Das 276 páginas que compõem o relatório da Comissão Técnica Independente sobre os incêndios de outubro do ano passado, 16 são exclusivamente dedicadas a enumerar as recomendações que podem ajudar a prevenir novas situações como as que levaram à morte de 48 pessoas. É uma lista extensa de propostas, a sugerir uma revolução na forma como são nomeados os comandantes da Proteção Civil, alvo de várias críticas no relatório. Os peritos propõem medidas para combater a desertificação do interior do país, que põem em causa a capacidade dos bombeiros para responder aos muitos desafios a que são chamados e que consagram também um novo olhar sobre a floresta nacional.

O Observador leu as recomendações do documento entregue esta terça-feira no Parlamento e resume as principais ideias expostas pelo grupo liderado por João Guerreiro — o mesmo grupo composto por especialistas de várias áreas (incêndios, demografia, florestas, entre outras) que já tinha sido convidado pelo presidente da Assembleia da República para analisar os incêndios de junho.

Aquilo que a comissão deixa aos deputados (se conjugados os dois relatórios) é um roteiro sobre que caminhos podem ser percorridos para evitar tragédias como as que no total vitimaram 114 pessoas em dois acontecimentos limite separados por quatro meses, no verão de 2017.

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Bombeiros a proteger populações e rever nomeações na Proteção Civil

No campo operacional, os especialistas defendem mudanças na avaliação do risco de incêndios, uma inspeção alargada aos corpos de bombeiros de todo o país e uma revolução na forma como os dirigentes da Proteção Civil são nomeados. As propostas resumem-se nos seguintes pontos:

  • Mudar a própria terminologia usada para fazer referência ao risco previsto em cada momento: “Propomos a definição de uma classe adicional de perigo meteorológico, eventualmente designada por ‘Catastrófico’ ou ‘Desastroso’”;
  • Mudar o tipo de resposta às situações mais extremas, para que, nos “poucos incêndios que não se conseguem combater devido ao seu comportamento extremo”, os “esforços” dos bombeiros sejam”mais canalizados para a proteção das populações”;
  • Elaborar uma “estratégia de robustecimento dos corpos de bombeiros”, através de uma “Unidade de Missão para a elaboração de proposta de Reorganização Estrutural do Setor Operacional de Bombeiros”;
  • Tornar “obrigatória” a “correlação” entre “as qualificações, as competências pessoais as capacidades operacionais e os cargos ou funções das estruturas da Autoridade Nacional de Proteção Civil”;
  • Definir “perfis” adequados às diferentes funções dentro da estrutura da ANPC e o fim da escolha por “nomeação” de elementos para cargos de comando e de coordenação na estrutura operacional;
  • Rever a lei, para que “as decisões de quem assume a função de comandante das operações de socorro” passem a ter “cobertura legal”.

Apostar no conhecimento e em campanhas para prevenir catástrofes

É quase um alerta que os especialistas da comissão técnica lançam para apontar a desertificação do interior do país como um problema para a prevenção de novos incêndios de consequências devastadoras. É preciso, defendem, encontrar novos modelos de desenvolvimento das zonas abandonadas. E, nesse sentido, propõem:

  • A criação de redes de unidades de investigação, vocacionadas para a valorização dos produtos regionais e locais e orientadas para a consolidação de sistemas agroalimentares;
  • O desenvolvimento de uma rede de laboratórios colaborativos, convocando as instituições de ensino superior localizadas em regiões problemáticas (do interior) e contratualizando com entidades financiadoras (públicas, privadas e outras) programas de investigação científica orientados para as problemáticas e recursos locais;

Num segundo patamar, já depois de serem definidas estratégias de revitalização do interior, é necessário criar fatores de atratividade para o interior. Fatores que podem passar por:

  • Definir estratégias capazes de atrair pessoas, através da criação de emprego qualificado;
  • Apostar nas associações que “permitam abranger os proprietários florestais privados e resolver satisfatoriamente as questões relacionadas com o cadastro, com as propriedades abandonadas, com aspetos relacionados com a gestão coletiva que podem beneficiar a produção e com a organização dos sistemas locais de defesa da floresta contra incêndios”;
  • Promover a indústria local, com a “criação de unidades de transformação” dos produtos de cada região;
  • Lançar “campanhas de formação e sensibilização junto das comunidades rurais, dirigidas e adaptadas a cada caso, definindo normas especiais na linguagem. O objetivo é ajudar  passar a mensagem sobre os alertas e avisos emitidos pelas diferentes autoridades

Relatório. Todas as falhas que contribuíram para a morte de 64 pessoas

Rever a legislação “discutível” sobre a limpeza em volta de casas

Mesmo que a Comissão Técnica reconheça ser “irrealista esperar que em propriedade privada” e a uma escala desejável se consiga alterar a gestão de combustíveis — ou seja, das espécies e matos que ardem com mais facilidade –, recomenda que se altere essa política. Assim, os responsáveis pelo relatório propõem:

  • O padrão desses combustíveis — que ardem facilmente — em áreas arborizadas ou não arborizadas deverá ser referenciado através de “tecnologia de apoio à decisão”. O “fogo controlado e o pastoreio dirigido (nos baldios) são as ferramentas privilegiadas de trabalho”, sugerem os peritos;
  • O reforço do papel das organismos da administração pública nas queimadas pastoris;
  • Aplicar a “legislação relativa ao ‘Fogo de gestão de combustível”, que permite, sempre que as circunstâncias assim o ditem, a “evolução do incêndio rural dentro de um perímetro preestabelecido”;
  • Aposta decidida  em árvores como sobreiro, azinheira, carvalho negral, que podem ser “um elemento importante na resistência e resiliência ao fogo”;
  • Rever a atual legislação sobre gestão de combustíveis (ex: mato) na envolvência imediata de casas e estradas, que tem uma “fundamentação científica discutível e é desnecessariamente drástica, ou mesmo contraproducente”.

Reforçar a proteção das infraestruturas empresariais

A destruição de fábricas e contentores industriais foi igualmente dramática nos incêndios de outubro, destruindo uma parte importante da economia local. Assim, os autores deste relatório recomendam ao Governo e ao poder local que tomem medidas para assegurar a proteção destas infraestruturas, cujos responsáveis devem também garantir o cumprimento das melhores práticas de segurança. Entre as medidas propostas constam:

  • “Priorizar ações de antecipação, antes da chegada do fogo, em termos de comunicação, difusão de comportamentos de autoproteção adequados e de organização de sistemas de proteção e socorro”;
  • “Evitar ao máximo materiais altamente inflamáveis no exterior de instalações sem alguma forma de proteção (pneus, plásticos e outros derivados de petróleo, madeiras e derivados, material vegetal seco)”;
  • “Privilegiar a utilização de materiais de baixa inflamabilidade na construção exterior”;
  • Garantir a existência de “processos autónomos de extinção de incêndios, nomeadamente geradores, depósitos de água, mangueiras e agulhetas”, nas “empresas com maior exposição ao risco, disponibilidade de processos autónomos de extinção de incêndios, nomeadamente geradores, depósitos de água, mangueiras e agulhetas”;
  • “Gerir de forma criteriosa os combustíveis na faixa de 100 metros envolvente às zonas industriais, da responsabilidade das entidades gestoras, que são, na maioria dos casos, as Câmaras Municipais”;
  • “Organizar e preparar equipas especializadas de combate a incêndios em infraestruturas empresariais”;
  • “Criar e setorizar a tipologia de ocupação nas zonas industriais em função do risco de incêndio das empresas, à semelhança do que existe ao nível da poluição”.

Pedrógão Grande: 22 falhas, 8 críticas e 32 recomendações

Rever o papel do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas

A comissão presidida por João Guerreiro é particularmente dura neste ponto: o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) não tem sido capaz de gerir com a eficácia exigida as matas nacionais e os perímetros florestais. Os autores do relatório recomendam que se olhe para o papel do instituto “sem complexos” e que se tomem medidas assertivas para a correção dos problemas estruturais do atual ICNF. É essencial, argumentam os especialistas, que:

  • Se analise o “histórico recente da instituição responsável pelo setor florestal continental”;
  • Se “proceda a uma reflexão profunda sobre os principais objetivos, responsabilidades e funções futuras da instituição responsável pelo setor em Portugal, face nomeadamente à realidade nacional e ao seu enquadramento na política florestal europeia;
  • Se “analise a futura relação entre funções e responsabilidade, sua gestão, necessidades e alocação de meios adequados”;
  • Se “assuma definitivamente que áreas com a dimensão das matas nacionais e dos perímetros florestais, não podem depender apenas de terceiros para a supressão do fogo — quem gere áreas com esta importância tem que ter capacidade própria para a sua proteção, de forma direta ou através de parcerias de colaboração e responsabilização”.

Reorientar os apoios públicos para as florestas

A forma como têm sido conduzidos os programas públicos e europeus para o desenvolvimento da floresta também mereceu duras críticas dos responsáveis pelo relatório. Os técnicos acham que existe “um forte” desajustamento entre as medidas priorizadas e a sua distribuição territorial. Que se agrava “com as necessidades das áreas de pequena e média propriedade do centro e norte do País, com maiores deficiências na gestão dos terrenos florestais e maior risco de incêndio”. A equipa coordenada por João Guerreiro chega mesma a denunciar que há “Câmaras Municipais, Juntas de Freguesia e Conselhos Diretivos de Baldios”, particularmente fustigadas pelos incêndios de outubro, que não receberam apoio por falta de dotação. Os autores sugerem assim que:

  • Se reforce substanciamente os apoios para a prevenção estrutural de incêndios do previstos nos programas comunitários;
    Que esses apoios sejam orientados preferencialmente para “as iniciativas de produtores individuais, ZIF (Zonas de Intervenção Florestal) e outras formas de associativismo florestal nas áreas com os maiores problemas”;
  • E que se introduzam já mudanças significativas na programação de fundos europeus do próximo período 2021-2027. “Os apoios aos investimentos em ações de arborização e rearborização implementados desde há quase 40 anos não têm permitido obter os resultados esperados, tal como se pode facilmente deduzir quando os inventários florestais refletem que durante este período a única espécie com um crescimento significativo é o eucalipto, enquanto em todas as outras os números foram relativamente estáveis ou com diminuição acentuada, como no caso dos povoamentos de pinheiro bravo”, notam.