Os argumentos pró e anti vacinação têm vindo a esgrimir-se desde que, apenas dois anos depois de Portugal receber um diploma da Organização Mundial de Saúde (OMS) a certificar a eliminação do sarampo (e da rubéola), se soube que há um novo surto da doença no país. No dia em que uma jovem de 17 anos morreu, na sequência de uma pneumonia causada pela infeção do vírus do sarampo, o debate subiu de tom. Quando foi revelado que a única vítima mortal do surto (até ao momento), que já tem 21 casos confirmados e 15 em investigação, não tinha sido vacinada por opção dos pais, a discussão bateu no vermelho. Numa espécie de ponto de ordem à mesa, respondemos a quatro dilemas essenciais sobre a não-vacinação de crianças.

Os pais têm o direito de tomar decisões que prejudiquem os filhos?

“Sabemos que basta vacinar entre 90% e 95% da população para as doenças serem controladas e desaparecer o risco de contágio significativo”, começa António Vaz Carneiro, médico, professor e diretor do Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.

É porque sabem disso mesmo, diz, que alguns pais (por acreditarem que as inoculações fazem mais mal do que bem ou que provocam autismo) optam por não vacinar os filhos, com a tranquilidade de quem sabe que pode sempre usufruir da chamada “imunidade de grupo”.

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Problema: os vacinados podem contrair as doenças de forma mais leve e mesmo assim infetar os não vacinados, e de forma bem mais aguda (“As encefalites e pneumonias por sarampo só acontecem a pessoas não vacinadas”, garante o médico) — e aí não há imunidade de grupo que lhes valha.

Já para não dizer, acrescenta o especialista, que do ponto de vista ético e moral a atitude é profundamente errada: “Estes pais querem os benefícios da vacinação global mas sem correr os tais riscos percecionais que associam ao ato de vacinarem os filhos e isso é uma completa distorção do bem social. Não é aceitável, não é legítimo que os pais se sirvam ardilosamente destas circunstâncias excecionais”.

Sobre os argumentos anti-vacinação, o médico é peremptório: “Não se pode afirmar que não se acredita na ciência, a metodologia da ciência não é questionável, está muito bem escrita e fundamentada, para uma teoria ser aceite precisa de ser estudada e validada. Sabemos que a vacinação diminui muito a incidência de doenças infectocontagiosas porque existem estudos. É simples: há toneladas de estudos que demonstram o benefício das vacinas e nem um que mostre o contrário, não há, não existe. As pessoas podem acreditar que a Terra é quadrada, que há fantasmas, que o Elvis está vivo e que os dinossauros ainda andam por aí. Cada um tem o grau de loucura que quer, acredita no que entende. Neste caso, não é aceitável“.

A infecciologista Ana Horta concorda, diz que existe muita desinformação e esclarece: além de raros, quaisquer efeitos secundários decorrentes da vacinação contra o sarampo são preferíveis às complicações que a falta da inoculação pode provocar. “Acredito que os pais o fazem para o bem dos filhos — e por isso mesmo também acho que estes pais, que estão a sofrer porque perderam uma filha, não devem ser crucificados –, mas é importante que saibam que o risco de desenvolverem um sarampo grave e de correr mal, como aconteceu neste caso, é muito maior do que qualquer reação adversa à vacina.” Também alerta: por muito que, neste momento, a grande maioria da população portuguesa esteja vacinada e que a minoria não-vacinada usufrua disso, a herança imunitária não dura para sempre. “Cada vez há mais pessoas que não estão vacinadas, e têm chegado outras, imigrantes ou refugiados, que podem também não estar, isso aumenta o número de casos e a probabilidade de serem mais graves.”

Como são os guardiões legais das crianças e têm liberdade para decidir por elas, os pais ou encarregados de educação, apesar de não deverem, dizem os especialistas, podem decidir não vacinar deliberadamente os filhos. Qualquer decisão que tomem, explica Vaz Carneiro, a não ser que haja efetivamente dolo, intenção de as prejudicar, é legitimada perante a lei: “Se alguém com cancro decidir não fazer tratamento, pode fazê-lo. É igual se tomar a mesma decisão relativamente a um filho. Em termos legais, parte-se sempre do princípio de que os pais pensam sempre no melhor para os filhos — como para eles próprios”.

O Estado deve intervir?

De acordo com as estimativas da Direção-Geral de Saúde, cerca de 5% das crianças e jovens até aos 18 anos não estão vacinados contra sarampo, papeira e rubéola — apesar da inclusão da vacina tríplice no PNV. Teoricamente, pelo menos, a imunidade de grupo ainda estará garantida. Mas e se a expressão dos movimentos anti-vacinação aumenta e os números de caso de infetados também? Será caso para, sob pena de limitar as liberdades individuais dos cidadãos, instituir legalmente a obrigatoriedade das vacinas?

Se o Estado nos obriga a andar de capacete de mota e nós aceitamos essa ingerência — que só nos beneficia a nós, que andamos de mota –, por que não havemos de aceitar que se legisle num caso de saúde pública?”, questiona de volta Vaz Carneiro. “Não me chocaria rigorosamente nada que o Estado decidisse impor a vacinação, acho que devemos aceitá-lo, em nome do bem comum. Ainda assim, antes disso acho que é importante perceber qual a percentagem de miúdos que não foram vacinados em 2016, pode ser um número tão pequenino que nem justifique a obrigatoriedade.” Ana Horta assina por baixo: “Penso que sim, que a vacinação devia ser obrigatória. Até porque agora quem decide pelas crianças são os pais”.

Não será de resto uma medida inédita, existem outros exemplos de ingerência estatal na saúde individual, lembra António Vaz Carneiro: em Portugal, se um doente com tuberculose recusar cumprir o tratamento prescrito, os médicos podem recorrer à via judicial e obrigá-lo a ir, todos os dias, à hora marcada, ao centro de saúde engolir os comprimidos, à frente de um profissional de saúde. “Para proteger a sociedade em geral, um doente com tuberculose pode até ser internado compulsivamente.

Em Portugal, no caso da não vacinação, não existem registos de pais levados a tribunal por médicos — talvez porque até à morte desta quarta-feira, a questão nunca se tenha colocado de forma tão grave. Mas o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida tem capacidade para suspender temporariamente o direito parental. “Já aconteceu várias vezes, sobretudo no caso de Testemunhas de Jeová, em situações em que as crianças necessitam de transfusões de sangue para sobreviver”, diz Vaz Carneiro.

As escolas podem recusar alunos não vacinados?

A lei portuguesa é clara: a não-vacinação não é argumento para a recusa de matrícula ou frequência nos estabelecimentos públicos de ensino. “Temos a obrigação de conferir os boletins e de entrar em contacto com os encarregados de educação para os incentivar a regularizar a situação, mas se eles recusarem não há nada que possamos fazer“, explica Manuel Pereira, presidente da Associação Nacional de Dirigentes Escolares (ANDE). Nem a falta de apontamentos nos espaços reservados aos casos de tétano e difteria, únicas doenças com vacinas obrigatórias, dá direito à não aceitação dos alunos, quanto mais as das restantes inoculações previstas no Plano Nacional de Vacinação (PNV).

De acordo com o ministro da Educação, hoje em declarações aos jornalistas, esta não é sequer uma “questão premente”: “O mais importante é a informação às famílias de que este surto tende a estabilizar”. Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas, concorda. “Sou diretor há muitos anos e entre ontem e hoje falei com dezenas de outros diretores; nenhum deles me falou de casos de pais que não vacinam os filhos, é uma situação residual.”

Em declarações escritas, citadas pelo Jornal de Notícias, o ministério de Tiago Brandão Rodrigues explicou que a única coisa a que as escolas estão obrigadas, neste contexto, é à informação das autoridades de que os alunos x ou y não estão protegidos contra as doenças previstas no PNV: “As escolas não podem impedir a matrícula. O que a escola está obrigada a fazer nestas situações é comunicar ao aluno e encarregado de educação, bem como às autoridades de saúde, que as vacinas não estão em dia para que estes tomem as providências necessárias”.

No caso das escolas privadas, diz Rodrigo Queiroz e Melo, diretor executivo da Associação de Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo (AEEP), a história é (ou pode ser) outra. Durante a tarde desta quarta-feira, a AEEP enviou aos cerca de 500 associados uma circular, a que o Observador teve acesso, a explicar que, apesar da legislação em vigor, as instituições privadas de ensino podem estabelecer regras próprias que impeçam a matrícula de alunos não vacinados.

Na prática, com este esclarecimento, a AEEP abre a porta à recusa de alunos sem boletins de vacinas em dia. “Foi depois de recebermos dois ou três questionamentos, por parte de associados, a propósito das regras jurídicas aplicáveis, que decidimos emitir esta circular. A lei impede realmente a recusa de alunos não vacinados. Mas no caso das escolas privadas há exceções: se essa exigência constar dos regulamentos internos, os colégios podem fazê-lo. Desde que não sejam inconstitucionais podemos ter regras próprias.”

E avisar os pais dos outros que há não-vacinados entre eles?

Neste caso, garante o diretor executivo da AEEP, não há qualquer regime especial para os privados: “Todos os alunos têm direito à reserva da vida privada e das decisões dos pais. Não há nenhum fundamento para divulgar a situação pessoal de um aluno, nesta ou em qualquer outra circunstância”.

Por muito que acredite que os pais que optam pela vacinação — a maioria — não devam ser desconsiderados, Filinto Lima concorda: “Há dados pessoais que não podemos revelar. Como não vou dar o número de telemóvel de um aluno a outro pai, também não posso revelar que há crianças na escola que não têm as vacinas — muito menos revelar os nomes delas“. O que não significa que as escolas não possam e devam agir se detetarem casos de crianças doentes. Como já fazem, aliás: “Se suspeitar que há um aluno na minha escola com uma doença infectocontagiosa, seja ela qual for, esse aluno é enviado para o centro de saúde, juntamente com o encarregado de educação, e só volta a ser admitido quando os médicos confirmarem que está curado. Mas não vou avisar os outros pais. No máximo, se for caso disso, como acontecia antigamente com a tuberculose, vou chamar o delegado de saúde, que vai fazer o rastreio da situação e dizer-me por fim se tenho de tomar alguma atitude ou não.”

No fundo, diz a infecciologista Ana Horta, não há sequer motivo para dar conta dos espaços em branco nos boletins de vacinas dos filhos dos outros, não representam risco de maior: “Quem tiver sido vacinado vai desenvolver sempre formas muito ténues da doença, ou nem isso”. António Vaz Carneiro acha o mesmo: “Os pais não têm qualquer direito de prejudicar os filhos dos outros, mas neste caso quem fica a perder são os miúdos, coitados, que não são vacinados e estão desprotegidos”.