O futebol feminino em Portugal mudou. São cada vez mais as futebolistas federadas, de todas as idades e cada vez mais jovens. Quanto ao campeonato nacional, também ele mudou: alargou-se em número de clubes, chegou um “grande” (Sporting) e está mais competitivo. As seleções jovens (de Sub-19 e Sub-17) chegaram às fases finais de dois Europeus recentemente, e a Seleção AA está na iminência de o conseguir. Ufffff! Dito assim, de enfiada, até parece pouco, mas é muito e demorou anos a construir.
Mas ainda há muito por fazer. Falta alargar (mais ainda) o número de atletas — o que vai facilitar a vida ao selecionador nacional –, criar campeonatos nacionais para juvenis e iniciados (hoje existe apenas o de Sub-19) e estreitar o “fosso” para as melhores seleções europeias. Chegar ao Europeu2017 é o um passo mais para esse estreitar. Talvez o maior. Certamente inédito: é que nunca Portugal chegou a uma fase final. O playoff de apuramento vai jogar-se entre 17 e 25 de outubro. O sorteio é esta sexta-feira e Portugal ficará a saber quando jogará — e se o fará primeiro em casa, se primeiro fora. O adversário, esse, é conhecido: a Roménia, segunda classificada do Grupo 3. Portugal também foi segundo, mas no Grupo 2.
Sobre tudo isto, o apuramento, o playoff, o que mudou e continua por mudar no futebol feminino em Portugal, se falou nesta entrevista com o selecionador nacional Francisco Neto. E, garante Francisco: “Este apuramento para o playoff foi o apuramento da união. E neste momento não podemos ter outro pensamento a não ser o do apuramento para a fase final”.
O Francisco ainda é jovem – tem 35 anos. Mas começou a treinar em 2005, nos juvenis do Repesenses, em Viseu. Depois foi Coordenador Técnico, a partir de 2007, da Associação de Futebol de Viseu e, logo a seguir, em 2008, entra pela primeira vez com a Federação Portugal de Futebol: foi treinador de guarda-redes da Seleção de futebol feminino. Como é que surgiu esse convite?
Curiosamente, e ao contrário do que se pensa, não foi o meu primeiro contacto com o futebol feminino. Eu comecei a trabalhar como treinador em 2001, nas seleções de base da Associação de Futebol de Viseu. Depois fui para a faculdade e, no final do curso, estagiei no Salgueiros. Mas sim, é quando regresso a Viseu e entro no Repesenses que me dedico mais profissionalmente ao futebol. A primeira experiência no futebol feminino, e foi por aí que comecei a resposta, surge em meados de 2004, quando treinei uma seleção distrital de Viseu no Torneio Interassociações. É essa a primeira experiência. Eu cheguei à Federação Portuguesa de Futebol quando estava na Associação de Futebol de Viseu, como Coordenador Técnico. A Federação convidava habitualmente um coordenador para ter uma ação de formação na Seleção Nacional. Aconteceu com o coordenador antes de mim, aconteceu comigo também. Alguns dos coordenadores vão para o futebol masculino, nas seleções jovens, outros para o feminino. No caso da Associação de Futebol de Viseu, era normal o coordenador ir ao Mundialito de futebol feminino. Na altura, quando fui à ação de formação, e como a selecionadora Mónica Jorge não tinha um treinador de guarda-redes, foi-me feito — por ela — o convite para ocupar o cargo. Aceitei, claro, com agrado. E fui ficando. Aquele Mundialito correu bem e fui ficando, sempre pela mão da Mónica Jorge. Estive dois anos e meio a trabalhar na Seleção.
Mas nunca deixou o cargo de Coordenador Técnico da Associação de Futebol de Viseu. Em 2003, sim, deixaria o cargo. Foi convidado para treinar os Sub-21 da Índia. Ou melhor: de Goa. Um desafio e tanto…
É verdade. Foi um desafio… intenso. Vou para a Índia para treinar a seleção de Goa nos Jogos da Lusofonia [a seleção goesa venceria a medalha de ouro]. O convite foi esse. A cultura é completamente diferente da nossa. Estive três meses e meio a trabalhar na preparação do torneio. Fiz a observação dos jogadores, a convocatória, treinei-os e depois veio a competição. Não foi fácil, porque não conhecia muito bem o futebol indiano, porque o tempo era pouco, mas valeu a pena.
E é depois dessa experiência na Índia que volta à Federação. Mas aí para ser selecionador nacional de futebol feminino. Foi em 2013. Nessa altura ainda não lhe era certamente pedido que se apurasse para um Europeu – ou um playoff. O que é que lhe pediram então?
Nem agora me pedem isso. O projeto da Federação para o futebol feminino não está assente apenas nos resultados. É muito mais do que isso. É claro que os resultados da Seleção são o lado mais visível deste projeto. Mas aquilo a que nos propusemos foi implementar um plano estratégico. Um plano que envolvesse os clubes, os treinadores, as associações, um plano que viesse aumentar o número de praticantes em Portugal. Por outro lado, também queríamos que Portugal se aproximasse das referência europeias da modalidade. Isto em março de 2013. Não nos queríamos aproximar apenas no ranking; queríamos que essa aproximação se sentisse no relvado. Foi um trajeto difícil, com altos e baixos, não foi perfeito, mas está a dar frutos — e esperamos que dê muito mais no futuro.
O futebol feminino em Portugal foi durante muitos anos um futebol menor. O investimento era pouco. O desinteresse — mesmo do público — muito. Mas as coisas mudaram nos últimos anos. E isso também se deveu ao forte investimento da Federação na modalidade. Isso, como selecionador, veio “facilitar-lhe” a vida…
Sim, claro. Este projeto da Federação só seria sustentável se se aumentasse o número de praticantes. E foi por isso que primeiro se criou uma Seleção Sub-19. Depois surgiram as de Sub-17 e Sub-16. O que também foi importante foi a criação da primeira competição nacional de juniores. Depois, as próprias associações começaram a promover campeonatos distritais para a formação no feminino. O ano passado surgiu o primeiro campeonato nacional de futebol de nove para as Sub-19. Tudo isso foi importante para que, pouco a pouco, os resultados começassem a surgir: em 2013 a Seleção de Sub-19 apurou-se para o Europeu na Turquia; as Sub-17 também se apuraram para o Europeu. Está-se a apostar no potencial das nossas jogadoras. Está-se a dar condições para que desenvolvam o seu potencial. E isso facilita a vida ao selecionador, claro.
Durante muito tempo as futebolistas, à falta de clubes que apostassem no futebol feminino, tinham que competir entre rapazes. E quando chegavam à idade máxima para competir entre rapazes, quando faziam 13 anos, tinham que treinar com as seniores. Isso era negativo para o desenvolvimento de que fala?
A nossa visão, no departamento de futebol feminino que coordeno, é que as jogadoras devem competir num enquadramento ajustado às suas capacidades. Se a jogadora tiver 14 anos e estiver apta a competir nos seniores, deve competir. Agora, a verdade é que maioria deve estar a competir com atletas da sua idade. Antigamente, uma rapariga só podia competir com rapazes até aos 13 anos. Hoje podem competir até à idade de juvenil. E há cada vez mais casos de raparigas que são titulares — entre rapazes — nesse escalão. Hoje ainda só temos o campeonato nacional de Sub-19 para elas. Mas a curto médio prazo queremos criar competições para que as jogadoras possam competir no tal “enquadramento ajustado às suas capacidades”. Depois, havendo todos os escalões, e tal como acontece com os rapazes, devem ser os treinadores e os clubes a decidir em que escalão é que elas devem competir.
Este ano o campeonato nacional feminino mudou. O número de equipas cresceu. Chegou o Sporting, por exemplo. A chegada de um “grande” é importante para atrair mais jogadoras?
Para nós o mais importante é que os clubes, todos eles, consigam criar condições para que as jogadoras se desenvolvam, com treinadores bons, departamentos médicos bons, condições de treino boas. Agora, claro que os ditos “grandes”, pela estrutura que têm, uma estrutura altamente profissional, tem maior facilidade em dar estas condições às jogadoras. O campeonato está mais competitivo este ano. Já o estava nos últimos anos. E o Sporting, por exemplo, por ser um “grande”, o que traz é mais atenção dos media e isso potencia a modalidade. Claro que sim.
Como é que está a formação em Portugal? Não é possível ambicionar a mais na Seleção se os clubes não apostarem na formação…
Eu coordeno todas as seleções de futebol feminino. O número de atletas federadas tem vindo a aumentar. Hoje são aproximadamente 2.500 atletas — mas este ano ainda estamos a receber inscrições e o número até poderá ser outro. Este aumento é bom. Ainda não é o suficiente, mas é bom. Por exemplo, nós temos estas 2.500 jogadoras, mas a Finlândia tem 40 mil, a Espanha 35 mil e a Irlanda perto de 20 mil. Estas seleções competiram connosco no apuramento para o Europeu. E nós só ficámos atrás da Espanha. A distância a nível de qualidade não é grande. Mas em número de praticantes é. O que nós queremos é, mais do que aumentar a qualidade, aumentar o número de praticantes. É a missão que temos. Queremos mais. Mas o trabalho que os clubes têm feito é de louvar. E acredito que vamos conseguir.
O Francisco convive de perto com as jogadoras. Muitas delas — ou quase todas — não vivem do futebol; são trabalhadoras, estudantes, mães. São poucas as profissionais — e as que são, têm que sair do país. Ainda é difícil ser jogadora de futebol em Portugal?
Sem dúvida que é. Mas estas jogadoras têm uma paixão pelo futebol e pelo país que ninguém imagina. Essa é a mais-valia delas. Só assim é que se explica que elas abdiquem de muita coisa na vida pessoal para continuarem a jogar. Muitas das jogadoras, e falando das que estão ou estiveram na Seleção, têm que escolher entre o futebol e o emprego. E muitas têm que optar pelo emprego, claro.
Ainda nos falta sensibilidade ao nível do patronato para entender que elas são atletas de alta competição?
Esse é um tema sensível. Sei que há jogadoras que, para virem à Seleção, e não sendo libertadas do emprego, têm que marcar férias. E abdicam, claro, dessas férias para vir treinar e competir. Felizmente, são cada vez menos os casos.
Mas falávamos de sensibilidade. As coisas também mudaram nos últimos anos na mentalidade dos próprios pais…
Claro, claro. Só há pouco tempo é que foi socialmente aceite que uma menina, ou uma mulher, jogasse futebol. Era uma coisa “de homens”. Felizmente, e cada vez mais, há pais que têm orgulho em que a filha jogue futebol. Os pais querem que as filhas façam o que gostam. Incentivam-nas. Apoiam-nas. Esta mudança na mentalidade vê-se sobretudo nas escolinhas de futebol, onde há cada vez mais raparigas inscritas.
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Vamos falar desta chegada — inédita — ao playoff de apuramento. Deveu-se a todo este investimento de que falámos…
O apuramento foi algo maravilhoso. Mas o apuramento não começou agora. Não começou no último jogo. O último jogo [contra a Irlanda] não seria decisivo se não tivéssemos vencido os outros. O apuramento começou há três anos. Mas, antes disso, nós [FPF] resolvemos começar a levar as jogadoras para contextos altamente competitivos. Isso fez a diferença quando o apuramento começou. Só a competir com os melhores do mundo é que as jogadoras podem evoluir, ser melhores e mais fortes. E quando digo competir com “os melhores do mundo”, falo, por exemplo, da Algarve Cup, em que defrontámos a França, quarta do ranking, na quarta-feira, descansámos na quinta, e na sexta estávamos a jogar com o campeão do mundo, o Japão. As nossas jogadoras ganharam confiança com esses desafios. E começaram a acreditar que chegar ao Europeu era possível. Nós fomos crescendo, pouco a pouco, de jogo para jogo e durante os próprios jogos.
Chegar ao playoff na última jornada deve certamente um saber diferente. Até porque não foi um jogo propriamente fácil. O golo da vitória, da Cláudia Neto, “só” surgiu de grande penalidade, aos 78’…
Este foi o apuramento da união. Só com união foi possível lá chegar. Mas estivemos sempre na luta pelo apuramento para o playoff. No jogo com a Finlândia, antes do da Irlanda, estivemos a perder 2-0 e acabámos a vencer 3-2. Já na Finlândia, no jogo fora, empatámos [0-0], mas sabíamos que tínhamos sido superiores. Só precisávamos de ser mais concretizadores. Ao longo do apuramento nunca facilitámos; queríamos sempre vencer, fosse contra quem fosse. E foi uma alegria imensa chegar ao playoff.
Amanhã há sorteio. Ou melhor, o adversário será a Roménia — o que se vai sortear é a ordem dos jogos. Pergunto-lhe: é possível eliminar a Roménia e chegar ao Europeu pela primeira vez?
Neste momento não podemos ter outro pensamento a não ser o do apuramento. Nós queremos muito chegar ao Europeu. Mas vai ser difícil. A Roménia, tal como nós, também tem evoluído muito no futebol feminino. E em casa são uma seleção muito forte, que só teve uma derrota [com a França, 1-0] em todo o apuramento. As jogadoras estão fatigadas, vão agora regressar aos clubes, descansar, e espero contar com todas para a próxima convocatória. Depois de eliminarmos a Irlanda e a Finlândia — seleções que têm pergaminhos na Europa –, só podemos pensar em eliminar a Roménia também.
Falou da Roménia e dos pontos fortes da Roménia. Qual é o nosso ponto forte?
A técnica. É essa a principal característica da jogadora portuguesa, que é muito evoluída tecnicamente e gosta de ter a bola. Portugal tem o hábito de retirar a bola ao adversário e construir o seu jogo sustentado na posse. Mas as nossas jogadoras também são muito cultas taticamente. São jogadoras que assimilam muito bem o que lhes é solicitado. E todas elas têm, como disse anteriormente, um espírito de sacrifício, um amor a Portugal e ao futebol, que só estando com elas é que se percebe. É enorme esse amor.