Vamos partir do princípio que as pessoas no geral gostam dos Grizzly Bear. É um bom princípio e explica-se com alguma facilidade. São quatro rapazes de ar simpático e humilde, fazem canções bonitas, não se preocupam com a roupa que levam para o palco e o nome da banda é ótimo: como quem diz que mesmo a dormir eles mordem. Mas com tudo isto podemos esquecer a razão essencial de andarmos sempre atrás de um novo álbum desta gente. E é muito simples: são músicos extraordinários, fora de série, notáveis e outros adjetivos do género. O novo álbum, Painted Ruins, explica-o logo a partir da primeira canção e mantém o tom até ao fim. “Mas e é melhor que Veckatimest ou não?” E isso é sequer possível?
Comecemos por aí. Veckatimest fez de 2009 um ano irrepetível. Sim, houve aquilo da crise e ficámos sem Michael Jackson e ganhámos a gripe das aves. Mas, insistimos: houve Veckatimest, uma obra prima de cuidado, atenção, de requinte, tudo isto em cima de uma estrutura pop que fica ali mais ou menos a meio caminho entre o eixo de intenções que vai dos Beach Boys aos Animal Collective (mais na floresta, muito menos na praia ou na cidade). Um ano depois a banda estava em Portugal para apresentar o disco ao vivo e vê-los em palco é não perceber como é que é possível: tanta técnica junta de forma aparentemente tão simples. Chama-se harmonia e não se vende ao quilo.
[“Mourning Sound”]
Mas também se chama trabalho e dedicação, coisas do mundo das virtudes. Virtudes essas que exigem muito de quem lhes dá uso. No caso dos Grizzly Bear deu em cansaço. Depois de Veckatimest veio Shields, em 2012. Fizeram-no sob o efeito inevitável de uma ressaca gigante, daquelas que costuma arruinar o dia seguinte. A bagagem acumulada por estes americanos pagou uma taxa extra. Cinco anos foram precisos para voltar, cinco anos de mudanças, de perguntas e respostas, uns a escrever livros de culinária, outros a experimentar a vida no campo, quase todos com muitas dúvidas: então mas isto dos discos e das bandas vale a pena?
[“Neighbors”]
Raios os partam, que pergunta idiota. 2017, ano da graça de Painted Ruins, um disco feito de fome, de saudade mas daquela que dá sorrisos. É um álbum marcado pela vontade, por uma espécie de “não sei bem o que andámos a fazer nestes últimos cinco anos mas vamos lá voltar a isto”. Até porque o mundo está como está, a América está como está e mais vale cedo que tarde. Está o mundo e esteve a vida dos músicos. Eles que funcionam em estúdio como manda a democracia, trabalharam Painted Ruins num dar-e-receber em que tudo é de todos. Dores de amor e amor à dor, como é que aqui chegámos e para onde vamos, nós, gente sentimentalóide; nós, país desnorteado; nós, mundo cruel. Engraçado: isto vem lá de outra terra mas é tudo facilmente traduzível, seja para que língua for.
[“Four Cypresses”]
“Morning Sound” e a desgraça romântica que acompanha a vítima assim que esta acorda, com o movimento todo que a manhã carrega; “Four Cypresses” e a bonita tentativa de ordenar o caos — qualquer caos — através de delicados acordes menores; “Three Rings” e a rara capacidade que a voz de Ed Droste tem de mandar tudo e todos à merda sem usar a palavra uma única vez; “Systole” e a dor de coração que dá para dançar num bonito amasso; “Sky Took Hold” e o valor que tem a dificuldade em olhar o espelho quando é preciso uma canção para fechar o um disco. Painted Ruins assume este balanço ideal entre o feio e o bonito, torna doce e encantado o que é abrasivo e doloroso e chega a fazer da desgraça um vício — e isso, para quem ouve estas canções, é uma sorte. Uma sorte que gera a inevitável pergunta: onde é que vocês andaram?
[“Three Rings”]
Também é verdade: os Grizzly Bear conseguem gerir tanta informação ao mesmo tempo que ele há ocasiões em que sentirmo-nos perdidos não é pecado, é normal. Porque querer fazer sempre mais pode complicar. Isso faz com que nem sempre estejamos em sintonia com a ambição criativa aparentemente ilimitada da banda. Em determinadas alturas só queremos que alguém nos faça festinhas, nem sempre precisamos de lições adultas. Com as canções é o mesmo: só um verso-refrão-verso pode salvar-nos a vida em determinado momento. E é por isso que volta e meia colocamos um pé fora do universo paralelo que estes quatro constroem em disco. Mas ele está lá, ele está sempre lá, e isso é tão surpreendente como confortável.