humanas sofrem de uma inexplicável falta de verosimilhança. As Horas Invisíveis divide-se em seis eixos temporais (1984, 1991, 2004, 2015, 2025 e 2043) com cinco narradores diferentes, mas o que acontece na prática é que as diferenças entre os eixos temporais são marcadas apenas pela música que se ouve e pelas marcas que se vestem (David Mitchell faz, aliás, um esforço extraordinário para nos provar repetidas vezes a sua vastíssima cultura popular) e as diferenças entre as personagens são extraordinariamente ténues.
No primeiro eixo temporal, Holly Sykes, com 15 anos, narra-nos a sua fuga de Gravesend depois de encontrar Vinny Costello, o sedutor insensível com quem namorava, na cama com a sua melhor amiga. Nesta viagem, Holly encontra Ed Brubeck, que a protege de todos os perigos. No segundo eixo temporal, Hugo Lamb, um sedutor insensível que diz coisas como “não vou fazer de conta que não me apercebo da lasciva atenção de que o meu brilho alpino, sensualidade à Rupert Everett, camisa preto-carvão Harry Enna e calças de ganga Makoto Grelsch estão a ser alvo, mas nesta noite de passagem de ano quero embrulhar-me com a música e nada mais” (página 177), partilha connosco os seus esquemas fraudulentos e planos ambiciosos para o futuro. Mas, no fim de 2015, Lamb conhece Holly Sykes, com quem dorme uma noite e por quem se apaixona, ponderando trocar os seus estratagemas pelo amor da jovem vidente, sendo esse nobre plano súbita e inesperadamente preterido a uma adesão ao movimento anacoreta.
No terceiro eixo temporal, Ed Brubeck transformara-se num repórter de guerra incapaz de trair a sua mulher, Holly Sykes, apesar das solicitações femininas de que é alvo. A certa altura, a filha de ambos, Aoife, desaparece do hotel onde estavam e Ed percebe a importância dos valores familiares, decidindo-se a abandonar os seus projetos profissionais para viver mais perto de Holly e Aoife. Esta convicção dura pouco, acabando por morrer precisamente num cenário de guerra. No quarto eixo, Crispin Hershey, um sedutor insensível, vive um amor platónico com Holly Sykes, amiga de Carmen, a sua amante sensual da América Latina.
Perdido no meio das páginas
Esta repetição infinita da história torna-se ainda mais cansativa quando notamos que a voz que nos fala se mantém sempre constante apesar das mudanças de narrador e apesar dos estados de espírito que cada um destes vai experimentando, o que é ainda mais peculiar quando percebemos que a narrativa não é feita retrospetivamente, mas em tempo real. Crispin, por exemplo, narra com a mesma calma uma convenção literária e o momento em que “Hugo Lamb faz um gesto peculiar com a mão e o [seu] corpo é levantado três metros no ar e comprimido dentro do punho invisível de um gigante” (página 379); quando Ed está desesperado à procura da sua filha desaparecida, cruza-se com uma convenção de ficção científica e, apesar do medo de ter perdido para sempre a sua filha, é capaz não só de reconhecer naves “Battlestar Galacticas [feitas] de metal fundido em molde”, como também lê nas T-shirts dos visitantes da convenção frases como “OS FÃS D’O CAMINHO DAS ESTRELAS BLOQUEIAM-TE OS GASES DO TUBO DE ESCAPE” (página 285).
Finalmente, em alguns momentos parece que o próprio escritor se perde na vastidão do livro. No princípio de As Horas Invisíveis, em 1984, ao cruzar-se com uma colega sua que abandonara os estudos depois de engravidar, Holly afirma que fora sempre muito cuidadosa quando tivera relações com Vinny e que só fizera “sexo sem preservativo uma vez, a primeira, e é um facto científico que as virgens não engravidam” (página 18). Dois dias depois, Holly manifesta-se preocupada por não ter tido ainda o período, mas decide ignorar esse facto. Mais tarde, em 1991, Hugo Lamb encontra-se com Vinny, estando este último a tentar embrulhar uma pista de carros elétrica para o seu filho de cinco anos. Durante as quatrocentas páginas seguintes, não encontramos uma única referência a esta criança até ao momento em que Marinus vasculha a memória de Holly encontrando lá uma memória esquecida da “clínica de alguém que faz abortos perto do Estádio de Wembley” (página 502), para assim se esconder inaptamente uma das pontas soltas de As Horas Invisíveis.
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