Quando almoçava com a sua namorada, na manhã de sábado, Rúben Clemente estava longe de imaginar que, menos de 24 horas depois, estaria rodeado de cadáveres na “estrada da morte” em Pedrógão Grande. Bombeiro na corporação de Vieira de Leiria, a 90 quilómetros da localidade atingida pelo incêndio que já matou 62 pessoas, o jovem de 19 anos estava no quartel na noite de sexta-feira quando começaram os primeiros indícios de fogo na Sertã. Ao serviço da equipa de saúde, viu os colegas da equipa de combate a incêndios saírem rumo ao interior do país e dirigiu-se de imediato aos seus responsáveis. “Falei logo com o meu comando para dar a minha disponibilidade caso acontecesse mais alguma coisa“, recorda ao Observador o jovem bombeiro, enquanto descansa antes de regressar a Pedrógão Grande, às 8h de segunda-feira, para render os colegas.

Acabaria mesmo por acontecer mais alguma coisa. No sábado, Rúben passou a manhã com a namorada, Patrícia, com quem almoçou antes de se preparar para ir trabalhar, às 13h. Não esteve muito tempo no emprego — por volta das quatro da tarde, o telefone tocou. Era do quartel: “Perguntaram-me se eu tinha disponibilidade para arrancar naquele minuto para o incêndio que estava a deflagrar em Figueiró”. Falou logo com o responsável do turno da fábrica de aços onde trabalha e explicou-lhe a situação. Em poucos minutos, estava no quartel, e nem teve tempo de se preparar melhor. “Já estava a equipa pronta e eu acabei por me vestir no VFCI08 [sigla para Veículo Florestal de Combate a Incêndios]”, lembra Rúben.

De Vieira de Leiria, o carro seguiu para Pombal, onde se juntou a outros bombeiros de outras localidades para formar um GRIF (Grupo de Reforço para Incêndios Florestais). “Depois da formado o GRIF, fomos para Figueiró, e ao chegarmos lá fomos desmobilizados, porque o incêndio estava dominado. Então, fomos mobilizados para Pedrógão Grande, para o inferno. Nunca tinha visto nada assim. Ao passar o IC8, a adrenalina transformou-se em medo. O fogo ainda não tinha passado para o outro lado, mas as chamas consumiam tudo. Não víamos nada, o fumo era intenso e preto, havia muitas fagulhas e vento”, recorda Rúben. O combate no IC8, estrada que tem estado cortada em diversos pontos e dificultado os acessos à região, foi o mais difícil: “O cenário era de horror, pessoas aflitas a gritar e a passar de carro“.

Dominadas as chamas na via rápida, a equipa foi abastecer o carro e jantar. “Devo dizer que foi a melhor refeição daquele dia. Estava muito cansado e cheio de fome”, lembra o bombeiro, que ainda ficaria em Pedrógão Grande mais uma dezena de horas. Durante a noite, mudaram de terreno. Da floresta passaram para as aldeias, já ameaçadas pelas chamas. “Fomos apagar o incêndio em casas, palheiros e barracos. A população era idosa, mal conseguia andar, só ouvíamos gritos de desespero“, conta. Durante aquelas horas críticas em que o cansaço apertava, foi “essencial” trabalhar em equipa e “rodar funções”. Rúben foi primeiro agulheta, segundo agulheta e estafeta, nomes dados às posições ocupadas pelos diferentes bombeiros quando operam a mangueira de combate às chamas.

O trabalho de Rúben e dos seus colegas “continuou pela noite e manhã dentro” até por volta das 10h30, hora a que chegou a rendição. E o mais assustador da noite só viria depois: “Só quando estávamos na viatura em direção ao nosso quartel, exaustos e com um sentimento de impotência, é que tivemos a noção do que realmente estava a acontecer e dos estragos causados. Passámos pelos carros queimados com alguns corpos carbonizados ainda dentro deles, alguns no chão com o lençol azul preso por pedras para não voar. Foi o horror, nunca pensei que aquele meu dia fosse acabar daquela maneira e que iria ver algo tão horrível”, recorda o jovem, ainda com a imagem bem presente dos cadáveres de quem morreu “de uma forma tão desumana e cruel”. “Era o inferno”, garante.

Rúben falou ao Observador num momento de descanso. Esta segunda, às 8h, já estará de novo em Pedrógão Grande ou noutro lugar aqui à volta — “como o incêndio é imprevisível já espero tudo” — para tornar a combater as chamas. “Sinto que as pessoas precisam de mim, o meu dever é ajudar”, afirma o jovem, que é bombeiro há um ano. “Este foi o meu primeiro incêndio com esta dimensão“, vinca, com um misto de cansaço e orgulho por poder participar nas operações. Impressionado sobretudo “pelo tamanho das chamas”, Rúben Clemente não hesita em afirmar que saiu de lá “exausto”, mas “com o sentimento de dever cumprido”.

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