Magia, Fantasia, Melodia, Mistério, Mimo ou Fada do Lar. As mensagens contidas nas embalagens dos sabonetes Confiança não se limitam aos nomes escritos nos rótulos e muito menos aos slogans de “frescura em corpo e aroma” ou “o melhor e único pó de sabão que não irrita a pele”. Nos bonitos invólucros que têm embrulhado retângulos perfumados desde 1894, Nuno Coelho encontrou uma parte da História de Portugal ao longo do século XX, uma manifestação do consumo e dos costumes do país e, claro, “um incrível espólio gráfico” que merecia ser partilhado.
Foram precisos mais de quatro anos de investigação intensiva, uma tese de doutoramento, inúmeras viagens e uma coleção pessoal que tem sido desenvolvida desde 2004 para chegar ao livro “Uma História de Confiança — A indústria de saboaria e perfumaria no século XX português”. 250 páginas ilustradas que deram também uma exposição na Casa dos Crivos, em Braga, onde a obra é lançada esta sexta-feira, 12, pelas 21h30. Segue-se, na próxima quinta-feira, pelas 18h00, a apresentação na loja A Vida Portuguesa do Intendente, em Lisboa.
“A minha aproximação à Confiança deu-se através dos produtos, e das respetivas embalagens”, começa por explicar o autor, designer gráfico vocacionado sobretudo para o estudo das imagens produzidas ao longo do século XX em Portugal. “Uma vez que as embalagens são efémeras e descartáveis, considero que há um maior risco de perda se esta materialidade não for salvaguardada a tempo”, continua o investigador em entrevista ao Observador. Sobretudo se essas mesmas embalagens pertencerem a “um dos melhores e mais antigos exemplos industriais do nosso país”, constituírem uma manifestação “do melhor design gráfico que se realizou em Portugal ao longo da primeira metade do século XX” e tiverem o poder de acompanhar as principais convulsões e reformas nacionais.
“Há uma ligação direta entre a história de Portugal e a escolha de motivos e das designações de marca pela Confiança. Para mim, o design gráfico produzido pela Confiança é um espelho dessa história. Desde a sua fundação em 1894 até aos dias de hoje, presenciamos nos produtos da Confiança os cinco regimes políticos que Portugal atravessou (Monarquia, Primeira República, Ditadura Militar, Estado Novo e Segunda República) e dos contextos sociais, económicos e culturais resultantes de cada um deles”, afirma Nuno Coelho.
Olhando para os rótulos reproduzidos na obra, há exemplos literais dessa ligação histórica — como o sabonete Pátria Livre, alusivo à implantação da República e onde não falta a data 5 de outubro de 1910 impressa com todas as letras — e outros que requerem alguma interpretação, como a recorrência aos motivos patrióticos a partir da década de 1940, em pleno Estado Novo. Mas a análise gráfica dos mais de 100 anos da marca que chegou a ter uma oficina tipográfica inserida na fábrica, de modo a fazer os seus próprios rótulos, é uma festa de diversidade, espelhada sobretudo nas últimas 70 páginas do livro, profusamente ilustradas e onde os motivos impressos nas embalagens são divididos em temas como “flores, natureza e paisagens”, “símbolos e figuras nacionais”, “música e dança” ou simplesmente “desporto”. Muitos dos documentos reproduzidos no livro estão agora a ser mostrados pela primeira vez, sendo que a maioria foi retirada do espólio pessoal de Nuno Coelho, colecionador da marca há mais de dez anos.
Rótulo a rótulo, para estudar as embalagens produzidas pela Confiança, o investigador teve de mergulhar na história da marca e na fábrica em si. Isto explica que o livro seja, mais do que um mero documento visual, uma investigação completíssima que chega a contextualizar a evolução da higiene em Portugal — o novo hábito por trás da necessidade de criação da marca, fundada por dois bracarenses sem qualquer experiência no ramo da perfumaria –, os processos de fabrico e embalamento dos sabonetes Confiança ou até uma pequena contextualização da industrialização em Braga no final do século XIX.
Neste processo, “foi interessante perceber que, no seu auge (anos 50), a fábrica da Confiança era uma espécie de cidade dentro de uma cidade, oferecendo aos seus operários e operárias uma série de valências que são pouco comuns, senão mesmo inexistentes, nas atuais fábricas do país”, diz Nuno Coelho, referindo-se por exemplo ao apoio médico extensível às famílias dos funcionários, à creche, ao refeitório, à biblioteca, ao salão de festas e até à sala de teatro com máquina de projeção de cinema que chegou a funcionar no edifício histórico da Rua Nova de Santa Cruz (hoje em dia desocupado, desde a transferência para novas instalações, em 2005). “Creio que o sentimento de pertença, da parte de quem trabalhava nas fábricas, era maior nessa época. Provavelmente não será uma grande novidade para pessoas dedicadas à arqueologia industrial, mas para mim foi bastante interessante tomar consciência desse facto.”
Segunda saboaria e perfumaria mais antiga da Península Ibérica — primeiro veio a Ach Brito, fundada por dois alemães em 1887, no Porto (e atualmente detentora da Confiança) — a marca centenária não era alvo de um estudo aprofundado desde a monografia lançada em 1944, por ocasião das suas bodas de ouro. Algo que Nuno Coelho, que tem vindo a explorar também os arquivos de outras marcas históricas como os lápis Viarco e os chás Gorreana, explica com uma conotação negativa, finalmente a ser ultrapassada:
“Com o final do Estado Novo e com a adesão à CEE, as marcas portuguesas passaram a ficar conotadas com um certo sentido de arcaico, retrógrado e repressivo, por serem conotadas com o antigo regime político. Só atualmente se recuperou esse léxico visual desenvolvido durante o Estado Novo, ao qual se retirou grande parte dessa carga negativa. Isso tem vindo a ser desenvolvido pela via comercial, com projetos como A Vida Portuguesa, mas também a nível da investigação em contextos académicos. É um fenómeno relativamente recente, daí se explica um certo vazio não só ao nível da Confiança mas também de outras fábricas que continuam à espera que a sua história seja escrita.”
Dos “rótulos importados” à oficina tipográfica interna
Rosalvo da Silva Almeida e Manuel dos Santos Pereira foram os dois homens que, aos 21 e 26 anos de idade, respetivamente, resolveram fundar a Confiança na sua cidade-natal investindo cinco contos de reis, metade cada. A marca foi registada no dia 12 de outubro de 1894, para responder à nova necessidade de tratar da higiene pessoal, sendo já nessa altura o sabão — uma invenção que remonta a tempos primitivos, como escreve Nuno Coelho –, o produto mais usado para a lavagem do corpo.
“A Saboaria e Perfumaria Confiança surge justamente na época em que a higiene e os produtos a ela associados passaram por processos de industrialização e se ‘profissionalizaram’, dando origem a toda uma indústria de cosmética que deu os primeiros passos na viragem do século XIX para o século XX e que ainda hoje é uma das mais vibrantes em todo o mundo”, lê-se na página 25 do livro.
Numa altura em que os sabonetes e perfumes estavam reservados às classes com mais poder económico, a Confiança — juntamente com a então rival Ach Brito — dedicou-se à produção industrial deste tipo de produtos. Nos primeiros anos fabricavam-se cerca de mil caixas de sabão por mês, “uma quantidade considerável para a época”, escreve Nuno Coelho.
Ironicamente, a primeira saboaria fundada por portugueses de toda a Península Ibérica começou por produzir marcas estrangeiras e “rótulos importados”, uma expressão que se usava para suavizar a falsificação de produtos de outros países (como o famoso sabonete Mariposa, na verdade uma cópia de um original alemão). Foi só em 1903, já depois da entrada de um terceiro sócio, Domingos José Affonso, e da injeção de mais capital, que se começou a produzir “a marca da casa”, embora os rótulos em francês — como o “Huile aux Fleurs” ou o “Parfum Formidable” — continuassem a ser os mais populares. “Este facto devia-se a uma crença generalizada da sociedade de então, que ironicamente perdura até aos dias de hoje, de que os produtos estrangeiros, pelo simples facto de virem de além-fronteiras, eram de qualidade superior”, escreve o autor de “Uma História de Confiança”.
No início do século XX, os principais mercados eram das regiões circundantes, por causa do elevado valor dos portes, mas já havia vida para além do sabão. “No final da década de 1910, a marca Confiança entra na casa dos portugueses não só sob a forma de sabonetes mas também como pó-de-arroz, água de colónia, sabonetes medicinais, extratos extrafinos e óleos com origem nas antigas colónias portuguesas” (p.55). Os números impressionam: em 1925, 21 anos depois da fundação, já havia 150 marcas diferentes de sabonetes e “apreciável variedade de pó-de-arroz, cremes, pastas-dentríficas, stiques para a barba, águas-de-colónia, loções e essências”.
Depois da ampliação da fábrica e da construção de um novo edifício para aumentar a produção, os tempos áureos vieram com o Estado Novo, em grande parte como resultado do protecionismo económico instaurado pelo regime. Nos anos 50, década da consolidação da marca, a fábrica bracarense já tinha a sua própria oficina tipográfica interna para produzir todos os rótulos e embalagens, desenhados pelo maquetista portuense Orlando Erasto Portela. Nessa altura produziam-se cerca de três milhões de sabonetes diferentes por mês, não só para o comércio mas também para empresas e instituições. Já nos anos 60, e depois de investir numa nova máquina de miniaturas e no nicho da produção exclusiva para a hotelaria, “a fábrica fornecia sabonetes a cerca de 90 por cento dos hotéis nacionais”.
Do auge para a recessão, nos anos seguintes a empresa teve de enfrentar a perda dos mercados angolano e moçambicano, por causa da Guerra Colonial, uma nova administração de um grupo de industriais do sabão (já não dentro da família) e sobretudo uma quebra no consumo de sabonetes, em grande medida motivada pela utilização de produtos mais modernos e sintéticos — o que permitiria subverter a letra de uma conhecida canção para algo como “o gel de banho matou o protagonismo do sabonete”.
Tal como aconteceu com outras marcas históricas como a Olaio, “o declínio da Confiança foi acompanhado pelo declínio do Estado Novo”, lê-se na página 130 do livro, e agravado com o fim do protecionismo económico e a entrada de marcas estrangeiras concorrentes. “Para enfrentar as novas condições do mercado, a fim de otimizar a produção e as vendas, a Confiança começou a apostar nas grandes superfícies comerciais e nas multinacionais de produtos de higiene. Durante a década de 1980, começou a produzir marcas brancas para super e hipermercados, um conceito de produto introduzido em Portugal nessa altura” (p.137). Entre os clientes contam-se o Modelo, o Continente, o Jumbo/Pão de Açúcar, a Johnson & Johnson e a Mustela. A produção de marcas próprias continuou, mas agora reservada a um nicho de clientes.
“Na viragem do milénio, o panorama da Confiança é desolador. A empresa encontrava-se reduzida a 23 trabalhadores: 12 homens e 11 mulheres”, e as máquinas trabalhavam apenas um dia, estando paradas o resto do mês. Para garantir a sobrevivência, a empresa vendeu o edifício histórico da fábrica e transferiu a produção para novas instalações até ser adquirida, no final de 2008, pela Ach Brito, por sua vez adquirida, em 2015, por um grupo de investidores portugueses.
Os últimos anos têm sido, portanto, de investimento e rebranding para fazer renascer a marca e valorizar o seu enorme património. E se, até por efeitos do nome, não falta Confiança no futuro, agora também já não falta uma biografia para arrumar décadas de história e de rótulos inspirados.