A vida de Sergei Skripal, como a de qualquer espião, está longe de ser típica. A infância foi passada em Kaliningrado, o enclave russo que faz fronteira com a Polónia, e começou com uma influência do Ocidente: o próprio Skripal recordou a alguns amigos que costumava brincava com o rádio a tentar apanhar a frequência de rádio da BBC, que se ouvia ao longe.

Nascido em 1951, decidiu na juventude juntar-se à tropa pára-quedista de elite, os Desantiniki, dando assim início à sua carreira ao serviço do Estado soviético. Foi o início de uma vida profissional que culminaria num envenenamento, muitos anos depois, possivelmente com motivações políticas.

Como membro dos Desantiniki, Skripal fez parte de um dos primeiros contingentes a ser enviados para a guerra no Afeganistão, em 1979, segundo conta a BBC. De regresso, vai para Moscovo, para estudar na Academia Militar e pouco depois de se licenciar ingressa nos serviços secretos militares, conhecidos por GRU. Pelo meio, a sua vida pessoal vai-se estabilizando. Primeiro casa-se com a namorada de adolescência, Liudmila, e depois nascem-lhe os dois filhos: Alexander, em 1974, e Yulia, em 1984.

Skripal numa das últimas imagens captadas antes de ser envenenado, uns dias antes, numa loja em Salisbury (AFP/Getty Images)

Dentro da GRU, o coronel Skripal é integrado na Primeira Diretoria, focada em espionagem na Europea, e é colocado por duas vezes em cidades europeias — uma vez nos anos 80, outra nos anos 90. “Mais tarde falaria deste período com entusiasmo”, conta a rádio-televisão britânica que falou com amigos do ex-espião.

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Foi no segundo posto que ocupou em território europeu que Skripal foi recrutado como agente duplo para o MI6, os serviços secretos britânicos, em 1995. À altura, conta o The Guardian, trabalhava na embaixada britânica em Tallin (Estónia).

Skripal continuou a trabalhar para o GRU até 1999 ou 2000 — não é conhecida ao certo a data em que saiu, “farto da corrupção”, segundo contaram os mesmos amigos à BBC. Oficialmente, declarou que iria entrar nos negócios, crê-se que com Boris Gromov, conhecido por ter sido o último comandante soviético a abandonar o Afeganistão.

Trocado pelos “Ilegais” que inspiraram uma série de TV

Teria sido uma reforma tranquila para um espião que tinha decidido acalmar, mas o passado duplo de Skripal voltaria para o assombrar. Em 2005, é detido e acusado pelos serviços secretos russos, o FSB, de ter sido recrutado pelo MI6. A notícia foi uma surpresa para os que conviveram com ele no Exército:

“Todos os colegas o respeitavam. Quando ele foi detido por espionagem, foi um verdadeiro choque”, contou um ex-colega à BBC.

“Ganharam-me”, terá dito o ex-coronel aos agentes do FSB que o detiveram, segundo conta o Guardian. O FSB acusa então Skripal de ter passado segredos de Estado russo aos serviços secretos britânicos em troca de dinheiro (cerca de 100 mil euros), que era transferido para um conta em Espanha. A acusação sustenta que Skripal terá passado informação sobre “várias dezenas” de espiões russos, colocando-os em perigo.

Um ano depois, é condenado a 13 anos de prisão por “alta traição na forma de espionagem”. No julgamento, um porta-voz do FSB compara a ação de Skripal à do coronel Oleg Penkovsky, executado em 1963 por ter passado informação aos EUA durante a crise dos mísseis de Cuba. Skripal é então enviado para a prisão e campo de trabalhos forçados de Mordovia, antiga colónia penal estalinista.

Anna Chapman, a mais famosa dos ‘Ilegais’ trocados por Skripal (SERGEI KARPUKHIN/AFP/Getty Images)

Em vez dos 13 anos de prisão, o coronel acaba por cumprir apenas quatro anos de pena. Isto porque em 2010 é incluído, juntamente com outros três russos, no lote de prisioneiros trocados com EUA e Reino Unido num aeroporto de Viena. Em troca, a Rússia recebe 10 espiões russos detidos em território americano conhecidos como “Os Ilegais”. Estes 10 homens e mulheres, dos quais a mais conhecida era a socialite de Nova Iorque Anna Chapman, faziam parte de um programa de espionagem russo altamente sofisticado, já que estavam completamente integrados na vida norte-americana — e nos quais a série The Americans, da FX, se inspirou.

“Viviam nos subúrbios, trabalhavam em empregos de colarinho branco, eram adeptos de equipas americanas, usavam nomes ingleses. Alguns chegaram a ter filhos”, descreve a revista Time.

Do grupo de russos enviados para o Ocidente, dois foram para o Reino Unido e subsequentemente interrogados pelo MI5 e pelo MI6. Um deles era Skripal, que decidiu ir viver para o sul de Inglaterra, em Salisbury. Mais tarde, em 2010, seria perdoado pelo Presidente russo, Dmitry Medvedev.

Em 2011, o coronel russo e a sua mulher compram uma casa no Reino Unido. Um ano depois, Liudmila morre de cancro, com apenas 59 anos, e é enterrada num cemitério de Salisbury. É também lá que está enterrado o filho mais velho do casal, Alexander, que morreu em circunstâncias pouco claras numa viagem a São Petersburgo — alguns relatos dizem que foi num acidente de carro, outros que foi de insuficiência hepática, como resume o Financial Times.

Um espião “nunca se reforma”

A vida de Skripal em Salisbury desde que chegou ao Reino Unido parecia, à primeira vista, uma vida pacata. “Nunca reparámos muito nele — era como qualquer outra pessoa”, resumiu um habitante de Salisbury ao Wall Street Journal. “Este é um lugar bom para morar quando se é um estranho para as outras pessoas.”

Contudo, a vida do coronel de 66 anos poderia incluir mais do que as visitas a uma charcutaria polaca ou aos restaurantes locais descritos na peça do jornal americano. Segundo o Financial Times, Skripal continuaria muito provavelmente a colaborar com os serviços secretos britânicos. Logo após ter chegado ao Reino Unido, em 2010, o coronel terá dado algumas informações sobre os serviços secretos russos, mas, tendo em conta que já não trabalhava no Exército russo há alguns anos, a sua informação era datada e “foi usado por um período de tempo limitado”, segundo conta uma fonte.

A campa do filho de Skripal, Alexander, que morreu em circunstâncias pouco claras numa viagem a São Petersburgo (Matt Cardy/Getty Images)

Outro responsável de segurança sublinhou ao FT que ele continuaria a ser usado de tempos a tempos para dar informações: “Sobre as prioridades russas: como é que se infiltram no Ocidente, como recrutam, como se pode fazer contra-espionagem… Este tipo de coisas, especialmente à medida que treinamos pessoas. É um uso contínuo.”

É pouco provável, no entanto, que este seja motivo suficiente para Skripal ser eliminado pelo Kremlin. As mesmas fontes garantiram ao jornal britânico que outra das motivações levantadas — a de que estaria ligado a um consultor com informações sobre o dossiê Trump-Rússia, avançada pelo Telegraph — não é forte o suficiente.

Uma das possibilidades, avançadas pelo ex-agente do KGB Gennady Gudkov ao Independent, é de que o ataque tenha sido levado a cabo por algum dos ex-espiões russos afetados pelas informações passadas por Skripal ao MI6. “Perder um negócio ou uma carreira são coisas que provocam emoções fortes”, declarou Gudkov.

“O meu palpite é que isto foi de um grupo de pessoas que podem estar indiretamente ligadas ao Governo.”

Outros especialistas, à semelhança das avaliações partilhadas pela primeira-ministra Theresa May e o recém-demitido secretário de Estado norte-americano Rex Tillerson, não têm dúvidas de que o Kremlin está provavelmente envolvido neste envenenamento: “Ele não passou simplesmente segredos de Estado, ele passou-os aos serviços secretos britânicos”, diz Glenmore Trenear-Harvey, especialista britânico em espionagem ouvido pela Euronews. “Ele foi perdoado, mas da mesma forma que se diz que os agentes dos serviços secretos nunca se reformam, os espiões também não.”