A Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC) pediu um reforço de meios para combater incêndios em outubro de 2017 devido às condições meteorológicas, mas não obteve “plena autorização a nível superior”, segundo o relatório da comissão técnica independente.

“Na audição ao segundo comandante operacional nacional, que à data desempenhava interinamente as funções de comandante operacional nacional, foi-nos referido que, atendendo às condições meteorológicas que se previam, deveria haver um conjunto de reforço de meios, que foram solicitados, mas que nem todos obtiveram, por diversas razões, plena autorização a nível superior”, refere o documento entregue esta terça-feira na Assembleia da República.

Quando deflagraram os incêndios, entre 14 e 16 de outubro de 2017, o Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Florestais (DECIF) estavam em “plena fase Delta, em que os meios disponíveis e a capacidade instalada é francamente menor do que a prevista e planeada” para a fase Charlie, que costuma decorrer entre 1 de julho e 30 de setembro.

Incêndios. O que propõem os especialistas para evitar novas tragédias?

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A ANPC propôs para reforço do dispositivo para a fase ‘Delta, entre 1 e 15 de outubro, 105 equipas de combate, tendo sido autorizadas 50, tendo também sido recusadas 200 horas de voo suplementares para duas parelhas de aviões anfíbios médios e 40 operacionais para a Força Especial de Bombeiros (FEB), bem como uma parelha de aviões anfíbios médios e quatro meios aéreos.

O relatório da comissão técnica independente adianta que, a 10 de outubro, foi proposto novo reforço de meios, tendo sido aprovadas 164 equipas, o acréscimo de 70 horas de voo para aviões anfíbios médios e o prolongamento de locação de oito helicópteros médios até 31 de outubro, mas foi recusado o aluguer de quatro aviões anfíbios médios para 13 a 31 de outubro.

“Depois do período em análise (14 a 16 de outubro), já foi autorizada a locação de 15 helicópteros ligeiros, com início a 17 de outubro”, indica o documento da comissão nomeada pela Assembleia da República.

O mesmo documento refere igualmente que a ANPC determinou “a elevação do estado de prontidão e grau de mobilização”, mas no âmbito das suas competências não acompanhou “o mesmo nível de alerta, nomeadamente quanto à mobilização de meios aéreos”.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Os peritos sublinham também que os meios preposicionados ficaram “muito aquém das necessidades, ainda que reativamente, no decorrer do dia 15 outubro e mais particularmente no dia 16 de outubro, se tenha conseguido mobilizar mais alguns grupos de reforço”.

“Os comandantes operacionais distritais ouvidos por esta comissão foram questionados sobre se, para além da determinação nacional, terá havido ao nível distrital medidas de pré-posicionamento de meios. Todos estes elementos confirmaram que seria muito difícil, atendendo a que já estávamos numa fase de descontinuidade do dispositivo (em regra seria o último dia), e depois de um ano que até ali já tinha sido muito difícil, as condições para pré-posicionar meios foram muito marginais”, lê-se no documento.

A comissão técnica independente entregou neste dia na Assembleia da República o relatório “Avaliação dos Incêndios Ocorridos entre 14 e 16 de outubro de 2017 em Portugal Continental” que provocaram 48 mortos. O documento, que foi entregue pouco depois das 17h30, pelo presidente da comissão, João Guerreiro, ex-reitor da Universidade do Algarve, numa audiência com o presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, em Lisboa, abrange um total de oito distritos das regiões Centro e Norte.

Populações “entregues a si próprias” e em “dramático abandono”

A comissão técnica independente considera que o panorama vivido nos dias de incêndios se traduziu “numa situação de dramático abandono, com escassez de meios, ficando as populações entregues a si próprias”. Situação que foi sentida sobretudo nos fogos de 15 de outubro.

O documento sublinha que “rapidamente se verificou não haver possibilidade de manter a estratégia teoricamente fixada, sobretudo devido a duas razões: dificuldade de mobilizar forças suficientes perante o número de ignições que se sucediam em áreas de grande dimensão e impossibilidade de dar uma resposta a todos os incêndios por parte dos corpos de bombeiros”.

A impossibilidade de dar uma resposta esteve relacionada, refere o documento, com o facto de se estar em outubro e na fase Delta de combate a incêndios em que há “uma capacidade de mobilização limitada”.

Os peritos da comissão sustentam que, na fase de ataque inicial, “a dispersão dos fogos, a sua velocidade de expansão e a respetiva severidade impediram muitas vezes a aplicação do conceito de triangulação, até porque os corpos de bombeiros que se tinham movimentado para teatros de operações afastados dos seus concelhos tiveram de regressar aos seus concelhos de origem de forma a garantirem o combate aos incêndios que eclodiram na sua área de atuação própria”.

Em relação ao ataque ampliado, que implica o recurso a forças exteriores, terrestres e aéreas, registou “enormes dificuldades para a respetiva concretização”, uma vez que o número significativo das forças nacionais “estava já descontinuado”, designadamente os meios aéreos, e a quantidade enorme de solicitações impediu que a alocação de meios se fizesse de acordo com as normas operacionais estabelecidas.

“Os contactos realizados permitem concluir que, em muitas situações, não havia possibilidade alguma de combater o incêndio. Nalguns concelhos, o fogo entrou por várias direções, com uma velocidade e severidade nada habitual, pelo que o esforço se concentrou naturalmente na defesa de pessoas e bens. E nem sempre com êxito”, lê-se no relatório.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Dá também conta de que os postos de comando operacional “estavam desfasados na sua dimensão e complexidade, não conseguindo corresponder às necessidades exigidas pelo ataque ao fogo”.

Nesse sentido, a comissão nomeada pelo parlamento aponta nove questões que são necessárias corrigir no sentido de melhorar a eficácia do combate, designadamente a localização deficiente dos postos de comando operacional, organizar uma primeira intervenção da responsabilidade de forças devidamente profissionalizadas e colocadas num estado de alerta logo após a difusão dos estados de alerta e definir um sistema de mobilização de meios aéreos nos momentos em que são mais necessários, independente das épocas do ano.

É também recomendado a adoção de um sistema de comunicação eficiente, garantindo as necessárias redundâncias para impedir falhas de ligação entre as forças operacionais e os postos de comando, utilização criteriosa dos estados de alerta, acompanhando cada um deles de iniciativas precisas e necessárias sobre as iniciativas a tomar e evitando uma vulgarização destes avisos, e dinamização do patamar municipal, através dos serviços municipais e das unidades locais de proteção civil, reconhecendo-se que estas terão sido as grandes ausentes dos incêndios de outubro de 2017, além de conferir operacionalidade aos planos Municipais de emergência, transformando-os em instrumentos mobilizadores e de ação.

Sensibilizar as populações para uma maior cidadania e adoção de uma cultura territorial que garanta uma preparação de defesa pessoal contra catástrofes e definindo meios locais para as enfrentar e criar um sistema robusto de informação, que permita abranger genericamente a população e difundir com eficácia os alertas e avisos nos momentos críticos, são outras propostas para melhorar o combate aos fogos.

Falhas na comunicação limitaram INEM

PAULO NOVAIS/LUSA

A atuação do INEM nos fogos de outubro de 2017 foi “limitada” por falhas na rede de comunicações, concluiu a comissão técnica independente (CTI). Esta é uma das conclusões da comissão criada pelo parlamento, que entregou o seu relatório na Assembleia da República sobre os incêndios de outubro que atingiram as regiões Centro e Norte.

No desenvolvimento das operações, a atuação das equipas do INEM foi limitada por falhas da rede de comunicações”, referiu a CTI, realçando que, “em algumas fases das operações, não foi possível referenciar o posicionamento dos meios envolvidos em diversos teatros de operações”.

Nesse sentido, a comissão propõe que se dê “uma maior atenção ao robustecimento do sistema de comunicações”. De acordo com o relatório, o INEM mobilizou 24 meios e 64 profissionais a 15 de outubro de 2017 e 28 meios e 71 profissionais, a 16.

“No que concerne à mobilização de profissionais do INEM em situações críticas foi referenciada a necessidade de conferir a este instituto a faculdade de autorizar a requisição de elementos inseridos nos quadros de corpos de bombeiros voluntários”, afirma a comissão.

Durante os grandes incêndios de outubro, o INEM prestou socorro a 67 feridos que foram transportados para outros locais e ainda assistiu a 44 pessoas no local, dos quais 24 bombeiros.

Municípios com dificuldades em situação de emergência

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O relatório revela ainda que os municípios têm dificuldades ao nível dos procedimentos relacionados com a emergência e o socorro, designadamente em resultado dos incêndios rurais. O inquérito lançado junto de 125 câmaras municipais contactadas, com 92 respostas válidas, permitiu evidenciar que a ativação do Plano Municipal de Emergência “não acrescentou qualquer mobilização extraordinária de meios”.

Um número significativo (cerca de 60%) referiu que ativou o Plano Municipal de Emergência, embora dois terços destas tenham declarado também que essa ativação não acrescentou qualquer mobilização extraordinária de meios”, refere o documento.

De acordo com a comissão, o âmbito municipal é “impeditivo para a criação de soluções sólidas, bem apetrechadas, profissionalizadas e capacitadas para as primeiras intervenções”, aconselhando por isso, a criação de soluções intermunicipais.

Estas, escrevem os especialistas, podem revelar-se “mais adequadas”, pelo que deveriam ser concebidas em torno de conjuntos de autarquias ou através das próprias Comunidades Intermunicipais (CIM), “beneficiando das evidentes afinidades territoriais”.

Segundo o documento, as dificuldades das autarquias resultam da necessidade de integrar “recursos humanos qualificados e especializados, relações com instituições produtoras de conhecimento (IPMA, etc.) e com as entidades vocacionadas para o estabelecimento das estratégias e para a utilização dos meios operacionais (Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais – AGIF, Autoridade Nacional Proteção Civil)”.

As soluções intermunicipais, indica, permitiriam ainda “estabilizar corpos qualificados vocacionados para a intervenção, associados às ações de prevenção estrutural e inseridos em ambientes profissionais”.

A comissão técnica concluiu que falhou a capacidade de “previsão e de programação” para “minimizar a extensão do incêndio” na região Centro, onde se registaram 48 mortos.

Apoio das Forças Armadas “ficou aquém do desejável”

PAULO CUNHA/LUSA

O apoio das Forças Armadas no combate aos incêndios de outubro de 2017 “ficou aquém do desejável”, pelo que é necessário melhorar a cooperação com a Proteção Civil.

“As Forças Armadas Portuguesas, desde sempre, têm estado presentes no apoio e reforço ao terrível flagelo dos incêndios florestais que anualmente assolam o nosso país. Fazem-no em ações de prevenção, combate e rescaldo, mas lamentavelmente em modo que contraria os princípios que norteiam a instituição militar. Onde deve haver planeamento, preparação, treino e ação conjunta tem havido muita ausência destes princípios”, refere o relatório “Avaliação dos Incêndios ocorridos entre 14 e 16 de outubro de 2017 em Portugal Continental”.

Dos três ramos das Forças Armadas, a Marinha “não forneceu elementos que materializassem qualquer ação”; o Exército realizou 55 ações de patrulhamento e oito ações diferenciadas, com 29 oficiais, 119 sargentos e 557 praças no terreno, apoiados por 140 viaturas ligeiras, médias e pesadas, uma viatura pronto-socorro e quatro plataformas; e a Força Aérea “identificou uma missão com o empenhamento de sete oficiais, sete sargentos e dois praças, tendo concretizado oito a nove horas de voo”, revela o documento de análise aos fogos de outubro de 2017.

Segundo a comissão técnica independente que analisou os fogos, integrando 12 peritos, o Exército trabalhou no âmbito do Plano Lira, “com tarefas bem definidas” no apoio à prevenção e combate aos fogos florestais, mas quando foi necessário empenhar meios em tarefas que não estavam previstas foram criadas “ações menos coerentes, como, por exemplo, Destacamentos de Engenharia solicitados para um determinado local [que], à sua chegada, eram reencaminhados para um outro local”.

“Algumas solicitações surgiram durante o período noturno e os equipamentos pesados de engenharia têm limitações operacionais durante esse período (a iluminação insuficiente não garante um emprego eficaz). Foi necessária uma intervenção firme de comando para evitar ações sem reconhecimentos prévios”, refere o relatório sobre a intervenção do Exército no combate aos incêndios de outubro.

Neste âmbito, os peritos recomendam a sensibilização dos representantes das Forças Armadas junto dos elementos de Proteção Civil acerca das “possibilidades e limitações do emprego dos militares que pertencem ao Exército”.

“Quando o foco é o combate e prevenção dos fogos rurais, o Governo determinou que este passa a ser também missão ou responsabilidade das Forças Armadas”, recorda a comissão técnica independente.

Queimadas e fogo posto são principais causas

As queimadas e o fogo posto foram as duas principais causas das mais de 900 ignições registadas nos incêndios de outubro, revelou o relatório da Comissão Técnica Independente aos incêndios, que considera também preocupante o número de reacendimentos.

O número de total de ignições (de fogachos e de incêndios florestais e agrícolas) iniciadas nos dias 14, 15 e 16 de outubro de 2017 e registadas no Sistema de Gestão de Informação de Incêndios Florestais (SGIF), do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) “foi de 206, 495 e 213 respetivamente”, revelou a comissão técnica independente aos incêndios no relatório entregue no Parlamento.

Para a comissão técnica, estes números são “excessivos tendo em conta a capacidade do dispositivo de combate em fazer face a um grande número de ocorrências simultâneas”, mas não diferem “significativamente dos valores históricos” verificados entre 2001 e 2017.

O relatório conclui que entre “as causas mais frequentes” das ignições estão as queimadas, responsáveis por “33,0% das ocorrências determinadas dos dias 14 a 16 de outubro e por 30,9% no período de referência”. Quanto ao incendiarismo (ato de provocar voluntariamente um incêndio), o relatório atribui-lhe 35,9% das ignições nos três dias de outubro, contra “32,5% no período de referência”. Os reacendimentos surgem como responsáveis por “23,6% das ocorrências nos três dias de outubro em comparação com 18,0% no período de referência”.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

A comissão técnica concluiu assim que “o padrão de distribuição das ocorrências por causas (em outubro) foi muito semelhante ao que se verificou no conjunto das ocorrências com causa determinada no período 2001-2017”, mas considera “preocupante a tendência da importância crescente dos reacendimentos”.

Segundo a comissão, as queimadas mostraram nos últimos anos “uma tendência de decréscimo”, mas as percentagens invertem-se no que respeita ao “uso” para que são efetuadas.

O número de queimadas investigadas ao longo dos anos “permite saber se foram realizadas de forma extensiva para limpeza de solo agrícola, florestal, de áreas urbanizadas ou de caminhos, acessos e instalações”, para “renovação de pastagens”, para “penetração em áreas de caça e margens dos rios”, ou, se pelo contrário, foram efetuadas “de forma localizada em amontoados, as designadas borralheiras”, explica.

Da comparação de dados, a comissão concluiu que “algumas das causas tiveram um peso semelhante nos dias de outubro e no período de referência 2002-2017”, nomeadamente a queima de amontoados ou borralheiras (12,1% contra 12,5% no período de referência) e das queimadas extensivas associadas à limpeza do solo florestal (10,1% contra 12,5%).

Em contrapartida, registam-se “grandes diferenças entre as queimadas associadas à limpeza de solo agrícola e à renovação de pastagens”, pode ler-se no relatório que demonstra que “a causa da renovação das pastagens foi muito mais baixa (31,3% contra 50,5% no período de referência), enquanto a percentagem de causas associadas à limpeza do solo agrícola foi muito mais elevada (37,4% contra 14,8%)”.

Assim, embora a distribuição das ocorrências pelos principais tipos de causas em outubro seja muito semelhante à do período de referência, “as razões associadas às queimadas parecem ter sido de natureza bastante distinta”, sustenta a comissão.

O relatório sublinha que tal situação “parece suportar a hipótese de que a necessidade de limpeza de solo agrícola e a proximidade anunciada de precipitação poderão ter conduzido a um aumento de ocorrências em períodos do dia que os agricultores possam ter considerado como menos problemáticos”, mas que, por falta da precipitação esperada (que tinha sido considerada como possível pelas previsões meteorológicas) e por velocidades do vento inesperadas (mas que tinham sido previstas), “tenham originado incêndios de difícil controlo”.