Saiu, manteve-se a rondar, e agora está oficialmente de volta. Vítor Escária estava em São Bento como assessor económico do primeiro-ministro António Costa (depois de já ter assumido as mesmas funções no governo de José Sócrates), quando, no verão de 2017, se viu forçado a demitir-se antes de ser constituído arguido no caso das viagens pagas pela Galp ao Euro 2016. Alterações recentes no processo judicial, contudo, levaram a que a porta de São Bento se voltasse a abrir: segundo apurou o Observador, o prazo de seis meses decretado para a suspensão provisória do processo terminou em julho, os arguidos pagaram uma “injunção” ao Estado e, findo o prazo, o processo ficou arquivado. No caso de Escária, a multa era de 1.200 euros. Nem um mês depois, a porta de São Bento abre-se.

Certo é que, desde a demissão, o economista manteve-se por perto. Em 2018, quase um ano depois de se ter demitido, como o Observador noticiou, foi visto a chegar lado a lado com Costa ao gabinete do primeiro-ministro na qualidade de consultor para o processo de negociação do Quadro Financeiro Plurianual da União Europeia e para a preparação do próximo quadro comunitário no âmbito de uma organização tutelada pelo Governo, a Agência para o Desenvolvimento e Coesão. Ou seja, era conselheiro depois de ter deixado de o ser. Na altura, o gabinete do primeiro-ministro fez questão de sublinhar ao Observador que o acaso se deu devido a uma “boleia” e que Escária não estava a trabalhar no gabinete de António Costa.

Mais dois anos volvidos e Vítor Escária era visto novamente com António Costa numa fotografia peculiar: ao lado do primeiro-ministro húngaro, Vikor Órban, durante uma reunião preparatória do tenso Conselho Europeu que iria decidir o quadro financeiro europeu pós-pandemia. Escária aparecia ali, novamente, como consultor do Governo, com vínculo à tal Agência para o Desenvolvimento e Coesão, depois de ter deixado de o ser.

Agora, três anos depois de ter deixado de ser assessor económico do primeiro-ministro por causa do alegado recebimento indevido de vantagem no processo Galpgate, Vítor Escária volta pela porta grande: o economista foi esta segunda-feira nomeado chefe de gabinete do primeiro-ministro, António Costa, substituindo no cargo Francisco André, que vai assumir funções na representação permanente de Portugal junto da OCDE, em Paris. A notícia foi avançada por fonte do gabinete do primeiro-ministro à agência Lusa.

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Vitor Escária, de 48 anos, economista e professor do Departamento de Economia do ISEG — Lisbon School of Economics and Management, chegou a ser acusado pelo Ministério Público no caso Galpgate, em maio de 2019, mas o caso acabou por ser arquivado em julho. Segundo explicou ao Observador uma fonte conhecedora do processo, depois de uma primeira juíza de instrução ter negado a suspensão provisória do processo, uma segunda juíza fez o pedido e tanto o Ministério Público como os arguidos aceitaram. A notificação da suspensão provisória do processo chegaria em janeiro, com um prazo de seis meses. Resultado: terminava em julho. Terminada a suspensão, o processo seria arquivado desde que os arguidos, nesse período, não incorressem no mesmo crime.

A suspensão provisória de processo é, na prática, um arquivamento provisório que implica um pagamento de uma multa e, após um determinado prazo, passa a definitivo, desde que o arguido não volte praticar o mesmo crime. Foi isso que aconteceu. Segundo explicou a mesma fonte, não se trata exatamente de um acordo porque não há assunção de culpa e ambas as partes mantêm a sua convicção: o que há é uma assunção por parte do juiz de que os factos não afiguram suficiente relevância para ir a julgamento. “O Ministério Público mantém a convicção de que houve a prática de um crime, e da parte dos arguidos não há aceitação dos arguidos da prática de um crime”, diz a mesma fonte, não havendo no entanto um julgamento nem uma sentença.

Tal como o Observador explicou em janeiro, quando começou a contar o prazo de seis meses durante os quais os arguidos não poderiam incorrer no mesmo crime para, dessa forma, verem o processo arquivado, as multas aplicadas aos políticos envolvidos no processo iam de 650 euros a 4.800. Eram estas as injunções propostas na altura pela juíza responsável pelo processo: Fernando Rocha Andrade (4.800 euros), Jorge Oliveira (3.500 euros), Vítor Escária (1.200 euros), a sua mulher Susana (650 euros), Álvaro Beijinha (4.000 euros), Nuno Mascarenhas (3.800 euros), Pedro Sousa Matias (1.000 euros) e Luís Ribeiro Vaz (1.200 euros). Pagando essas multas, os arguidos iriam beneficiar com o arquivamento dos autos.

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Em causa está o chamado Galpgate, o caso em que vários responsáveis políticos viajaram para França para assistir a jogos de Portugal no Euro 2016 a convite da petrolífera, e que fez várias baixas no verão de 2017, com destaque para três ex-governantes exonerados — os então secretários de Estado Fernando Rocha Andrade (Assuntos Fiscais), Jorge Oliveira (Internacionalização) e João Vasconcelos (Indústria), entretanto falecido –, assim como o ex-assessor de António Costa Vitor Escária, a sua mulher Susana Escária e os autarcas Álvaro Beijinha (Santiago do Cacém), Nuno Mascarenhas (Sines), além de Pedro Sousa Matias (ex-chefe de gabinete de João Vasconcelos e atual presidente do Grupo ISQ) e Luís Ribeiro Vaz (ex-administrador da ANA – Aeroportos de Portugal). Em maio do ano passado, a fase de inquérito chegava ao fim com o Ministério Público a deduzir acusação contra 16 arguidos, entre eles os dois ex-secretários de Estado, Vítor Escária e Carlos Costa Pina (administrador da Galp e ex-secretário de Estado do Tesouro de José Sócrates). Todos foram acusados do crime de recebimento indevido de vantagem.

O processo foi complexo, como explica o Observador, mas acabou com a juíza Anabela Rocha a decretar que só os gestores da Galp iriam a julgamento, deixando os dirigentes políticos envolvidos no processo apenas sujeitos ao pagamento de uma multa (a chamada “injunção”), ao decretar a suspensão provisória do processo durante um prazo de seis meses. Prazo que terminou em julho.

O consultor que antes de ser já o era

Em junho de 2018, um ano depois de ter rebentado a polémica das viagens ao Euro 2016, António Costa era visto, à chegada para uma reunião com o Bloco de Esquerda no seu gabinete, lado a lado com o seu ex-conselheiro económico, Vítor Escária. Como o Observador escreveu na altura, o economista entrou mesmo com António Costa no edifício do Terreiro do Paço onde estava provisoriamente instalado o gabinete do primeiro-ministro, embora tivesse deixado as funções que exercia no gabinete há quase um ano. “Tratou-de de uma boleia, estavam juntos no mesmo sítio. Foi isso apenas, uma boleia”, apressou-se a explicar na altura fonte do governo ao Observador. “Não está a trabalhar no gabinete” de Costa e “não participou na reunião do Orçamento do Estado com Catarina Martins”, continuava ainda a mesma fonte.

Na verdade, Escária estava a exercer funções de consultor do primeiro-ministro para o processo de negociação do Quadro Financeiro Plurianual da União Europeia e para a preparação do próximo quadro comunitário. “Vítor Escária coordena uma equipa do Instituto Superior de Economia e Gestão [onde é professor auxiliar] que está a prestar assessoria ao Governo, através de um contrato celebrado com a Agência de Desenvolvimento e Coesão, no processo de negociação do Quadro Financeiro Plurianual da UE e da preparação do futuro Quadro Comunitário Portugal 2030, na definição de Instrumentos de Política Pública, modelo de governança, etc”, respondeu ao Observador fonte oficial do ministro do Planeamento e Infraestruturas, na altura.

Ou seja, estava integrado na Agência de Desenvolvimento e Coesão, um instituto público criado em 2013 para coordenar a “política estrutural e de desenvolvimento regional cofinanciada pelos fundos europeus”, que estava sob a tutela do então ministro do Planeamento e das Infrasestruturas, Pedro Marques.

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Testemunha da Operação Marquês e as ligações à Venezuela

Vítor Escária foi o principal assessor económico de José Sócrates entre 2005 e 2011. Devido às ligações à Venezuela, que começou a promover no tempo em que José Sócrates era primeiro-ministro e manteve quando passou para o setor privado, foi envolvido na Operação Marquês, onde depôs apenas como testemunha.

O processo relevou contratos para a construção de 12.512 habitações por parte do Grupo Lena (de Joaquim Barroca e Carlos Santos Silva, amigo de Sócrates) na Venezuela, seguidos pela Comissão de Acompanhamento Portugal-Venezuela. Isto serviu para a acusação da Operação Marquês imputar a José Sócrates um crime de corrupção pelo facto de ter utilizado o cargo de primeiro-ministro “em benefício do Grupo Lena, a troco do recebimento de vantagens patrimoniais a que bem sabia não ter direito”.

Para isto Sócrates ter-se-ia “socorrido de colaboradores que lhe eram próximos e da sua confiança, a fim de, segundo as suas indicações, prestarem o específico apoio ao Grupo Lena”. O procurador Rosário Teixeira, segundo contou o Observador em 2018, desconfiava que Vítor Escária fosse um desses colaboradores, mas o economista não foi acusado de qualquer crime.

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Vítor Escária manteve também ligações à Venezuela através da sociedade Iguarivarius, onde trabalhou a partir de 2012. A empresa de produtos alimentares e não alimentares faturou mais de 200 milhões em contratos públicos com a Venezuela, mas acabou por se tornar famosa no Natal de 2017 quando foi acusada de sabotagem económica pelo presidente venezuelano. Nicolás Maduro acusou então Portugal de sabotar a importação de pernil por parte de Caracas.

Antes desse momento de rutura havia um passado de ligação de Vítor Escária à Iguarivaris, do Grupovarius, liderado por Alexandre Cavalleri. De tal forma que em 2014, o antigo assessor económico de José Sócrates torna-se sócio da holding da família: a Ribeiro Carvalho Cavalleri, SGPS, SA, que detinha o controlo da Iguarivarius.

Como testemunha na Operação Marquês, Vítor Escária contou outros episódios como quando José Sócrates lhe pediu para indicar empresas que construíssem residências para os atletas que iam visitar Moçambique como anfitrião dos Jogos Pan-Africanos. Em 2008, durante jantar de Estado oferecido pelo então presidente moçambicano Armando Guebuza a José Sócrates, o primeiro-ministro chamou Escária à mesa e, como o próprio contou ao procurador Rosário Teixeira houve um momento curioso:

Em África é uma coisa um bocado surreal porque nós não estamos numa sala todos juntos a jantar. Num palanque está uma mesa presidencial [com Guebuza e Sócrates], eles estão lá em cima, depois está o povo cá em baixo. Ele [Sócrates] faz-me um sinal, eu tenho que subir, passar por trás dele (…) e ele diz-me: ‘Quem é que temos aqui de empresas portuguesas que possam fazer casas (…)’”.

Foi então que Escaria olhou à volta “e disse: ‘(…) à volta da mesa estava o eng. António Mota, da Mota Engil, e o Pedro Gonçalves, da Soares da Costa, (…) que eram as duas empresas portuguesas com maior implementação em Moçambique — talvez as únicas que têm capacidade para isto’. José Sócrates respondeu de pronto: ‘Chame-me cá o eng. António Mota’. Eu desci [do palanque], fui chamar o eng. António Mota — portanto isto tudo durante um banquete — o eng. António Mota sobe e então combinam que era preciso fazer não sei quantas casas, que tinham que ser feitas em nove meses (…)”