Passavam poucos minutos depois de ter sido anunciada a morte de Paul Bocuse — mítico chef de cozinha francês que foi um dos percursores da nouvelle cuisine — quando Luís Baena atendeu o telefone ao Observador: “Ainda não tinha ouvido nada”, conta.

Por todo o mundo já se multiplicavam as notícias e homenagens dedicadas àquele que ficou conhecido como “Papa da cozinha francesa” — o próprio presidente gaulês, Emauelle Macron, já se tinha pronunciado em relação ao sucedido — mas foi ao chef Baena que ligámos. “Porquê?”, poderá questionar. A resposta é simples: foi um dos poucos portugueses que teve a oportunidade de trabalhar com Bocuse.

O que pode encontrar nas palavras em baixo será, portanto, um apanhado dos quase três anos em que Baena (atualmente dedica-se à consultadoria gastronómica, enquanto procura um espaço para montar um restaurante) seguiu as regras e receitas do cozinheiro que morreu este sábado, 20 de janeiro de 2017. Entre a fama de autoritário e de génio da técnica, é esta a imagem que Luís Baena guarda do chef Paul Bocuse:

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Como é que se cruzou com o Paul Bocuse?
Eu e Paul Bocuse cruzamo-nos em plena época da nouvelle cuisine, da qual ele tinha sido um dos maiores precursores. Foi um dos primeiros chefs a partir para outras paragens e a conhecer outros hábitos e gastronomias, como a asiática, por exemplo. Na altura, começou a fazer algo que ainda não era muito comum: criar um modelo de negócio assente em vários restaurantes em vários sítios. Curiosamente, há uns dois ou três anos, li uma entrevista do Thomas Keller [célebre chef norte-americano] em que ele citava Bocuse para responder à pergunta: “Como consegue gerir todos os restaurantes que tem?”. Ele respondeu dizendo que ‘Os restaurantes funcionam da mesma maneira sempre, quer eu esteja lá ou não.’

E o restaurante dele onde esteve foi qual?
Fui trabalhar para o o restaurante que ele tinha no Rio de Janeiro, em Copacabana, no hotel Meridien. Ficava no último piso, era um restaurante fantástico, com uma vista linda e que se chamava Le Saint Honoré. Reproduzíamos tudo o que havia em Lyon, no L’Auberge du Pont de Collonges [o restaurante principal do chef Bocuse], mas claro, algumas coisa adaptávamos aos produtos locais. Era uma escola. Ainda tenho comigo um menu da altura… Trabalhei lá entre 86 e 88, mais ou menos.

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O chef Bocuse passava no restaurante com frequência?
Bem, isto vai levar-nos um pouco à tal resposta do Thoma Keller… Nenhum deles tem o dom da ubiquidade, por isso não conseguiam estar sempre em todo o lado. Mas passava por lá regularmente.

Como é que ele era na cozinha?
Aquilo era a escola francesa no seu estado mais puro — que ainda continua a existir, não é? Esta forma de olhar a cozinha tem coisas muito boas, mas outras menos perfeitas. Havia sempre uma forma de trabalhar bastante austera, muitos gritos. Na altura, a cozinha francesa era assim. O trabalho de cozinha dele, por sua vez, era fantástico. Agora recordo-me de uma coisa que um colega seu, o Paulo Amado, uma vez me disse sobre a moda das esferas e dos fumos da cozinha molecular: “Você sabe fazer uma caldeirada; eles querem fazer uma espuma de caldeirada mas nem sequer sabem fazer o prato base em si”. Isto para dizer que as bases, na cozinha, são fundamentais, e com o Bocuse esses alicerces eram importantíssimos.

E num ponto de vista mais humano e pessoal? Como é que ele era?
As pessoas com posições de maior destaque na cozinha — como a que eu detinha na altura, por exemplo — tinham um tratamento diferente. O resto… Mas atenção que isto não tinha a ver com o Paul Bocuse em pessoa, mas sim com toda a forma francesa de gerir cozinhas. Simplesmente não se dava muita atençãoa quem ocupava cargos inferiores hierarquicamente.

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E que cargo ocupava o Luís?
Eu era chef… Era um registo parecido com o que o Segi Arola tem no Penha Longa Resort, em Sintra. Ele tem o restaurante, é o chef, mas depois há o chef executivo da Penha Longa, o Milton Anes.

Quanto tempo costumava passar com vocês quando vos visitava?
Uns quantos dias, uma semana… Variava. Ele gostava de conhecer produtos locais, quando lá ia. Estou a falar consigo e vou-me lembrando de coisas: uma vez que ele lá estava, recebemos uma espécie de fruto silvestre que nunca tínhamos visto. Era tão delicioso que o transformámos logo uma bavaroise e começamos a fazê-lo com mais regularidade a partir daí. Era engraçado porque o Brasil não tinha muito peixe e marisco de grande qualidade, mas na parte dos vegetais havia coisas maravilhosas. Mesmo assim, a cozinha francesa era incontornável e predominava em todos os aspetos. Só para perceber um bocadinho o espírito desta pessoa, porque é sempre fácil criticar: ele quebrava barreiras que nunca ninguém tinha quebrado. Ele atreveu-se a romper com os cânones da época, por exemplo, quando decidiu não usar apenas manteiga clarificada para fazer um molho holandês [um clássico da cozinha gaulesa]. Decidiu usar apenas metade da dose que era suposto e compensá-la com manteiga em pomada. O resultado final era fabuloso. Desafiar os clássicos não era fácil, ainda para mais neste ambiente. Eu dou aulas na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa e, aos alunos dos últimos anos, costumo lecionar sempre uma cadeira só dedicada a decorações. Logo nas primeiras aulas, quando começo a explicar as evoluções da comida clássica para a nouvelle cuisine e depois para a de hoje, uso imensos pratos do Paul Bocuse como exemplo. Inconscientemente, marcou-me muito.

O chef Luis Baena. ©D.R.

Na sua opinião, quais foram os maiores marcos que Paul Bocuse deixou?
A origem dos empratamentos aprumados da nouvelle cuisine é indissociável com ele e com uns amigos, os irmãos Troisgros. Acho que quem quiser conhecer o que seja da cozinha contemporânea vai ter de passar por ele, perceber o que se passou antes. Não falo de copiar o passado eternamente, mas sim ir lá buscar-lhe as ferramentas necessárias para fazer o futuro. A preocupação com a saúde e a alimentação, por exemplo, começou aqui, com estas pessoas. Pontos de cozedura mais corretos, menos gorduras…

Como é que o Luís foi parar ao Saint Honoré?
Infelizmente não fui entrevistado por ele, mas sim pelo pessoal do hotel. Fiz uma candidatura espontânea porque senti que era uma oportunidade especial, trabalhar com uma pessoa como Paul Bocuse — e hoje tenho a certeza que não perdi nada em fazer isto, muito pelo contrário. O facto de já ter trabalhado em Bruxelas e de falar francês tão bem quanto falo português também facilitou muita coisa.

Quantas pessoas trabalhavam nessa cozinha?
Éramos cerca de 25, mais ou menos. Brasileiros, quase todos. Cruzei-me lá com excelentes profissionais. Servíamos, no máximo, cerca de 60, tínhamos um rácio de serviço muito alto porque a equipa de cozinha era muito grande. Éramos muito visitados por socialites e pessoas conhecidas. Eu fui substituir um colega que era o Laurent Suaudeau, que ainda lá está pelo Brasil e é um nome consagrado. Lembro-me que antes de ir para lá, fomos visitados por um dos descendentes do Rockefeller. Ele pediu um vinho para a acompanhar a refeição e o Laurent, como francês que era, sugeriu-lhe um vinho da sua terra. O outro senhor recusou, dizendo que preferia um vinho chileno “baratíssimo e quase igual aos franceses”. Nesta altura, quando o Saint Honoré abriu, toda a gente sabia quem era o chef Bocuse porque este e outro restaurante era os mais de topo que existiam na cidade.

Lembra-se de algum prato dele, em específico, que lhe tenha ficado na memória?
Sim, havia umas quenelles super trabalhosas feitas com de mousse de camarão que depois eram recheadas com um portugaise (uma espécie de molho de tomate que é reduzido até ficar com a textura de pasta de dentes). O molho era um beurre blanc com uma erva qualquer que já não me lembro bem. Enfim, era um prato extremamente técnico. Depois havia os clássicos dele, como o Robalo em Crosta, por exemplo, ou até as Iles flottantes ( as “Ilhas Flutuantes”, uma receita da avó dele que aparecia em todos os seus restaurantes).

E o Luís alguma vez teve oportunidade de visitar algum dos outros restaurantes do chef?
[Risos] Já estive e vivi em variadíssimos países pelo mundo, fui a imensos restaurantes, mas acredita que nunca mais voltei a um espaço do Paul Bocuse? Não por ter saído de lá com algum tipo de ressentimento, pelo contrário, eu só saí de lá por causa da inflação.

Antes de ir trabalhar para o restaurante, o que conhecia do chef Bocuse?
Já acompanhava o trabalho dele por causa da nouvelle cuisine. Antigamente não havia as formas de comunicar que temos hoje, mas o Bocuse já publicava obras. Há um livro em específico, o La Cuisine du Marché, que admirava muito. Tinha receitas dele e do sogro de uma das suas filhas, que era um chef pasteleiro conhecido, o Bernarchon. No nosso circulo profissional, sobretudo entre os expatriados, existe um comunicação surpreendente que funciona muito bem. Lembro-me de um dia normal de trabalho no Saint Honoré em que oiço falar pela primeira vez de um chef revelação que se chamava Robuchon [que atualmente soma 32 estrelas Michelin, espalhada por restaurantes em 13 cidades do mundo]. Mais tarde venho a conhecê-lo em pessoa, quando ambos fomos escolhidos para ser jurados do primeiro Concurso Europeu dos Sabores.

Muitos cozinheiros falam da imponência do chef Bocuse. Como era estar na mesma divisão que ele?
Já passaram trinta anos desde a última vez que o vi. Chefs como ele, quando entram numa cozinha parece que crescem. Bocuse gostava de se fazer anunciar, mas era uma figura que impunha respeito, não sendo, porém, um daqueles cozinheiros gigantes. Acho que tinha tudo a ver com mito que se criou à volta do homem, e com razão.

Ele cumpria aquele estereótipo do chef francês refilão que grita muito?
Completamente. Mas não era o único: as pessoas que trabalham com o Robuchon, por exemplo, têm de passar por muita coisa complicada. É um bocado como o Gordon Ramsey naqueles programas de televisão. O Gordon comparado com o seu chef, o Marco Pierre White, é um bebé angelical. O Marco era um verdadeiro déspota, mas também fez um trabalho fantástico.

O Luís recorda algum episódio em específico onde tenha visto Bocuse alterado com alguém?
Lembro-me perfeitamente, ver homens adultos a chorar não só é desagradável como dificilmente nos sai da memória… Mas não acho que esse lado desta pessoa mereça muito destaque, desculpe. Há coisas muito melhores a dizer sobre ele… Contudo, este tipo de comportamentos era normal na época, temos de aceitar que sim. Eu, por exemplo, não sou nada assim: se não consigo dominar a minha equipa de forma silenciosa é mau sinal. Defendo diplomacia, mas com firmeza. Agora firmeza não é andar aos gritos, isso é sinal de que perdemos o controlo. Voltando à altura do Saint Honoré: o Paul Bocuse tinha mais trinta anos do que eu e tinha direito a tratar as pessoas assim, quanto mais não seja porque foi assim que o ensinaram.