O parlamento catalão aprovou na quarta-feira a Lei do Referendo de Autodeterminação, que viabiliza a realização de uma consulta popular à independência da Catalunha, mesmo que esta seja proibida pela Constituição espanhola.

Depois da sessão no parlamento, gerou-se um avalanche de críticas à Generalitat, nome do governo regional, não só por representantes do governo de Mariano Rajoy, que se opõe ao plebiscito, mas também por parte de três dos partidos presentes no hemiciclo catalão, que se ausentaram da sala antes do voto, deixando as forças separatistas sozinhas e desimpedidas para aprovarem o voto.

Madrid pede inconstitucionalidade da Lei do Referendo. Deputados catalães podem ser acusados

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Setenta e dois deputados garantiam a maioria, onze deputados abstiveram-se e os grandes partidos da oposição, PP, socialistas e Cidadãos, saíram da sala. Mas não sem antes terem deixado sobre os seus assentos bandeiras catalãs e espanholas.

Uma das dificuldades que a Catalunha terá de enfrentar se de facto conseguir sagrar-se independente da Espanha é a própria criação de um Estado com leis, instituições, insígnias, passaportes, diplomatas, exército e todos os outros organismos essenciais à vida de um país. Apesar de alguns já estarem bem estabelecidos na região — por ser autónoma e a sua autonomia ser das mais abrangentes do mundo — outros terão que começar do zero.

Para isso, foi criada uma “mini-Constituição da República catalã”, elaborado pelo bloco Juntos pelo Sim e CUP para declarar a secessão dois dias após o referendo em 1 de outubro, que ainda nem é certo.

A validade dos artigos é reduzido a um período de um ano, baliza temporal considerada mínima para a redação de uma Constituição final. Este documento também deverá ser anulado pelo Tribunal Constitucional.

Referendo na Catalunha: é proibido, mas pode acontecer?

Estes são os nove pontos essenciais da “mini Constituição”, comentados ao Observador por Germán González, analista e editor de política do El Mundo.

1. Catalunha independente. O novo país será “uma república de Direito, democrática e social” onde os principais faróis serão o Direito europeu e o Direito internacional. A Catalunha, lê-se no projeto, “vai integrar automaticamente os regulamentos europeus” e o chefe de Estado é o presidente da Generalitat.

Vamos lá ver, não há nenhuma Constituição. É um projeto sem validade oficial. A Generalitat de Catalunha tem como objetivo fazer um referendo e, se resultar num ‘sim’, prosseguir então com uma lei de transição que possibilite, depois, uma eleição para a Assembleia Constituinte — mas isso não será possível sem a aprovação de Espanha.”

2. Catalães. Serão todos aqueles que têm nacionalidade espanhola — a qual poderão manter — e que se tenham registado como residentes em qualquer município da Catalunha antes de 31 de dezembro de 2016. Também poderão pedir nacionalidade aqueles que tenham nascido na Catalunha, mas estejam a viver em outro local. Europeus ou cidadãos de países fora da União Europeia terão os mesmos direitos, e também não serão “privilegiados” no acesso à nacionalidade catalã aqueles que tenham nascido em ex-colónias espanholas.

“É difícil assegurar isto, não será muito diferente dos problemas que agora se estão a passar com o Brexit, quem poderia permanecer no país, trabalhar, quem são os catalães, até onde irá a ligação familiar para que a nacionalidade seja dada: avós, bisavós? É complicado.”

3. Três línguas oficiais. O projeto de Lei da Transitoriedade estabelece o “direito de escolha em relação ao catalão, occitano e espanhol” e as três línguas têm o mesmo estatuto. O accitano é uma língua antiga com ligações ao aragonês e ao catalão, parte das línguas latinas.

4. Controlo do poder judicial. O Tribunal Superior de Justiça da Catalunha tornar-se-á o Supremo Tribunal catalão. A nomeação dos seus membros é feita pelo presidente da Generalitat. O procurador-geral é escolhido pelo Parlamento, segundo uma proposta do governo catalão.

5. Amnistia para os envolvidos nos outros processos de realização de referendos. Este artigo trata da possibilidade de anular os procedimentos penais que possam recair sobre os membros do parlamento envolvidos na realização deste ou de outros referendos anteriores e que tenham, por isso, sido condenados pelo governo central. É o caso de Artur Mas, afastado da política durante 21 meses por ter participado na realização da consulta de 2014.

“A lei de transição está fundamentada em normas internacionais e muito, muito gerais. Vai beber a vários textos, como a Constituição espanhola ou a Carta dos Direitos Humanos da ONU. Mas nada disto é legalmente válido, nem tem a consistência de uma Constituição nem oferece, assim só, um rumo para o primeiro ano — mas, de certo, os deputados catalães têm previstos outros textos com muito mais detalhes caso se venha a realizar a separação.”

6. A dívida é negociada. A Generalitat é responsável por todos os impostos e taxas pagas na Catalunha, incluindo contribuições sociais, infraestruturas e taxas aduaneiras. O governo catalão entrará depois em negociações com o Estado espanhol para discutir obrigações de natureza económica, como seja o pagamento da parte da dívida que a Catalunha tem que pagar a Espanha.

7. Os funcionários do Estado. O Governo irá examinar a administração do Estado e funcionários do Estado seriam absorvidos pelas instituições catalãs “nas mesmas condições de remuneração e de ocupação”.

“Se as instituições jurídicas e judiciais, por exemplo, mudarem, milhares de procuradores, magistrados, juízes, administradores públicos terão que voltar a Espanha, o que seria um grande transtorno para estas pessoas e também para as instituições, que ainda seriam mais lentas por ser preciso ‘ensinar’ pessoas.”

8. Exército. A Lei da Transitoriedade não define um corpo armado futuro para a Catalunha, dizendo apenas que, assim que esta lei entre em vigor, os militares espanhóis deixarão de ter competências em solo catalão.

9. A constituição final. Se o “Sim” ganhar, seguir-se-ão três fases: processo participativo para receber propostas da população, criação de uma Assembleia Constituinte (através de eleições) e aprovação do texto em referendo.

“O problema é que a classe política catalã está muito desligada da realidade social e confunde a mobilização de meio milhão de pessoas com as vontades da população toda, que são 5,5 milhões. Muito provavelmente, esta votação também não será vinculante. Ganhará o ‘sim’ porque só vã votar os que já estão completamente convencidos.”

Depois, diz ainda Germán González, haverá eleições, “ganhará a esquerda” mas “sem maioria” e terá que entrar em acordos para que não esteja “sempre a passar-se o mesmo”.