A partir desta quinta-feira, na sequência da tomada de posse dos ministros do novo Governo de Pedro Sánchez, Espanha conta pela primeira vez com um ministro assumidamente gay. Trata-se de Fernando Grande-Marlaska, juiz conhecido pelas suas decisões duras contra a ETA, que assume agora a pasta do Interior.
De acordo com as contas do El Español, este não é apenas um Governo recordista em termos do número de ministras mulheres: desde o início da democracia espanhola, 206 ministros e ministras tomaram posse, mas nunca nenhum se assumiu publicamente como sendo homossexual. Grande-Marlaska vem agora quebrar essa tendência.
O juiz casou-se com o companheiro Gorka em 2005 e um ano depois confirmou publicamente numa entrevista ao El País a sua orientação sexual. Desde então, tornou-se um defensor público dos direitos LGBT. Em 2016 publicou o livro de memórias “Ni pena ni miedo: Un juez, una vida y la lucha por ser quienes somos” (sem edição em português, o título aproximado é “Sem pena nem medo: um juiz, uma vida e a luta por ser quem somos”), onde aborda o momento em que assumiu a sua homossexualidade e outros episódios da sua vida, como quando conheceu o marido.
Nascido numa família basca de Bilbao, em 1962, Grande-Marlaska é filho de um polícia e teve de enfrentar problemas com a própria família desde que assumiu ser gay, aos 35 anos, segundo conta o jornal espanhol Público. O reatar de relações só viria a acontecer em 2004.
Numa entrevista ao El Mundo, em 2014, o juiz reconhecia a importância de os titulares de cargos influentes assumirem a sua orientação sexual: “Penso que tanta gente teve de sair do armário para eu poder chegar a este cargo tão elevado. Muitos tiveram de dar esse passo, não para exteriorizar isto, mas para ajudar muitos que ainda precisam disso”, disse.
A nomeação de Grande-Marlaska para o cargo de ministro do Interior foi recebida de braços abertos por alguns grupos que defendem os direitos LGBT. “Que alguém que é gay dirija os guardas civis e as polícias nacionais é uma mensagem contundente para todas as vítimas de homofobia que continuam a não se atrever a fazer uma denúncia numa esquadra”, declarou Rubén López, diretor do Observatório Madrileno contra a LGBTfobia, ao El Español.
Luta dura contra a ETA marcou carreira de um homem “afável com mão de ferro”
Um juiz “estrela”, “conservador e meticuloso”, “afável com mão de ferro”. É assim que a imprensa espanhola descreve Grande-Marlaska, cujo percurso como magistrado ficou marcado pelas suas decisões sobre a ETA.
Licenciado em Direito Económico em 1985, três anos depois já ocupava o seu primeiro lugar como juiz em Santoña, na Cantábria, região vizinha do País Basco. Aos 37 anos, passou para um tribunal de província, a Audiência de Vizcaya, da qual viria a tornar-se juiz-presidente. Em 2004 entrou na Audiência Nacional (tribunal com jurisdição nacional), substituindo o conhecido magistrado Baltasar Garzón.
Foi neste tribunal que Grande-Marlaska tomou algumas das decisões mais importantes da sua carreira como juiz. Julgou o conhecido membro da ETA (e atual coordenador do partido basco Bildu) Arnaldo Otegi, tomou decisões duras contra o braço político da organização terrorista — o Batasuna — e condenou a penas de prisão membros da Segi, uma organização juvenil ligada à ETA.
As decisões valeram-lhe ameaças. Grande-Marlaska acabaria por ser inclusivamente alvo de um atentado planeado por um comando etarra em La Rioja. O magistrado acabaria por mudar-se depois definitivamente para Madrid. Grande-Marlaska tomou ainda decisões importantes noutras matérias como a autorização de escutas ao imã de Ripoll, em 2005, que acabaria por vir a ser o mentor dos atentados de Barcelona em 2017.
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O caso mais polémico da sua carreira será provavelmente o relacionado com o acidente do avião Yak-42, na Turquia, que transportava membros do Exército espanhol, regressados de uma missão no Afeganistão. Grande-Marlaska absolveu o Ministério da Defesa espanhol, atribuindo as culpas do acidente à tripulação ucraniana, como explica o El Confidencial. Em recurso, o Supremo Tribunal acabaria por responsabilizar cinco altas patentes militares pelo acidente. A sua decisão é por isso fortemente criticada pelos familiares das vítimas — ainda esta quinta-feira alguns lamentaram a sua nomeação como ministro, que consideraram “perversa e de partir o coração”.
Ao longo da sua carreira, Grande-Marlaska tem feito questão de se afirmar como politicamente independente: tornou-se membro do Conselho do Poder Judicial por proposta do Partido Popular, e agora acabou por aceitar o convite de Pedro Sánchez para se tornar ministro de um Governo socialista — e tornar-se assim o primeiro governante na História de Espanha assumidamente gay.