A imagem é esta: Catarina Martins, recém-eleita líder a solo do Bloco de Esquerda, a subir a um pequeno banco no palanque da X Convenção, ao mesmo tempo que subia o tom para pedir mais. Mais para o Bloco, que já não tem medo de dizer que “claro” que quer “ser um partido de poder”. E mais para Portugal e para a Europa. Para isso, escondeu dois trunfos na manga: uma ameaça de referendo caso a Comissão Europeia avance com as sanções contra Portugal e um caderno de encargos para as negociações do próximo Orçamento do Estado com o Governo. Aqui com três prioridades à cabeça: continuar a aumentar o salário mínimo, o aumento real das pensões em 2017 e o descongelamento do Indexante dos Apoios Sociais (IAS). Para a Europa, uma “declaração de guerra”.
O tom é assim mesmo, assertivo e decidido. Catarina explica: “Recuperar rendimentos é assim que se faz: começa-se por quem tem menos. Aumentar a justiça fiscal é assim que se faz: os que ganham mais pagam mais”. Diz à direita para tomar notas, e até oferece a casa bloquista para um encontro internacional de partidos e movimentos de esquerda, que quer que aconteça no prazo de um ano. É a sua contribuição para a Europa. Quanto à Europa que existe, ao mesmo tempo que usa Merkel, Schaüble e Junker como alvo de todas as críticas e assina uma “declaração de guerra” em caso de sanções, também recusa saltar fora. Porque “a Europa é muito mais do que o diretório da União Europeia e a nossa escolha não é entre estar isolados ou viver dominados, a nossa escolha é a democracia”.
A ameaça: se há sanções ou pressões, há referendo
Sabendo-se que as questões europeias são o que mais separa BE e PS, Catarina Martins encerrou a convenção com um passo de gigante na demarcação de terreno, ao ameaçar jogar a cartada do referendo caso a Comissão Europeia aprove as sanções contra Portugal ou caso “pressione” o Governo no processo de elaboração do Orçamento do Estado para 2017. Foi uma “declaração de guerra” assumida.
“Se tomar uma iniciativa gravíssima de provocar Portugal, a Comissão declara guerra a Portugal. Pior ainda, se aplicar sanções e usar para pressionar o Orçamento do Estado para 2017 com mais impostos, declara guerra a Portugal. E Portugal só pode responder recusando as sanções e anunciando que haverá um referendo à chantagem”, disse, naquele que foi o ponto-chave do seu discurso. Não disse que referendo seria esse, se à permanência na UE, se ao Tratado Orçamental, se à permanência no euro, mas deixou claro que o país tinha de se “preparar para todos os cenários em que a UE nos ameace, sejam as sanções, o fim do euro ou a desagregação da UE”.
No primeiro dia dos trabalhos, que decorreram este fim de semana no pavilhão desportivo do Casal Vistoso, em Lisboa, Catarina Martins tinha dito que não era altura de “jogar a cartada dos referendos”. Agora, voltou a dizer que podia não ser já, mas que o dia da cartada “virá”. “Perguntam-nos se queremos o referendo já e a minha resposta é esta: ‘Não metemos nunca nenhum direito democrático na gaveta’. Virá esse dia do referendo, e virá breve, porque a soberania popular tem de ser recuperada”, afirmou continuando no tom de ameaça.
O caderno de encargos para o OE 2017 (à atenção de António Costa)
Para o primeiro-ministro do Governo que apoia mas com o qual não concorda inteiramente não houve elogios nem críticas, mas houve avisos e um autêntico caderno de encargos para o processo negocial que se segue para o Orçamento do Estado de 2017. Catarina Martins usou o palco da convenção do Bloco para anunciar que irá propor ao Governo um aumento real das pensões e o descongelamento do indexante de apoios sociais (IAS), para “descongelar as prestações sociais que apoiam quem mais precisa”.
Além das negociações que já decorrem para o aumento do salário mínimo nacional em janeiro, e para a introdução de maior progressividade nos escalões do IRS, Catarina Martins deixou agora claro quais vão ser as próximas reivindicações do Bloco no quadro da discussão do próximo Orçamento. Com a certeza de que sem o apoio dos partidos da esquerda no Parlamento o Orçamento não passa e a “geringonça” quebra.
“Por força da lei vigente, o aumento das pensões está indexado à inflação e ao Produto Interno Bruto. Em tempos de crise, como o atual, essa fórmula de cálculo faz com que o descongelamento só signifique poucos cêntimos por mês, mesmo em relação às pensões mais baixas”, disse, acrescentando que é agora a altura de “fazer mais”. De aumentar o valor real das pensões. A outra condição é descongelar o IAS, que tem o mesmo valor desde 2009, para se poderem subir as prestações sociais.
As autárquicas não estão esquecidas
Catarina Martins também não quis deixar passar em branco o dossiê das autárquicas, que aqui ou ali fazia eco nas intervenções dos delegados, mas a verdade é que não esclareceu nem qual é o objetivo do Bloco (que não tem nenhuma câmara) nem qual é a sua disponibilidade para integrar “mini-geringonças” locais. Há apenas “vontade e capacidade” para encarar as eleições autárquicas de frente.
“Desengane-se quem acha que o BE não tem projeto, vontade ou capacidade para mudar a vida nas autárquicas”, limitou-se a dizer no púlpito, sem entrar em detalhe sobre eventuais coligações pré-eleitorais ou o possível apoio do partido a candidaturas independentes.
No discurso de abertura da convenção, no entanto, a coordenadora bloquista já tinha falado nas autárquicas como a “prova fundamental” do novo peso que o BE tem no cenário político, depois de ter conquistado uns inéditos 10% nas eleições legislativas e do bom resultado de Marisa Matias nas presidenciais. Com ou sem presença autárquica, certo é que para trás ficam os tempos em que se declarava a certidão de óbito do Bloco de Esquerda. E foi com essa mensagem que a agora líder única do partido quis abandonar a convenção: “Não estamos no fim de nada, estamos só a começar”.
Catarina Martins não tem dúvidas: “Tudo tem um começo” e este acordo com o PS é apenas isso, o início. Daqui para a frente, ora com o PS ora com a Europa, vai ser como Jorge Costa disse antes de Catarina: “Negociação e conflito. Negociação e conflito”.