O que somos nós, senão aquilo de que nos lembramos? Ou, como escreveu José Saramago nos seus Cadernos de Lanzarote: “Somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos. Sem memória não existimos, sem responsabilidade talvez não mereçamos existir”.

Assim que nascemos, começamos a construir memórias. Toda a informação que recebemos, todas as interações de que somos parte dão origem a memórias. Temo-las de diferentes tipos: curto prazo, longo prazo, memórias explícitas e memórias implícitas, as que nos permitem conseguir andar de bicicleta ou tocar um instrumento que aprendemos na infância mesmo sem treinar durante anos.

Mas tal como criamos memórias, também as perdemos. Naturalmente, perdemos algumas memórias, sobretudo com a idade e a progressiva diminuição do hipocampo. Mas também as perdemos por fatores externos, como distúrbios de stress e ansiedade, alcoolismo, falta de certas vitaminas, algumas doenças, traumas físicos ou psicológicos.

Os síndromes amnésicos resultam maioritariamente destes dois últimos casos. Não existe apenas um tipo de amnésia, mas antes dois: a retrógrada, que nos faz esquecer de coisas que sabíamos antes do trauma, e a anterógrada que elimina a capacidade de formar novas memórias.

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Se hoje sabemos alguma coisa sobre como as memórias se formam e são armazenadas, devemo-lo em grande parte a Henry Molaison, um americano que depois de uma operação ao cérebro para travar graves ataques epiléticos, em 1953, ficou sem a capacidade de reter novas memórias. E porquê? Porque nessa operação foi-lhe retirada, de cada lado do cérebro, a metade anterior do hipocampo e parte do córtex circundante, além de mais de metade da amígdala. Nos mais de 50 anos que se seguiram, até à data da sua morte, em 2008, Henry foi objeto de estudos que revelaram a importância do hipocampo como estrutura fundamental para a consolidação de memórias.

A Clive Wearing, maestro e musicólogo britânico, aconteceu-lhe um fenómeno semelhante. Em 1985, um caso de encefalite por herpes deixou-o em coma durante quatro meses. Quando acordou, as lesões cerebrais provocadas pelo vírus deixaram-no incapaz não só de se lembrar da grande maioria dos acontecimentos da sua vida até àquele momento, mas também de formar novas memórias.

Para Clive, que ainda é vivo, é como se acordasse do coma a cada meio minuto. Reconhece a mulher, Deborah, e consegue recordar alguns dados biográficos. A sua capacidade de ler e tocar música ficou intacta. No entanto, se Deborah se afasta – para ir à casa de banho, por exemplo – e regressa passados mais de 30 segundos, Clive reage como se a visse pela primeira vez depois do coma, abraçando-a efusivamente.

Um caso mais recente, com contornos diferentes, é o de Pierdante Piccioni. Este médico italiano, hoje com 62 anos, sofreu um grave acidente de automóvel no dia 31 de maio de 2013. Após seis horas em coma, acordou plenamente convencido de que estava a 25 de outubro de 2001, data de aniversário de um dos filhos e que tivera o acidente depois de o deixar na escola. As lesões no córtex cerebral apagaram-lhe as memórias dos 12 anos passados entre as duas datas. Desde esse momento, Piccioni teve de voltar a estudar, reaprender a usar o telemóvel e a internet e a reconstruir as suas memórias, através de fotos e histórias contadas pelos seus familiares e amigos. Escreveu vários livros, esteve envolvido no combate à Covid-19 numa das zonas de Itália mais afetadas pela pandemia, e inspirou a série DOC, cuja segunda temporada estreia dia 1 de fevereiro no AXN.

Em DOC, o ator Luca Argentero dá vida a Andrea Fanti, o protagonista baseado em Pierdante Piccioni. A série mostra como um médico muitíssimo competente, mas arrogante e frio, se transforma depois do acidente, como tem de reaprender a viver e a trabalhar e a forma como a sua personalidade também se altera após passar pela condição de paciente.

Nesta segunda temporada, que começa marcada pela pandemia e prossegue num cenário pós-pandémico, Andrea continua o seu percurso para voltar ao lugar que ocupava antes do acidente, com alguns obstáculos e dilemas para resolver pelo caminho. Promete.