Há discos que soam a outono. Não lhes vemos as folhas castanhas, as árvores sem flor nem fruto, o céu a mudar de um azul vivo para um cinzento carregado. Mas há qualquer coisa que nos diz que é assim que soaria o outono, se tivesse uma banda sonora oficial. A semana foi difícil. E se noutras épocas grande parte das pessoas celebra os últimos sinais de verão fora de tempo, a última ida à praia quando o calendário já pediria casacos, hoje Portugal anseia pela chuva que apaga os incêndios, pela calma ante o caos. Courtney Barnett e Kurt Vile não sabem, mas Lotta Sea Lice é o aconchego de que precisamos. A lembrança de que chegou o outono. O fim de um ciclo antes do início de outro. Que só queremos que seja melhor.
When I’m all alone on my own by my lonesome
And there ain’t a single ‘nother soul around
I wanna dig into my guitar bend a blues riff that hangs
Over everything
Lotta Sea Lice saiu numa sexta-feira 13 (de outubro) e é o resultado de uma amizade intercontinental, para usar palavras da canção “Continental Breakfast”. Conhecemos Kurt Vile primeiro, nos War on Drugs e, a partir de 2011 com as atenções que Smoke Ring for My Halo conseguiu, depois de outros três discos a solo discretos. Houve quem lhe visse traços de Lou Reed, de Tom Petty, quem o apelidasse de Dylan de Philadelphia.
Courtney Barnett entrou com tudo em Sometimes I Sit and Think, and Sometimes I Just Sit, disco de estreia de 2015 que mostrava uma australiana slacker, assumidamente preguiçosa, nos antípodas (passe a redundância) da imagem feliz e surfista que tantas vezes se cola à Austrália. 15 mil quilómetros separam Philadelphia de Melbourne. Há sextas-feiras 13 de muita sorte.
Ambos eram fãs um do outro, mas foi Kurt quem avançou para Courtney. Até agora, a combinação destes dois nomes era sinónimo de um dos pares mais icónicos do rock, Cobain e Love. Um par de criatividade, mas também de caos. Com Lotta Sea Lice, Kurt/Courtney passa a significar também serenidade, mesmo perante problemas. Um encontro feliz de dois dos músicos mais interessantes da cena indie atual, cujo conhecimento mútuo e o nascimento da amizade podemos testemunhar ao longo de 9 faixas cantadas como se fossem conversas entre os dois, e às quais temos o privilégio de assistir.
“Over Everything” é um triplo início. Abre os 45 minutos do disco, foi o primeiro single e é, também, a primeira canção que Kurt escreveu, já com Courtney na cabeça, sem saber ainda se um dia ela lhe emprestaria a voz. A miúda de 29 anos e olhos verdes aceitou o pedido do cabeludo de 37, que aproveitou duas idas à Austrália em digressão, com o intervalo de 15 meses, para as gravações. Foram só oito dias em estúdio mas muito trabalho criativo e partilha de ideias pelo meio. A canção que abre Lotta Sea Lice tem o ambiente de “Anyone Else But You“, cantada por Ellen Page e Michael Cera na cena final do filme “Juno”. Simples, calma, bonita, como que uma porta de entrada para o processo criativo dos dois.
O mesmo se passa em “Let it Go”, cujos acordes Barnett já tinha “há séculos”, como confessou ao Chicago Tribune, mas que só conseguiu transformar em canção quando Vile entrou em cena. O início da letra, “What time do you usually wake up?” (A que horas é que costumas acordar?) é a pergunta que ela — que em Sometimes I Sit and Think, and Sometimes I Just Sit já tinha mostrado a arte de escrever sobre o dia-a-dia e as dúvidas de uma rapariga nos seus 20s — colocou a Kurt Vile para saber a que horas é que deveria marcar o estúdio.
No vídeo de “Continental Breakfast”, o par abre também aos olhos a intimidade das suas duas vidas, com rotinas tão longínquas, mas que a empatia e a admiração de um pelo outro juntou. Vemos Vile em Melbourne, a descobrir os objetos pessoais da australiana, incluindo fotografias de infância, e a conviver com Barnett e a namorada, Jen Cloher. Em troca, Vile abre-lhe as portas de casa, em Philadelphia, onde mora com a mulher e os filhos. Menos de cinco minutos que documentam o nascer de uma amizade, lá como cá.
Kurt e Courtney tinham planeado gravar um EP, até porque cada um precisava de trabalhar nos respetivos futuros álbuns. Mas a colaboração terá resultado tão bem que os dois decidiram partir para um longa-duração. Ainda bem que o fizeram. Lotta Sea Lice chega na hora certa com uma coleção de canções que acalma, mesmo quando os temas tratam pequenas dúvidas existenciais. É um disco humano sobre a amizade, o trabalho, as rotinas, uma coleção de pequenas histórias apoiadas em instrumentais onde a guitarra elétrica é o principal ingrediente.
“Untogether”, a faixa final, parece pertencer ao universo de Neil Young quando é, na verdade, uma versão de Belly, de 1993. “Peeping Tomb” é a versão de Barnett do original “Peeping Tomboy”, de Smoke Ring for My Halo. “Blue Cheese” é mais country e, provavelmente, a menos bem conseguida do disco. “On Script” tem mais mundo dela do que dele, sem ser de um nem de outro.
De tudo isto, lado pessoal e profissional, resultou um disco onde o equilíbrio levou ambos até um novo patamar, de desafio mútuo. Ganharam todos. Eles e nós. Em breve, os dois embarcam numa digressão pela América, e não surpreenderia que a Austrália seja incluída no roteiro. A ver se ganhamos uma data também.