Os aplausos que invadiram o Teatro Tivoli quando Jane Goodall entrou no palco bastavam para a apresentar: o National Geographic Summit esteve esta quinta-feira em Lisboa pela primeira vez e os bilhetes esgotaram para receber uma das estudiosas mais proeminentes dos chimpanzés selvagens — Goodall até lhes dava nomes, algo que, para os procedimentos científicos da época, era algo inimaginável porque comprometeria a isenção do cientista –, ao lado da fotógrafa Jodi Cobb (cuja entrevista ao Observador pode ler aqui) e do ativista Tristram Stuart.
“Já não podemos confiar em nada”. Entrevista com a fotógrafa aventureira da National Geographic
Jane Goodall soube acompanhar os aplausos: com três peluches nas mãos (um macaco, uma vaca e um castor), a cientista apresentou-se de modo peculiar. “Uh, uh, uh, ah, ah”, disse ela. E depois traduziu: “Isto significa, ‘Sou eu, Jane’“. O público não podia deixar de rir. Porque Jane era a única que podia apresentar-se deste modo: a primatóloga e ativista britânica de 83 anos fez descobertas fundamentais sobre o comportamento dos primatas, ajudando a entender o comportamento do próprio ser humano. Passou anos em África, um sonho antigo que nutria desde menina, depois de ter sido convidada por um amigo para se mudar para o Quénia. Despediu-se do trabalho como secretária em Londres, passou a trabalhar como empregada de mesa e em seis meses havia juntado o suficiente para as passagens. Sem qualquer curso superior, apenas dotada de uma enorme curiosidade científica, Jane Goodall começou os seus estudos.
Ainda era criança quando essa curiosidade floresceu, recorda ela mostrando algumas fotografias ao público. Quando tinha quatro anos, os pais levaram-na de férias para uma quinta com vacas, galinhas e porcos. Jane vivia em Londres, por isso aquela era a primeira vez que convivia de perto com estes animais: “Nem sequer sabia de onde saíam os ovos, ninguém me tinha dito!”, brincou. Um dia fugiu de casa porque queria ver um ovo a eclodir: “Encontrei um galinheiro vazio. E esperei, esperei, esperei. Para mim estava tudo bem, a minha família é que não sabia onde eu estava. Até chamaram a polícia”. A mãe não se chateou quando Jane chegou a casa completamente suja: sentou-se no sofá e ouviu a sua história. A ciência começou nessa altura a enraizar-se no seu horizonte: quando a II Guerra Mundial chegou, a família Goodall tinha pouco dinheiro mas Jane juntou algum para comprar um livro que havia encontrado na biblioteca. Era Tarzan, Filho das Selvas, um romance de Edgar Rice Burroughs: “Apaixonei-me, mas o que fez Tarzan? Casou com a Jane errada”, disse a primatóloga.
A formação científica não podia fazer parte da vida de Jane porque a família não tinha como lhe pagar a universidade.
Mas Jane Goodall mantinha em mente a mensagem da mãe: “Quando queremos realmente uma coisa, se trabalharmos arduamente, aproveitarmos as oportunidades e nunca desistirmos, vamos encontrar um caminho”.
Jane Goodall encontrou esse caminho com a proposta do amigo que morava no Quénia. Em Nairobi, Goodall conheceu o paleontólogo e antropólogo Louis Leakey, que lhe guiou os primeiros passos: “Ouvi falar do Dr. Louis Leakey, fui falar com ele sobre animais e ele deu-me trabalho como secretária”. Seguiu-o para a Tanzânia. Tudo começou por lá.
Até àquela época, apenas uma pessoa tinha estudado cientificamente o comportamento dos chimpanzés selvagens: Henry W. Nissen, que tinha passado pouco mais de dois meses na Guiné Francesa. Quando, à beira do lago Tanganica, Louis Leakey conversou com Jane Goodall sobre a possibilidade de ela ser a próxima estudiosa sobre esse assunto, estava a fazer-se história: ““Nessa altura, as raparigas não eram cientistas. Eram enfermeiras, secretárias”. Jane fugiu à excepção.
Duas coisas espantaram a cientista, que concluiu um doutoramento em 1966 sem sequer ter tirado qualquer licenciatura antes: primeiro, o facto de, ao contrário do que se julgava, os chimpanzés terem um nível de inteligência que lhes permitia usar ferramentas a seu favor, algo que se pensava ser exclusivo do ser humano. “Não só o vi a usar um caule como ferramenta, como para o usar como ferramenta tinha de tirar as folhas. Ver isso hoje não é extraordinário. Mas na altura era”, explicou a cientista. E, depois, o facto de eles serem psicologicamente tão semelhantes ao ser humano. Para o bom e para o mau: “Os chimpanzés também têm um lado negro, brutal e até de planeamento da guerra. Podem ser agressivos mas também ter compaixão para adotar um órfão”, exemplifica Jane Goodall.
Mas foi também na selva que Jane Goodall descobriu o outro lado da interação entre humanos e chimpanzés. Lidava com estes animais com uma proximidade pioneira para a época: abraçava e beijava os primatas, ganhava a sua confiança e passava a fazer parte das suas comunidades. A partir de certa altura, apercebeu-se de que o número de chimpanzés estava a decrescer e descobriu o motivo: eram mortos e a sua carne era vendida ilegalmente. Havia até cientistas que, a fim de levarem a cabo as suas investigações, os enjaulavam em más condições. Abandonou então a selva em busca de soluções:
“Houve um corte entre o nosso intelecto e o nosso coração. Acredito que as nossas ações fazem a diferença e temos de decidir que diferença queremos fazer”.
Abriu então um parque natural onde monitoriza a população de chimpanzés e onde, garante, tem conseguido bons resultados na preservação do habitat e dos animais que lá vivem. Tudo porque teve “sempre esperança”, insiste ela.
Tristram Stuart: “Temos de acordar o gigante, que somos nós enquanto cidadãos”
Um braço insistente levantou-se na multidão que se reuniu no Teatro Tivoli para ouvir Tristram Stuart, um ativista mundialmente conhecido e especialista no impacto ambiental e social do desperdício de alimentos. “Eu trabalhei num hipermercado há uns três ou quatro anos. Agora não sei como é, mas nessa época uma das minhas tarefas era pôr lixívia dentro dos caixotes do lixo para os sem-abrigo não irem lá antes da recolha dos resíduos buscar a comida que não era dada [alguma da comida é dada, por exemplo, ao Jardim Zoológico]. Diziam que apanham multas se oferecessem aquela comida, muita dela ainda fresca”, denunciou uma das espectadoras do National Geographic Summit. A rapariga afirma ter sido despedida porque não tinha produtividade. Essa era, pelo menos, a versão oficial. “Mas isso era mentira, eu até costumava fazer horas extra. Fui convidada a sair e acho que era porque me recusava a pôr lixívia na comida e fazia outras tarefas”, contou ao Observador.
Quando levantou o braço, a espectadora queria perguntar a Tristram Stuart se há realmente essa legislação. A sua resposta combinava com o rosto consternado que tinha: “Meu Deus… Eu recebo muitos emails todos os dias de pessoas que me falam das mesmas situações. Algumas pessoas foram processadas e acusadas por tirar comida dos caixotes de lixo dos supermercados. É comida que foi deitada fora, mas que ainda está boa. O supermercado chama a polícia, a polícia detém essas pessoas e depois são acusadas de roubo porque tiraram esses bens de propriedade privada. Até eu já fui preso por causa disso. Mas isto não é roubo, porque não é nada desonesto”, afirmou Tristram Stuart, que fundou uma marca de cerveja artesanal — Toast Ale — feito com pão fresco que era desperdiçado. E prosseguiu: “Acho que todos podemos concordar que roubar comida que foi deitada fora é um crime muito menos grave do que tentar assassinar pessoas que tiram comida que foi deitada fora. Porque é isso que os supermercados fazem: é tornar a comida tóxica. Há pessoas que andam pelas estradas desesperadas à procura de algo para comer e eles põem lixívia na comida”. Tristram Stuart falou até de um teste que fez em supermercados: quando convenceu o dono a doar 100% de todos os desperdícios alimentares da loja, o pessoal passou a estar mais motivado e feliz com os seus postos de trabalho.
“Eu nunca vi nenhum dono de supermercado a ser processado por ter dado comida a um sem-abrigo em vez de a envenenar. De acordo com dados norte-americanos, nem uma única pessoa no mundo foi processada por dar comida. E, portanto, sobre as políticas que dizem que não a podemos fazer, só há uma coisa a dizer: tretas!”
Parte do problema, explicou Tristram Stuart durante a sua palestra, é a semântica. A grande maioria das pessoas pensa que, se algo está no lixo, é porque não está bom para consumo. Isso não é verdade, esclarece o autor de The Bloodless Revolution: as lojas desperdiçam fruta saudável apenas porque não é bonita e cortam mal os vegetais só para caberem nas embalagens que eles criaram. Muita da comida que vai para o lixo, principalmente vinda dos supermercados, está ideal para consumo. Outra palavra que parece mal entendida pelo público é “necessidade” porque, na verdade, estamos a criar e a consumir mais comida do que realmente precisamos: “Queremos mais do que o que basta”. Para exemplificar essa situação, Tristram Stuart fala da Coca-Cola: “Se eu convencer toda esta gente que precisa de comprar e beber uma Coca-Cola, então posso afirmar que preciso desta quantidade toda de latas porque o público procura-as. Mas ninguém precisa de Coca-Cola, não é uma necessidade que coloque a vida de alguém em risco. Em última análise, precisamos mais de não beber Coca-Cola, porque faz as nossas crianças diabéticas e obesas”.
E o que acontece quando as pessoas deixam de entender o que realmente precisam? O que está retratado no mapa aqui em cima, mostrado por Tristram Stuart durante a sua apresentação. A linha dos 100 simboliza um mundo onde a quantidade de comida produzida é exatamente a quantidade de comida consumida. De acordo com o ativista, citando especialistas, os países na linha dos 130 são os mais equilibrados porque “é sempre bom ter um pouco mais, porque é virtualmente impossível viver num mundo onde não há qualquer comida desperdiçada”. Mas a grande maioria dos países, Portugal incluído, está muito acima dessa linha. Temos desperdiçado tanta comida que podíamos acabar com a fome de todas as pessoas do mundo três vezes.
Mas há formas de dar a volta e Tristram Stuart já o provou. Antes ainda de ter criado a cerveja com base em comida desperdiçada, este Explorador Emergente da National Geographic organizou a campanha “Feed the 5000”, que oferece cinco mil refeições preparadas exclusivamente com alimentos de qualidade que teriam sido desperdiçados. Depois, ter em mente a mesma mensagem de Jane Goodall: ter esperança num mundo mais equilibrado.
“Se há 99% de hipótese de sairmos bem sucedidos dessa missão, basta alguns se mexerem em prol do nosso objetivo. Se houver 50% de sucesso, então se calhar é melhor sermos mais algum. Mas se só houver 1% de hipótese de isto correr bem, então temos de nos unir. Todos. Temos de acordar o gigante, que somos nós enquanto cidadãos”, disse Tristram Stuart aos jornalistas.