“Carne, queijo, gordura e pão: a combinação imortal”, dizia Anthony Bourdain quando regressou ao Porto em 2017. Por muito que tivesse razão, a verdade é que sim, existem muitos pratos a cruzar esses ingredientes, mas nenhum deles consegue igualar a célebre francesinha.

O imaginário gastronómico português está cheio de curiosidades, histórias (muitas vezes rocambolescas) e os chamados fun facts que tanto jeito dão, por exemplo, durante uma partida de Trivial Pursuit. Particularidades como o facto do famoso prego no pão ter sido criado ao pé da Praia das Maçãs (Sintra) por Manuel Dias Prego ou que o pão-de-ló tem esse nome porque foi feito em homenagem a Ló, o filho de Abraão que foi salvo por anjos às portas de Gomorra, são exemplos de que há quase sempre uma história interessante por trás daquilo que comemos. A francesinha não é diferente e foi para conhecer melhor o passado desta gulodice que o Observador foi falar com Júlio Couto, o homem que a batizou.

“Eu não sei cozinhar, comecemos por aí”, disse Júlio Couto ao Observador numa chuvosa manhã de junho. Sentado na sua poltrona, emoldurado por pilhas de jornais, revistas e folhas sem fim, o octogenário (tinha feito 83 anos há poucas semanas) apresentou-se. “Eu era economista, técnico de contabilidade, e isso dava-me um grande contacto com este e com aquele”, explicou. “Quando era novo”, gostava de se juntar com os amigos e saltitar por várias tascas e restaurantes do Porto, “por volta das seis e meia”, depois do trabalho, para “comer qualquer coisa” e “pôr a conversa em dia”. Um dos sítios que mais costumavam visitar era o restaurante Regaleira, vizinho do lado da Rua Sá da Bandeira.

Foi no restaurante Regaleira que nasceu a francesinha. Fechou há poucos dias, mas serviu a receita original (esta) até ao fim. ©Diogo Lopes/Observador

Daniel David de Silva era o proprietário desse espaço e dava-se muito bem com Júlio (“ele era um moço da minha geração, andávamos sempre juntos”). Motivado pela pobreza extrema, Daniel mudou-se para a Bélgica ainda novo e lá encontrou trabalho no ramo da restauração. “Ficou por lá uns bons anos” mas as saudades de casa falaram mais alto e acabou por regressar com a vontade de montar “uma casa de comidas” bem sucedida. “Ele trouxe a ideia do croque monsieur e tentou servir isso cá”, conta o anfitrião. A ideia não pegou, mas Daniel estava convicto de que dali podia sair alguma coisa boa. Algures no ano de 1952, Júlio e a “rapaziada” desaguaram no Regaleira, como era costume, e foram surpreendidos pelo ex-emigrante: “Ele disse-nos que tinha feito uma coisa nova, uma invenção, e queria que nós provássemos”, explicou. Em pouco tempo chegou à mesa uma sanduíche generosa, banhada a queijo derretido e molho alaranjado. Júlio foi um dos primeiros a provar e o resultado foi, no mínimo, amor à primeira dentada. “Ele tinha feito um prato do caraças”, clamou, mas havia uma dúvida: Que nome é que iam dar àquela iguaria?

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“Quando acabámos de comer perguntei-lhe: ‘Olha lá, que nome é que vais dar a isto para servir amanhã?'”, disse o anfitrião. Daniel não se lembrou de nada, mas Júlio sim: “Naquele momento baixou a minha maldade toda [risos] e comecei a pensar: isto era uma coisa picante, muito agradável… Porque não chamar-lhe francesinha?”

À partida a ligação pode não fazer muito sentido, mas ele existe — pelo menos segundo o entrevistado. “Na altura as mulheres portuguesas eram muito conservadoras, mas as francesas não, eram bem mais liberais e confiantes”, relatou. Ora na sua cabeça, a junção de ideias foi simples: as “catraias francesas” faziam-lhe lembrar as características do prato e ficou assim. “Depois deste batismo não serviu de nada tentar chamar-lhe outra coisa qualquer.”

A invenção do senhor Silva foi um sucesso quase instantâneo. Júlio recorda que em pouco tempo “as pessoas começaram a fazer fila à porta do restaurante” e muitas vezes comiam mais que uma. O sabor intenso e o cariz pesado desta criação de Daniel estava em linha com os típicos sabores nortenhos e isso “poderá ter sido a chave do sucesso”. Escusado será dizer que também não tardaram a haver outros espaços a servir francesinhas, sempre diferentes desta original (que era feita com pão bijou e não com o já habitual pão de forma) mas igualmente populares. “Os empregados iam saindo para outros sítios e depois tentavam replicar a receita”, e um desses casos foi o do “gajo que saiu de lá e foi para Gaia, para um restaurante que fica logo à saída da ponte, à direita”, o café Mocabe. “Ele decidiu replicar a receita — à sua maneira — e passaram a haver francesinhas em Gaia. A coisa foi funcionando assim sucessivamente.”

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Hoje, a francesinha tem tanto de importante como de polémico. Todos os anos debate-se sobre qual é a melhor da cidade, discute-se a receita de molho mais perfeita, mas Júlio não dá relevância a nada disso. “Opa, não há receita nenhuma original, toda a gente faz a coisa à sua maneira. Não há um papel que diga ‘esta é que é a verdadeira receita”. Fiambre, queijo, linguiça, um bife de vaca, pão e molho são alguns dos elementos mais facilmente encontrados, mas a variantes são quase infinitas (“Até há uma que lhe espetam um camarão em cima, veja lá!”).

A do recém encerrado Regaleira (fechou portas há poucos dias porque foram “corridos” pelas pessoas que compraram o edifício onde sempre morou), a original, tem duas grandes diferenças: o pão, como já foi mencionado, e o facto de ter carne assada em vez de bife. Independentemente da forma como são feitas, as francesinhas estão intimamente ligadas a Júlio, que é democrático ao dizer que não tem nenhuma favorita, “gosta de todas”. Quando questionado sobre quantas já comeu, a resposta foi bastante incisiva: “Chiiiiii… tantas! E atenção, eu não as provei, eu comi-as!” Olhando para a sua idade e sabendo do elevado número de francesinhas que já comeu, fica no ar a suspeita de que talvez elas não façam assim tanto mal (por terem um alto teor de gordura, por exemplo) como se diz. Ainda bem.