Fernando Rocha Andrade, agora secretário de Estado dos Assuntos Fiscais demissionário, reafirmou esta terça-feira no Parlamento que não cometeu qualquer ilícito no caso das viagens pagas pela Galp durante o Euro 2016.
Esta foi a primeira vez que Fernando Rocha Andrade regressa no Parlamento depois de ter pedido a exoneração do cargo de secretário de Estado dos Assuntos Fiscais na sequência das viagens ao Euro 2016 a convite da Galp. Não era expectável que o socialista respondesse aos deputados sobre o “Galpgate”, até porque não era esse o objeto da audição. Mas o primeiro golpe surgiu logo no início dos trabalhos, pela voz da democrata-cristã Cecília Meireles.
A deputada do CDS começou por lembrar que era “impossível ignorar o óbvio” e as “circunstâncias originais” em que Rocha Andrade se apresenta esta terça-feira aos deputados. E partiu para o ataque: tal como foi confirmado “pelos factos e pelo tempo”, o socialista devia ter percebido “há um ano que não tinha condições para ficar”. “É pena que não tenha feito”, sugeriu Cecília Meireles.
Na resposta, o secretário de Estado demissionário foi taxativo: “A minha opinião não se alterou. Não cometi um ato ilícito. Continuo a manter essa opinião”. Ainda assim, reconheceu Rocha Andrade, depois de ter tido “conhecimento” de um inquérito em curso e da constituição de arguidos, o socialista entendeu “que devia requerer a constituição como arguido” para exercer os seus direitos de defesa e para “esclarecer cabalmente o Ministério Público”.
Mesmo lembrando que podia “continuar a desempenhar funções enquanto arguido”, Rocha Andrade disse ter entendido que a sua continuidade como membro do Governo “seria um fator de perturbação” política para o Executivo socialista, argumentos que António Costa compreendeu e aceitou.
Confrontado por Cecília Meireles sobre o facto de ter dito que conhecia o inquérito em curso, Rocha Andrade foi obrigado a esclarecer: “Eu não tive conhecimento de que ia ser constituído arguido”. Negando ter qualquer conhecimento relativamente ao processo, o socialista explicou que sabia “que havia arguidos constituídos no processo” graças a “relações funcionais” que mantinha, por exemplo, com o seu chefe de gabinete, João Bezerra da Silva — igualmente constituído arguido no processo.
“Estas questões são mais facilmente resolvidas se as anteciparmos. Não vale a pena estarmos aqui semanas à espera a ver se sou ou não constituído arguido, mais vale requerê-lo diretamente”, argumentou o secretário de Estado demissionário.
Rocha Andrade diz que ainda não foi constituído arguido
O segundo momento mais tenso da audição de Rocha Andrade surgiu com a intervenção do deputado do PSD António Leitão Amaro. O social-democrata acusou Rocha Andrade de estar a ensaiar um discurso que não corresponde à verdade: os três secretários de Estado, defendeu Leitão Amaro, já tinham sido constituídos arguidos na quinta-feira e, portanto, não partiu dos próprios a iniciativa de requererem a sua constituição como arguidos.
Uma versão desmentida pelo secretário de Estado demissionário. No domingo, e depois de comunicar a António Costa a sua decisão, Rocha Andrade decidiu requerer a sua constituição como arguido, decisão que formalizou na manhã seguinte. “Na segunda-feira de manhã solicitei ao Ministério Público a minha constituição como arguido”, explicou o socialista.
No entanto, até “às dez horas da manhã de hoje [terça-feira]”, Rocha Andrade assegurou que “não tinha recebido nenhuma notificação” nesse sentido. Ou seja, para efeitos práticos o secretário de Estado demissionário ainda não foi constituído arguido no processo.
Na segunda-feira, a Procuradoria-Geral da República emitiu um comunicado onde dizia que estavam em curso diligências para a constituição dos três secretários de Estado que pediram a exoneração como arguidos — o que corrobora, em parte, a versão de Rocha Andrade.
Mas depois há questão dos timings. Ao que o Observador apurou, a decisão do Ministério Público já estava planeada e não vem no seguimento do anúncio público dos secretários de Estado demissionários de que iriam solicitar a sua constituição como arguidos. Como detentor da ação penal, o Ministério Público é quem determina o timing em que constitui algum cidadão como arguido.
Além disso, e como escrevia o Jornal de Notícias, o Ministério Público enviou a correspondência com as notificações dos três secretários de Estado demissionários na última quinta-feira. Como já admitiram publicamente, Rocha Andrade, João Vasconcelos e Jorge Oliveira já saberiam das diligências em curso e decidiram antecipar-se ao Ministério Público.
Anterior governo mentiu sobre saída países da lista negra de offshores, diz Rocha Andrade
Com Bloco de Esquerda e PCP a não explorarem politicamente o caso “Galpgate”, a audição de Rocha Andrade acabou por centrar-se na decisão do Governo socialista de retirar os territórios de Uruguai, Jersey e Ilhas de Man da lista negra dos paraísos fiscais — o que significa, por exemplo, que os rendimentos de capitais deixam de ser tributados à taxa agravada de 35%. Afinal, era esse o objeto da audição do secretário de Estado demissionário.
A esse propósito, Rocha Andrade acusou o anterior governo PSD/CDS de mentir a países sobre a sua eventual retirada da lista negra dos paraísos fiscais.
Falando na comissão parlamentar de Orçamento, Finanças e Modernização Administrativa (COFMA), Fernando Rocha Andrade disse que o anterior executivo “dizia que tirava e depois não tirava” países da lista negra, sem, no entanto, dar revelar os nomes desses Estados.
“Sucessivos Governos assinaram sucessivos acordos internacionais ou subscreveram promessas no sentido de retirar países ou territórios da lista negra. Portugal teve em pelo menos dois Governos anteriores uma política externa que indiciava uma posição de rever essa lista. Essas promessas foram feitas, nunca foram cumpridas, e parece-nos mau que um país passe por mentiroso”, justificou Rocha Andrade.
A acusação do secretário de Estado demissionário mereceu o reparo da presidente da comissão parlamentar, Teresa Leal Coelho, que advogou que as palavras de Rocha Andrade “põem em causa o interesse nacional”.
Por sua vez, a análise de Teresa Leal Coelho, deputada do PSD, mereceu protestos de PCP e PS sobre a condução dos trabalhos, com o comunista Miguel Tiago a dizer que a presidente da comissão falou “manifestamente no âmbito da subjetividade política”, questionando inclusive num aparte se Teresa Leal Coelho falava como responsável pela comissão ou deputada do PSD.
Quando formalizou a decisão, o Executivo de António Costa argumentou que, “tendo em conta os desenvolvimentos entretanto ocorridos ao nível da implementação de mecanismos antiabuso no plano da tributação internacional”, tornou-se “desnecessária a manutenção de determinados países, territórios e regiões na lista”.
Os territórios de Jersey e da Ilha de Man e o Uruguai são membros do Fórum Global sobre Transparência e Troca de Informações para efeitos Fiscais, tendo Jersey e o Uruguai sido considerados como “amplamente em cumprimento” na avaliação feita pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) e a Ilha de Man como “em cumprimento”, como recorda a agência Lusa.
Além disso, os dois territórios britânicos (Jersey e a Ilha de Man) assinaram um acordo sobre troca de informações em matéria fiscal e, no caso do Uruguai, está em vigor uma convenção para evitar a dupla tributação e prevenir a evasão fiscal, incluindo esta convenção uma norma sobre troca de informações em matéria fiscal.
Na audição parlamentar desta terça-feira, Rocha Andrade repetiu essa explicação: “Todos os três territórios aderiram a mecanismos de troca de informações financeiras. Jersey já era uma prioridade — há uma importante comunidade portuguesa e essa foi a razão fundamental. A Ilha de Man é, de todos os países avaliados e na lista, o único que tem classificação máximo nos termos do fórum global da OCDE”, argumentou.
Quanto ao Uruguai, o secretário de Estado demissionário adiantou outra explicação: “Portugal tem antigas relações históricas com o Uruguai, portanto se estivessem cumpridas as condições. E estavam”, explicou o socialista.
No entanto, há oito territórios que, apesar de cumprirem estes requisitos apontados pelo Governo para fundamentar a exclusão do Uruguai, de Jersey e da Ilha de Man da lista de paraísos fiscais, não foram removidos e continuam a ser considerados offshores: Guernsey, Gibraltar, Ilhas Caimão, Ilhas Virgem Britânicas, Santa Lúcia, Bermudas, Hong Kong e San Marino.
* Horas depois do fim da audição, o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais recebeu a notificação do Ministério Público