Há muitas formas de retratar um tempo e os brinquedos podem ser uma delas. Nenhuma infância está desligada da História, da Cultura, da Política, embora isso nem sempre seja o ângulo escolhido para a olhar. Mas quando falamos da Concentra, a empresa que há 50 anos tem a sua história indelevelmente cruzada com a nossa, esse ângulo impõe-se, e falar dele ou partilhá-lo com as nossas crianças pode ser tão ou mais urgente do que oferecer-lhes um brinquedo.

Assim, a história das nossas infâncias e de muitas das nossas alegrias materializadas em bonecos, jogos, carrinhos e consolas, começou na verdade na sinistra Noite de Cristal que varreu a Alemanha a 9 de novembro de 1938. Muito evocada pela queima de livros que o regime nazi queria fazer desaparecer, a Kristallnacht, foi também uma noite de progroms, ataques aos judeus, assassinatos, prisões e destruição dos seus bens. Na cidade de Solingen, a fábrica de cutelaria Feist foi destruída, o avô de Pedro Feist, fundador da Concentra, foi preso. A família decidiu abandonar a Alemanha e estabelece-se em Portugal logo em 1939. Esta história foi recordada pelo próprio Pedro Feist, hoje com 80 anos, numa emocionada conversa com o Observador.

Peddro Feist, 80 anos, na festa das 5 décadas da Concentra

Pedro Feist, 80 anos, na festa das 5 décadas da Concentra

100 contos para representar brinquedos

A sua história é idêntica à de milhares de judeus no século XX: perseguição, fuga, perda, recomeço. Neste caso, o recomeçar da família Feist foi em Lisboa. Nos anos da Segunda Guerra Mundial, o pai de Pedro criou uma pequena empresa para ajudar os judeus em fuga da Alemanha a manterem os seus bens. Chamou-lhe Concentra. Depois da guerra fundou as Chaves Feist. Quando, em 1966, Pedro, ex- jogador da seleção nacional de andebol, convence alguns sócios das Chaves Feist a investirem 100 contos numa empresa de representação de marcas de brinquedos, o pai sugeriu-lhe que recuperasse um nome que simbolizava solidariedade: Concentra. Assim ficou.

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A Concentra nasceu como um showroom, na rua Garret, no Chiado, por cima da livraria Bertrand, onde as empresas que no Natal ofereciam presentes aos filhos dos empregados podiam vir escolher os brinquedos. Pedro Feist, que viria a ser durante vários ano vice-presidente da Câmara Municipal de Lisboa e deputado da Assembleia da República, tinha então três empregados. O negócio correu bem e Pedro Feist parecia ser um visionário do mundo dos brinquedos: um dos seus primeiros sucessos foi o jogo de futebol Subbuteo, que teve direito a uma anúncio nos jornais estrelado pelo próprio Eusébio e por dois dos filhos de Pedro Feist.

Anúncio publicitário do Subbuteo com Eusébio e um dos filhos de Pedro Feist

Anúncio publicitário do Subbuteo com Eusébio e um dos filhos de Pedro Feist.

Mas a boneca Sindy, com as suas roupas da moda para as meninas vestirem e despirem, que foi também o primeiro brinquedo da Concentra a chegar à televisão, foi a alavanca da marca. Num tempo em que não se tinha medo que as meninas que brincam com bonecas e gostam de roupas fossem “fúteis”, a Sindy vendeu milhares. Depois veio o Action Man. Feist recorda que os seus sócios torceram o nariz à novidade, porque não lhes parecia bem “isso de os rapazinhos andarem a vestir bonecos”. Mas afinal o soldado e os seus acessórios, que iam de carros a roupas de combate, conquistaram logo os rapazes.

A Concentra deixou de ser sobretudo um showroom para os presentes de Natal e festas de aniversário e passou a ser a representante de brinquedos internacionais, que vendia para o comércio a retalho de todo o país. Hoje tem cerca de 300 empregados. Depois da Sindy os anúncios televisivos de brinquedos tornaram-se habituais e a empresa criou logo uma forte ligação aos média que sempre explorou. Investir num bom anúncio tornou-se uma das estratégias da marca e, quando, na década de 80, o acesso à televisão se massificou, isso significou que antes de chegar às mãos das crianças como realidade os brinquedos já se impunham no seu imaginário.

O infindável universo dos brinquedos Meccano foi outra das apostas da Concentra ainda nos ano 70

O infindável universo dos brinquedos Meccano foi outra das apostas da Concentra ainda nos ano 70.

Dos brinquedos materiais aos jogos virtuais

Apesar do tempo que dedicou à política, Pedro Feist diz que nunca deixou de ir às instalações da empresa, e nunca deixou de acompanhar o que ia mudando na infância e nos brinquedos. Hoje já tem bisnetos e continua a ser capaz de falar sobre carrinhos, bonecas e consolas. Nestes 50 anos viu o mundo dos brinquedos materiais transformar-se a pouco e pouco no mundo dos jogos virtuais. Procurou não perder o passo. Hoje a Concentra direciona o seu olhar para todos os gadgets tecnológicos que o mercado lança para crianças e pré-adolescentes. Tem que fazer face à crise financeira que fez diminuir o investimento em brinquedos, às lojas chinesas, ao fim do comércio a retalho e ao domínio dos hipermercados. A marca associou-se aos canais infantis e tenta ser a primeira a satisfazer a procura dos brinquedos que nascem das séries televisivas e dos filmes de animação. A verdade é que os brinquedos de que ouvimos falar têm quase sempre a marca Concentra por trás.

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A história da marca esteve em exposição, no passado sábado, na Terra dos Sonhos, na Junqueira.

Entre o Action Man e o Noddy passou quase meio século. Os brinquedos hiper-realistas como a Barbie dão lugar a brinquedos onde impera o mundo da magia como as Flying Fairies. A ideologia subjacente a muitos bonecos e jogos torna-se vaga. O heroísmo combativo dá lugar a bonecos e jogos que refletem as obsessões pedagógicas e didáticas. Os jogos de mesa para jogar em família são cada vez menos. Os jogos para jogar sozinho são cada vez mais.

Talvez por isto valha a pena recordar a história da família Feist. Porque nenhuma infância está desligada da circunstância presente, passada e futura. Nenhuma criança deverá ser educada sem consciência histórica. As lágrimas que Pedro Feist derramou ao recordar connosco a sua travessia e a dos seus antepassados são a maior e a mais sólida lição que a Concentra nos pode dar.

Recorde os muitos brinquedos que fizeram a alegria das nossas infâncias na fotogaleria no topo da página.