Em 2016, assinalaram-se os dez anos da morte de um dos poetas maiores da língua portuguesa: Mário Cesariny. Mais do que uma data redonda, os dez anos do desaparecimento do “navio-mário”, como lhe chamou Perfecto E. Cuadrado, serviram para lembrar e reforçar a importância vital de Cesariny para a poesia portuguesa. Porque ele não foi um qualquer — foi ele próprio e isso significa que foi único. Irrepetível. “Um poeta luminoso, um mestre, um amigo generoso, um homem livre” — para usar mais uma vez as palavras de Cuadrado –, que uma série de iniciativas lançadas no ano passado têm procurado trazer de novo para o lugar que é seu de direito. Um lugar em “primeira classe”.
Desde 2016 que a Assírio & Alvim tem vindo reeditar muitos dos títulos de Mário Cesariny que estava encontravam esgotados. Recentemente, foram republicados Primavera Autónoma das Estradas, Manuel de Prestidigitação e a tradução de Iluminações – Uma Cerveja no Inferno, de Jean-Arthur Rimbaud. Mas o mais importante ficou para novembro — no dia 9, chegou às livrarias a primeira edição completa da poesia de Cesariny, Poesia, com edição, prefácio e notas de Perfecto E. Cuadrado, especialista em Surrealismo português e amigo do poeta. E porque quem conheceu “o Mário” nunca o conseguiu esquecer, Cuadrado decidiu transformar a nota introdutória em algo mais do que uma explicação — numa homenagem sentida ao autor de “You Are Welcome To Elsinore”.
“Viver é ser lembrado, diziam os que sonhavam a memória dos vindouros como arma para vencer a morte”, escreveu Perfecto E. Cuadrado na “apresentação cordial”. “Depois da morte de Mário, lembrei muitas vezes o autor de Pena Capital para o sentir perto de mim, de todos nós. Hoje relembro e lembro, escrevo e transcrevo e reescrevo, volto a viver com Mário nas palavras que necessariamente falam também de mim. Não me é nada fácil — disse eu algures, repito agora — falar de Mário Cesariny. Não se fala da luz: a luz sente-se, sente-se sobretudo a sua ausência nas trevas.”
Quem viveu de perto com Mário de Cesariny sentiu de perto essa luz de que Cuadrado fala, que se tornou acessível a muitos mais a partir dos poemas que escreveu e publicou. Estes surgem agora reunidos pela primeira vez num único volume, mas Cuadrado recusa o título de “obra completa” ou “crítica”. Prefere antes que lhe chamem “edição anotada”. “Porque o editor não tem suficiente ciência nas artes académicas da ecdótica e porque lidar com a obra de Mário Cesariny equivale a penetrar e a se perder num labirinto de danças e mudanças de palavras, versos, fragmentos, poemas e até livros inteiros (…) que, mesmo encontrando afinal uma porta de saída, acabariam por fazer da edição um livro quase ilegível.” É por isso que, a capa do livro de quase 800 páginas, diz apenas “Poesia”.
Além dos livros Manuel de Prestidigitação, Pena Capital, Nobilíssima Visão, A Cidade Queimada, Primavera Autónoma das Estradas e O Virgem Negra, o volume inclui ainda vários poemas soltos. Todos eles escritos ao longo de pouco mais do que duas décadas. Cansado de “invocar o santo, sem que o santo aparecesse”, Cesariny foi deixando de escrever. Até que decidiu pousar definitivamente a caneta. Nunca explicou exatamente porquê, disse apenas que “aconteceu”. Tão naturalmente como outra coisa qualquer, como o seu Surrealismo. Porque, para falar de Mário Cesariny é preciso falar do Surrealismo português, onde teve desempenhou um papel “fundamental”, mesmo após a rotura com o Grupo Surrealista de Lisboa, do qual faziam parte escritores como António Pedro ou Alexandre O’Neill.
“Falar de Mário é falar do Surrealismo, e falar de Surrealismo é falar duma moral, duma ética e duma subsequente política, é falar, em termos bretorianos, dum projeto de coincidente transformação do indivíduo interior e do indivíduo exterior ou social, um projeto que ainda não foi, um projeto que continua a ser, que será sempre”, escreveu Cuadrado.
Os dois — o Surrealismo e o poeta Mario Cesariny — encontram-se por volta de 1945. A apresentação foi feita através da História do Surrealismo, de Maurice Nadeau, numa altura em que Cesariny já era, sem o saber, surrealista. Ao contrário de muitos, ele não se tornou surrealista por querer ser surrealista — ele era surrealista. Apenas calhou que a sua forma de ser coincidisse com as diretrizes do movimento que, para si, era sinónimo da “luta desesperada pelo amor, pela liberdade e pela poesia”, mas também uma filosofia, uma poética e a “busca da direção desconhecida, da divindade civil”. “Liberdade, Igualdade, Fraternidade, deram lugar aos mandamentos sagrados do Surrealismo: Liberdade, Amor, Conhecimento”, costumava dizer.
Apesar de ser surrealista porque sim, Mário Cesariny escreveu muito mais do que poesia surrealista. Como referiu Cuadrado, escreveu “poesia primeiro de intervenção contra as poéticas dominantes no Portugal dos 40 (…) desde a trincheira da paródia e do pastiche sarcástico, poesia do falhado intento de reabilitação do real quotidiano (…), poesia depois e sobretudo do amour fou desejado, vivido ou malvivido, abandonado ou traído, olimpicamente cantado ou lembrado e recriado elegicamente”. Livre, como ele.
“Reabilitação do homem exterior, libertação do homem interior: eis o papel, o sentido exato e fundamental da Poesia”, escreveu ainda Perfecto E. Cuadrado. “Numa entrevista lembravam-lhe que alguém tinha escrito que ‘a sua poesia é um grito que conhece a sua própria inutilidade’, e ele respondia assim: ‘Uma pessoa que está convencida da inutilidade do seu grito, não grita. A poesia que escrevi é uma coisa que me foi e ainda é útil. Se o é para os outros não sei’.”
Passou uma década desde “que o navio-mário largou o cais para se aventurar no nevoeiro à procura do mistério da pirâmide, depois de ter bebido das águas daquele lugar tenebroso e cantante onde se juntam todas as nascentes”, referiu Perfecto E. Cuadrado no final da “apresentação cordial” que abre o volume. “Mário foi, antes de mais, um homem livre e luminoso que cada dia inaugurava o dia na noite da caverna e que soube encontrar mil tempos novos para o verbo amar.” E homens assim nunca morrem.
No final de novembro, volta-se a celebrar Mário Cesariny em Famalicão
O livro Poesia vai ser apresentado a 25 de novembro, pelas 15h45, na Fundação Cupertino de Miranda, em Vila Nova de Famalicão, por Perfecto E. Cuadrado e Vasco David. A apresentação irá decorrer no âmbito dos Mário Cesariny — Encontros, uma iniciativa anual organizada pela fundação, detentora do legado do poeta, que tem como objetivo homenagear “um dos principais representantes do Surrealismo português” e “um dos grandes nomes da cultural nacional”.
A 11ª edição dos Encontros arranca a 23 de novembro, quinta-feira, com uma oficina de expressão plástica direcionada para o público escolar e sénior. Com uma programação variada, o evento, de entrada livre, irá ainda incluir a projeção do filme Autografia (2004), de Miguel Gonçalves Mendes, numa sessão também direcionada ao público escolar, uma declamação de poesia na rua, a cargo da Oficina Locomovente de Poesia, e um espetáculo de teatro, “O Meu País é um Insuflável”, levado à cena pela Fértil — Associação Cultural. Tudo no dia 24 de novembro, sexta-feira.
O dia seguinte, 25 de novembro, ficará marcado pelo lançamento de três publicações — Poesia, como foi já referido, Caderno 16, do Centro Português do Surrealismo, e Mário Cesariny: um rio à beira do rio, livro editado pela Documenta e pela Fundação Cupertino de Miranda que reúne as cartas escritas pelo poeta a Frida e Laurens Vancrevel, que estarão presentes na apresentação. As três sessões irão decorrer a partir das 15h45, no Pequeno Auditório da fundação. Ao final do dia, haverá um concerto inspirado na obra literária de Cesariny, intitulado “Afinal o que importa é a não literatura”, com André Gago, António de Castro Caeiro, Carlos Barretto e José Anjos. Durante o último dia do evento, haverá outra sessão de poesia na rua e um “Jogo esquisito”, uma oficina de expressão plástica direcionada para famílias.