Não demorou muito até o ministro da Justiça, Michael Gove, conseguir trocar as voltas ao ex-mayor de Londres, Boris Johnson. Gove chegou a ser tido como o nome certo para dirigir a campanha do extravagante Johnson até ao número 10 da Downing Street, que David Cameron deixará vago em outubro. Mas o que se sabe agora é que em privado as coisas não eram bem assim.

A imprensa britânica é unânime a contar esta história. Já perto da data do referendo, e sobretudo nos dias que se seguiram ao 23 de julho, começaram a surgir dúvidas dentro da equipa pelo Sair quanto às capacidades de Boris Johnson para ser o próximo primeiro-ministro do Reino Unido. E foi na noite de quarta-feira que Gove e outros conservadores estiveram reunidos — ou seja, menos de 12 horas antes de darem o golpe em público — para juntarem esforços. Segundo o The Guardian, à 1h00 de quinta-feira já estavam a contratar pessoas para a campanha de Gove.

Na manhã seguinte, tiveram uma nova reunião. Conta aquele jornal que estavam reunidas 10 das 15 figuras de destaque no Partido Conservador que até então tinha estado ao lado de Boris Johnson. Ed Vaizey, ministro da Cultura, era um deles, e falou desse momento ao The Guardian e daquilo que Gove terá pensado nessa altura: “Ele estava pronto para apoiar Boris, mas pensou mais a fundo sobre o assunto e concluiu que [Boris] não era a pessoa certa. E, a partir dessa conclusão, a lógica foi que se ele achava que Boris não era a pessoa certa, então teria de se chegar à frente”.

Às 9h00, a candidatura de Gove à liderança do Partido Conservador e ao cargo de primeiro-ministro foi anunciada através de um comunicado enviado a vários jornalistas. Estava dado o golpe final. “Eu queria construir uma equipa para apoiar Boris Johnson e para conseguir que um político que esteve a favor da nossa saída da União Europeia nos pudesse liderar até um futuro melhor”, lia-se nesse texto, disponível no The Independent. E depois veio o “mas” esperado: “Mas, relutantemente, cheguei à conclusão de que o Boris não consegue providenciar a liderança ou construir a equipa necessária para a tarefa que enfrentamos”. E terminou assim: “Consequentemente, decidi avançar para a liderança (…). Nos próximos dias, vou divulgar o meu plano para o Reino Unido”.

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Enquanto isto acontecia, Theresa May preparava-se para anunciar que também ela ia avançar. Segundo o The Telegraph, já há algum tempo que circulava uma piada entre os amigos mais próximos da ministra da Administração Interna britânica, que fez campanha pela continuação do Reino Unido na UE. O alvo da graça eram os constantes rumores de que ela se preparava para uma candidatura a Downing Street. Assim era a piada: “Theresa May. Then again she may not”, ou seja, um jogo de palavras (May, além do apelido, significa “pode” em inglês) traduzível para “Teresa Pode. Mas se calhar não pode [candidatar-se]”.

Esta manhã, Theresa May, que após estar uma década à frente da Administração Interna britânica é a pessoa que mais tempo ocupou o cargo em mais de um século, tratou de dissipar essas dúvidas. No seu estilo lacónico, começou o seu discurso assim: “A minha proposta é muito simples. O meu nome é Theresa May e acho que sou a melhor pessoa para ser primeira-ministra”.

O discurso parecia feito à medida para atacar Boris Johnson. “Eu sei que não sou uma política exibicionista. Não me passeio pelos estúdios de televisão. Não espalho fofocas sobre as pessoas à hora de almoço. Não vou beber para os bares do parlamento. E é raro ser mais emocional do que racional”, disse, para depois completar com aquilo que julga ser mais importante: “Simplesmente continuo a fazer o trabalho que tenho à minha frente”.

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A verdade é que, um pouco mais à frente na manhã desta quinta-feira, uma das mais agitadas que a política britânica teve nos últimos tempos, Boris Johnson disse que, afinal, não se ia candidatar à liderança do Partido Conservador e ao cargo de primeiro-ministro. Num discurso de 13 minutos, Boris Johnson fez uma lista daquilo que o partido e o país precisam, para depois dizer que não seria ele a fazê-lo.

Feitas as contas depois deste dia improvável e repleto de acontecimentos, já há cinco nomes entre aqueles que querem ocupar o cargo de David Cameron: Liam Fox, Stephen Crabb, Andrea Leadsom e, a partir desta quinta-feira, Michael Gove e Theresa May. Entre estes todos, são precisamente aqueles dois que avançaram esta manhã que parecem estar melhor colocados para conseguirem chegar ao lugar desejado. Assim sendo, resta perguntar: quem são e o que defendem?

Theresa May, a Angela Merkel de Westminster?

Não é por acaso que a comparação entre Theresa May e Angela Merkel é feita com regularidade. Eis algumas semelhanças, apontadas por Cathy Newman, jornalista do Channel 4, numa coluna do The Telegraph: “Ambas são filhas do clero — o pai de Merkel era um pastor luterano, o pai de May um membro da Igreja de Inglaterra. Politicamente, ambas vêm do centro-direita; a sua marca de imagem na política é o pragmatismo. E, numa era em que o carisma manda, são as duas militantemente discretas”. Além disso, o Financial Times aponta-lhe outra semelhança com Merkel: a relativa ausência de ideologia. “Ela é uma pessoa que acredita verdadeiramente que a sua função na vida é tornar as coisas melhores, mas limpas e organizadas e um pouco mais eficazes do que elas já eram”, disse um antigo colega àquele jornal.

Mas há (pelo menos) um tema onde Theresa May e Angela Merkel estão em pontos diametralmente opostos: a crise dos refugiados. A política de portas abertas de Merkel é bem conhecida. Já Theresa May prefere que seja oferecida ajuda aos países da região do Médio Oriente que mais lidam com o problema dos refugiados do que abrir as fronteiras para recebê-los. Eis o que disse em outubro: “A melhor maneira de ajudar a grande parte das pessoas [refugiados] não é trazer números relativamente pequenos de refugiados para este país, mas sim trabalhar com o vasto número de pessoas que continuam na região”.

Quanto à imigração, May tem mão pesada. Em 2013, o seu ministério foi responsável por colocar anúncios dirigidos a imigrantes sem documentos no Reino Unido. A mensagem era simples: “Está no Reino Unido ilegalmente? Vá para casa ou arrisque prisão”. A iniciativa não passou de uma experiência e a própria ministra acabou por admitir que este tinha sido “um instrumento demasiado incisivo”.

May também foi responsável por estabelecer um salário mínimo para imigrantes que vivam no Reino Unido há mais de cinco anos para 35 mil libras (atualmente, 41 850 euros). O valor, relativamente alto e nem sempre fácil de atingir para os imigrantes no Reino Unido, serve como referência salarial mínima para permanecer no Reino Unido. Aqueles que não apresentam provas de conseguirem atingir esse nível de rendimento correm o risco de serem deportados.

Enquanto ministra da Administração Interna, May foi ainda responsável por um conjunto de reformas nas forças policiais, reduzindo custos e o poder dos sindicatos, ao mesmo tempo que conseguiu reduzir a taxa de crime.

Sobre o Brexit, fez campanha pela permanência do Reino Unido, embora de forma tímida e pouco incisiva, mantendo-se na sombra. E nesta quinta-feira, quando anunciou a sua candidatura, fez questão de deixar clara a sua posição: “Brexit quer dizer Brexit”. Ou seja, não vale a pena adiar: o Reino Unido terá mesmo de sair da União Europeia. “A campanha foi renhida, o país foi a votos, a participação foi alta e os britânicos deram o seu veredicto. Não pode haver tentativas para continuar na UE, tentativas para reentrar pela porta dos fundos ou para fazer um segundo referendo.” E também disse que “não deve haver eleições gerais até 2020”.

Michael Gove. “Também tu, Brutus?”

“Eu acho que as pessoas neste país já estão fartas de peritos. Organizações com siglas que dizem que eles é que sabem e que estão consistentemente errados.” Foi assim que Michael Gove respondeu sobre a alegada falta de “peritos” em economia na campanha pela saída do Reino Unido da UE, da qual foi parte destacada, mantendo-se perto de Boris Johnson e também da retórica do ex-mayor.

Gove está há pouco tempo na política. Antes de lá chegar, foi jornalista na BBC e no The Times, e mais tarde liderou o Policy Exchange, um think tank de centro-direita. A entrada para os corredores do poder deu-se em 2005, quando foi eleito deputado pelo Partido Conservador. Dois anos mais tarde, foi ministro-sombra na pasta das Crianças, Escolas e Famílias. Em 2010, já com Cameron a primeiro-ministro, assumiu o Ministério da Educação.

O tema da imigração foi um dos principais pilares da campanha pela saída do Reino Unido da União Europeia. E aí, num discurso a 19 de abril, foi buscar o exemplo de outros países que têm um maior controlo sobre as suas fronteiras: “A Austrália, o Canadá, os EUA e a Nova Zelândia têm todos um excelente crescimento económico, influência global e a possibilidade de controlar as suas fronteiras, de agir independentemente tanto para fechar as suas fronteiras ou abri-las a mais refugiados, e elos de segurança fortes, duradouros e fiáveis”. Durante a campanha, disse ainda que a entrada da Turquia na UE seria “uma ameaça direta e séria” para o Reino Unido caso este permanecesse nela.

Outra ameaça sobre a qual Gove se debruça é a do terrorismo — em particular, a do terrorismo islâmico. Em 2006, publicou o livro Celsius 7/7, onde argumentou que “a política de apaziguamento do Ocidente provou ainda mais terror fundamentalista” e criticou o “falhanço para escrutinar, monitorizar e verificar as ações, financiamento e as operações daqueles que estão comprometidos em espalhar a palavra do islamismo no Reino Unido”.

Foi neste último capítulo, o do combate ao terrorismo interno, que Gove, então ministro da Educação, entrou em confronto aberto com May, que já dirigia a Administração Interna. A disputa em 2013 surgiu depois de ter sido noticiado um alegado plano de 2010 que pretendia chegar a uma tomada de controlo de três escolas de Birmingham por um grupo radical islamista, cujo objetivo seria cativar os estudantes para a sua ideologia extremista. O caso ficou marcado por trocas de acusação entre os dois ministros, que recusaram responsabilidade sobre esta matéria. Mais tarde, o Governo quis passar uma imagem de unidade entre o seu executivo, mas o mal já estava feito.

Michael Gove pode ter entrado nos corredores de Westminster há apenas 11 anos, mas isso não é sinónimo de falta de experiência nos jogos de poder. A prova disso foi a maneira como passou, literalmente da noite para o dia, de ser um político que sempre rejeitou voos mais altos para outro que agora se candidata à cadeira mais importante da política britânica. Pelo meio, ficou Boris Johnson, o eterno “futuro candidato”. No seu discurso, o ex-mayor de Londres não fez referências a Gove. Mas o pai de Boris, o político conservador e escritor, comentou-o citando Júlio César, de William Shakespeare: “Tu também, Brutus?”.