As Frases
Assunção Cristas: “[Diga-me] se acredita mesmo que um casal que trabalhou 20 anos e conseguiu poupar 2.500 euros por ano e que tem agora uma conta bancária de 50 mil euros é suspeito de fuga ao fisco. E queria também saber se um emigrante que mandou para cá as suas poupanças e conseguiu ter uma conta de 50 mil euros também é suspeito de fuga ao fisco.”
António Costa: “Relativamente aos emigrantes, provavelmente não sendo residentes, é aplicada uma diretiva que foi aprovada durante o anterior Governo e que obriga precisamente esta medida para monitorização das contas dos não residentes. Da mesma forma que foi o seu Governo que assinou o acordo com os Estados Unidos, que também obriga à introdução dessa medida. Aquilo que nós fazemos é simplesmente garantir e cumprir que todas as exigências que a Comissão Nacional de Proteção de Dados estabeleceu de forma a que não houvesse dados indevidamente conhecidos.”
Assunção Cristas: “Com o escasso tempo que tenho é impossível desmontar todas as suas mentiras. Mas na verdade já disse várias. Uma delas é dizer que a diretiva nos obriga a vasculhar as contas de todos os portugueses com 50 mil euros. Isso é mentira. Objetivamente mentira. Mentira objetiva.”
As teses
O Governo socialista aprovou um decreto-lei que prevê, em linhas gerais, a obrigação de a banca comunicar ao fisco saldos bancários acima dos 50 mil euros. A medida aplica-se a residentes com poupanças em Portugal, não residentes com poupanças em Portugal (portugueses emigrados ou estrangeiros com contas cá) e a residentes com dinheiro lá fora.
O gabinete de Mário Centeno invoca dois acordos internacionais para aplicar a medida. Primeiro, a diretiva comunitária DAC2, que prevê um mecanismo automático de acesso e troca de informações financeiras em relação a contas detidas em Portugal por não residentes e a contas detidas por residentes no estrangeiro, incluindo cidadãos portugueses.
E, depois, o FATCA (Foreign Account Tax Compliance Act), um acordo celebrado com os Estados Unidos, que promove a troca de informações entre os dois países, aplicável a cidadãos norte-americanos e a cidadãos com obrigações fiscais nos Estados Unidos que detenham aplicações financeiras em Portugal.
Posto isto, o Governo garante que está a “cumprir os compromissos internacionais do Estado português nesta matéria” e a “reforçar os mecanismos que são internacionalmente considerados necessários como meios de combate à fraude e evasão fiscal, ao branqueamento de capitais e ao financiamento da criminalidade organizada e do terrorismo”.
Ora, é precisamente aí que Assunção Cristas sugere que o Executivo socialista não está a contar toda a história. Durante o debate quinzenal, o primeiro pós-férias, quentinho apesar da chegada do outono, quando o primeiro-ministro respondia ao desafio da democrata-cristã, a líder do CDS foi interrompendo a intervenção do socialista para dizer que as diretivas internacionais não se aplicavam aos portugueses com contas em Portugal.
Essa é, de resto, uma crítica apontada várias vezes pelo CDS. Entre sugerir que o Governo português quer criar um “Estado big brother” e uma máquina de “perseguição fiscal aos contribuintes” que a esquerda considera serem “os ricos”, os democratas-cristãos falam numa “medida excessiva”, “descabida” e sem justificação. E desmentem — tal como fez o deputado centrista Pedro Mota Soares — a versão do Executivo socialista: “O Governo não tem nenhuma obrigação de tomar uma medida como esta, nos termos do direito comunitário”.
Os factos
Para organizar a discussão é preciso fazer uma salvaguarda: de forma hábil, António Costa nunca respondeu a Assunção Cristas sobre o alargamento da monitorização fiscal aos contribuintes portugueses com saldos superiores acima dos 50 mil euros. O primeiro-ministro falou apenas sobre a situação dos emigrantes portugueses que detêm contas em Portugal. E aí as orientações internacionais parecem dar-lhe razão: o Governo está a apenas a respeitar o espírito dos acordos celebrados pelo anterior Executivo.
Esta é uma parte da discussão. Depois existe a segunda: o CDS parece ter razão quando diz que, à luz dos compromissos internacionais, o Governo português não tinha necessariamente de alargar a partilha de informações sobre dados dos contribuintes portugueses com saldos bancários acima de 50 mil euros.
A Comissão Nacional de Proteção de Dados parece dar força aos argumentos dos democratas-cristãos. Quando foi chamada a pronunciar-se sobre a medida do Governo (aqui e aqui), esta entidade considerou que a solução encontrada pelo Governo socialista era inconstitucional e que estava bem para lá dos limites definidos pelos acordos internacionais — logo à cabeça, por implicar o acesso do Fisco português aos saldos bancários dos residentes em território nacional. “Estando em causa contribuintes que não preenchem os critérios legalmente definidos de conexão com a jurisdição de outros Estados, deixa de haver enquadramento para a investigação de evasão fiscal”.
Apesar de António Costa ter preferido não responder diretamente ao desafio de Assunção Cristas, o próprio Ministério das Finanças já admitiu ter ido além do que definiam as diretivas internacionais. No final de agosto, em resposta ao Observador, explicava porquê: “A mesma razão que leva em termos internacionais a haver troca de informação sobre saldos bancários é a que justifica em Portugal o acesso, nos mesmos moldes, aos saldos bancários de todos os residentes (excluindo aqueles cuja conta seja qualificada como de baixo risco, designadamente por não atingir um determinado montante)”.
Mais, continuava o gabinete de Mário Centeno: “Não nos parece aliás possível sustentar que fosse admissível o acesso ao saldo bancário de um emigrante português em França com conta em Portugal (DAC2); ou de um cidadão americano residente em Portugal (FATCA); sem que fosse igualmente admissível o acesso nos mesmos termos ao saldo bancário dos outros residentes em Portugal. O Governo anterior aceitou as obrigações internacionais relativas aos dois primeiros casos (Diretiva DAC2 e Acordo FATCA com os EUA, respetivamente)”. É uma questão de constitucionalidade, argumentam os socialistas.
Já em setembro, no Parlamento, o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Fernando Rocha Andrade, confirmou essa mesma orientação. “Há cidadãos de primeira e segunda? A reserva da privacidade vale mais para uns do que para outros? Não podemos aceitar”. Ou os primeiros mecanismos que só abrangem cidadãos não residentes com contas em Portugal representam “uma inaceitável invasão da privacidade, ou então temos de aceitar alguma perda de privacidade em nome do combate à fraude e evasão fiscal”, argumentou o governante.
Apesar das críticas do CDS, a questão parece estar bem resolvida para o Governo socialista: sim, era preciso ir mais longe, para aumentar a eficácia do combate à fraude fiscal; não, a diretiva comunitária e o acordo com os Estados Unidos não se aplicavam aos residentes portugueses com saldos bancários em Portugal; mas, à luz do que diz a Constituição, o Estado não pode criar uma sociedade de cidadãos de primeira (não monitorizados) e de segunda (monitorizados).
Enganador
Assunção Cristas tem razão quando diz que o Governo socialista não se está a limitar a cumprir os acordos internacionais celebrados pelo Governo PSD/CDS quando pretende ter acesso a informação sobre saldos bancários superiores a 50 mil euros de cidadãos portugueses residentes em Portugal. Mas a verdade é que o Ministério das Finanças nunca se escudou nesse argumento — no entendimento do Executivo socialista foi sempre uma questão de constitucionalidade: se a medida se aplica a uns cidadãos, tem de se aplicar aos restantes. Mais: no debate quinzenal, António Costa nunca respondeu em concreto à questão sobre a situação dos portugueses residentes no país. Pelo que, objetivamente, não pode ser acusado de mentir.