Eusébio da Silva Ferreira ficará, para sempre, ligado à fama dos tremoços enquanto companhia primordial da cerveja. Tudo por causa de uma lenda urbana, que o próprio se encarregou de desmentir ainda em vida. Afinal, se o homem vinha da terra do camarão, porque raio havia de preferir tremoços? O povo gozou-o enquanto pôde mas a verdade é que o marisco do Eusébio pode ter tanto potencial gastronómico como o camarão. Nem mais. Gozem-no agora.
A afirmação pode soar exagerada, tendo em conta o estatuto do petisco — serve quase exclusivamente de acompanhamento à cerveja, pese embora algumas experiências enquanto substituto da carne em receitas vegan. Mas é essa a grande conclusão a retirar do mais recente jantar do projeto Endògenos, dedicado, precisamente, à dita leguminosa.
Endògenos. O que é?
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Este projeto — cujo acento é grave por opção dos seus responsáveis — foi criado no final de 2013 por Nuno Nobre, consultor na área de gastronomia, e o chefe António Alexandre e materializa-se em jantares periódicos dedicados a produtos nacionais endógenos. Antes do tremoço já foram alvo de celebração a lampreia, a ostra, o ouriço-do-mar, a bolota ou o carapau seco, entre muitos outros.
Coube ao chefe Bruno Rocha, do Flores, o restaurante do Bairro Alto Hotel, a tarefa de pegar no tremoço e estudar todas as suas possibilidades de aplicação, à imagem do que tinha feito com a lampreia no evento anterior do Endògenos. “Foi especialmente aliciante porque é um produto que as pessoas conhecem de uma forma só: salgado”, confessa.
Estudou o comportamento do produto, a sua sazonalidade, e fez-se à estrada. O destino? Vila Nova, aldeia do concelho de Miranda do Corvo onde conheceu Maria da Conceição, que produz e vende tremoços, seguindo uma tradição familiar de várias décadas. Com ela, acompanhou o processo todo: a recolha, a secagem, a cozedura e a lixiviação, obrigatória para eliminar os alcalóides, que são tóxicos. A salga é o último passo e o que menos interessava ao chefe. “Percebi que o tremoço não tinha de ser salgado e que podia parar o processo antes da salga”, explica.
A forma como Conceição trata os tremoços é totalmente artesanal. Por exemplo, a lavagem é feita na água da levada, por causa do respetivo pH. “Há muitos elementos que podem afetar o resultado final”, refere Bruno. E não é tudo: para perceber se o tremoço já está pronto, Conceição usa a unha para o pressionar. “Se ele ceder é porque está pronto”, conta o chefe. A venda é feita, religiosamente, todos os domingos. Sendo que a expressão religiosamente tem, aqui, um significado literal: acontece sempre depois da missa.
Depois desta primeira fase no terreno, foi tempo de voltar à cozinha do seu restaurante. Que também foi, neste caso, laboratório. Dos tremoços de Miranda do Corvo, Bruno e a respetiva equipa criaram farinha, sal, experimentaram curá-los de diversas formas, fizeram fermentações lácticas e até pickles, que optaram por não usar no menu servido na passada quinta-feira, 29 de junho.
“Fomos vendo como é que o tremoço se comportava. A intenção era que tivesse um sabor completamente em cada prato”, justifica o chefe, que criou seis receitas onde o produto se destaca: um pão de tremoços, centeio e lúpulo, um amuse bouche onde o tremoço, adocicado, combinou com camarão (numa alusão à lenda do início do texto), um gelado de tremoço que foi servido a acompanhar um croquete de ombro de porco, estufado durante 20h, tremoços fermentados que vieram com bacalhau e uma sobremesa onde o tremoço se juntou aos seus companheiros do costume: amendoim e cerveja.
O único prato do menu em que o produto foi apresentado no seu estado normal foi o de carne, que juntou o tremoço a codorniz, cerejas e molho de massa azeda, num jogo de sabores doces, ácidos e salgados. “Normalmente, os tremoços têm 3,9g de sal por cada 100g. Era impensável fazer um jantar à base de tremoços salgados”, esclarece Bruno Rocha.
Para o chefe, as conclusões são claras: o tremoço é um produto a que se deve dar atenção. Não só pelas suas propriedades nutritivas (muita proteína, pouca gordura) como pela versatilidade exibida. Na cozinha e não só. “O tremoceiro é plantado por ser um adubo natural, já que liberta muito azoto”, afirma Bruno. E acrescenta: “O tremoço tem é de ser bem acompanhado e entregue aos chefes antes da salga. Porque potencial não lhe falta” Quem diria, hein?