Mais um dia de festival, mais um dia de sol. Neste ano, Paredes de Coura fez um pacto de não agressão com a chuva e o público, sempre pela paz, agradeceu. No geral isso traduziu-se em caras mais felizes e apaixonadas, roupas leves – o mínimo indispensável e só o mínimo – mas também em mais horas de banhos e bronze no Taboão. Não foi por acaso que, nestes dias, a maior parte dos campistas só tivesse pisado o recinto a meio da noite, a não ser que aquela banda de eleição contrariasse a tendência. Hoje, em Smartini o ambiente ainda se sentiu muito morno, mas Lucy Dacus foi eficaz em convencer os fãs a largar o rio para os puxar para o seu rock melódico.
De guitarra preta na mão, apresentou-se depois de Night Shift e antes de Nonbelieve, como alguém que acabamos de conhecer num copo de final de tarde com amigos, “Hi, I’m Lucy and I’m from West Virginia, US”. Agradeceu a nossa presença naquele que foi o primeiro concerto em Portugal e o primeiro da tour europeia, mas também nos deixou um pedido de desculpa “pelo comportamento dos EUA ultimamente” em forma de Yours & Mine:
Take care of you and yours
But me and mine (me and mine)
Me and mine (me and mine)
We’ve got a long way to go
Before we get home
‘Cause this ain’t my home anymore
Seria o primeiro manifesto político de um dia com Riot pela frente.
Ainda com Lucy Dacus ao fundo, a cantar para a avó Pillar of Truth, subiam ao palco Vodafone FM os Imarhan, com os seus turbantes tradicionais por cima dos jeans. Os argelinos brindaram-nos com os ventos da África magrebina e com o seu novo trabalho, Temet, que em português significa ligação. “Só na aceitação é que poderemos resolver os problemas culturais da atualidade”, é o que diz o seu manifesto. Coura soube-se ligar a eles dançando ao ritmo das suas guitarras tuareg, mexendo o ventre como uma bailarina, num ritual em que houve encontro e não choque de culturas.
A sensibilidade abrasiva de Morby
A promessa não se cumpriu, contra a expectativa dos adeptos do FC Porto que se vestiram neste dia de azul e branco. Impossível não reparar neles, estavam por todo o lado: uns com modelos mais retro da Kappa, outros com aquele pouco amado metade azul, metade branco que durou apenas uma época e muitos com o mais recente de campeão. Só que Kevin, que há uns dias tinha publicado uma foto no instagram vestido à Porto dizendo que ia usar a camisola em palco, recuou na decisão e apresentou-se com um macacão, todo azul por sinal.
Mas vamos ao que interessa. O concerto começou com aquela guitarra viajada de City Music, suave transição do magreb para a América de Kevin Morby e de outros melómanos melancólicos. Em uma hora, Morby mostrou, sem qualquer mise-en-scène superficial, a beleza das suas letras tristes e dos instrumentais que nos ajudam a embarcar nesse imaginário de mil e uma cidades com as suas marcas concretas, rudezas do tempo, também elas frágeis. Nas letras, cada qual uma história, sente-se a textura do bloco amarrotado e da caneta que lhes deu vida, sente-se Lou Reed em Parade mas também os Ramones em 1,2,3,4
Joey, Johnny, Dee Dee , Tommy
They were all my friends
And they died
Falou pouco ao público, mas ninguém lhe exigia mais palavras do que aquelas que nos deu no alinhamento, focado principalmente no último álbum, mas sem esquecer temas como Harlem River, I’ve been to the Moutain ou Destroyer. Disse que era sempre bom voltar a um dos seus países favoritos e ainda acrescentou, “about the FC Porto jersey”, que não percebia nada de futebol”, que com aquilo do instagram só queria dizer “gosto de todos vocês.” É possível ter clube depois desta declaração?
Foi sem dúvida uma das atuações mais sólidas do dia e de todo o festival, de um músico que impressiona pela sua sensibilidade, extensível à banda que o acompanha.
Juniores e veteranos
A plateia era generosa. Frankie Cosmos foi um dos nomes mais mencionados por estes dias no campismo, principalmente pelos mais novos que ansiavam por ver Greta Kline, ela que começou sozinha em casa, em 2010, para quatro anos depois lançar Zentropy, com uma banda a seu lado. Em palco não desiludiu quem tanto esperou para a ver, numa doçura indie-pop leve, sempre boa de descobrir.
Tudo mudou horas depois. Os miúdos de Frankie Cosmos desapareceram em …And You Will Know Us By The Trail of Dead para cederem lugar a outros miúdos, aqueles que já deixaram há anos de correr para a primeira fila horas antes do concerto começar, mas que agora se agarravam às grades com unhas e dentes para ver os seus ídolos de adolescência.
Na altura de Source Tags & Codes, que conseguiu a proeza de levar um 10 da Pitchfork (estávamos nós em 2002) ainda se colavam posters ao armário, emprestavam-se CDs com a avidez de rolar faixa por faixa novos álbuns que desesperávamos por conhecer e davam-se os primeiros passos na pirataria à boleia do Audiogalaxy, “extinto programa de partilha de arquivos”, relembra o Google.
O concerto desta noite foi sobretudo para os fãs desse tempo, com a banda – uns quilos a mais dos que tinham nos tais posters – a suar com desvairado prazer. “We don’t know what the fucking we are doing”, disseram a certa altura quando tocaram temas do novo álbum, já depois de Jason e Conrad trocarem umas três vezes de posição da bateria para a guitarra, ora canta um ora canta outro. Desafinaram, é certo, mas ninguém se importou com isso. Houve ali uma comunhão demasiado forte entre banda-público, passado-presente. Para muitos, este até pode ter sido o concerto de uma vida, só eles saberão.
Enquanto isto acontecia no Vodafone FM, já DIIV ia bem adiantado no palco principal. Disseram que era um prazer tocar antes dos Slowdive, inspiração óbvia no seu shoegaze que, apesar dos sinais promissores de Oshin e principalmente de Is the Is Are, pareceu ainda verde em palco. Os tempos longos de paragem, a rodar as cravelhas para cima e para baixo de uma guitarra teimosa em acertar na afinação, alguns diálogos surdos com os fãs da frente, “I wish i could ear what you say” (e nisto já lá vão 10 minutos) quebraram pouco a pouco a expectativa que pairava em torno deles. Talvez tivessem encaixado melhor no outro palco, sem o peso de uma colina inteira à sua frente.
Já os Slowdive souberam domar do início ao fim a encosta, que nunca pareceu excessivamente grande para eles. Foi do tamanho certo de uma banda que tem canções como Slomo, Star Roving e Sugar for the Pill, límpidas no som que nos chegou das guitarras, dos teclados e das vozes de Rachel Goswell e de Neil Halstead. O fumo que foi saindo da parte de trás do palco, junto ao fundo preto com o nome slowdive esticado em minúsculas, ajudou a formar a névoa sonhadora de guitarras distorcidas, voz do além e uma bateria sem pressa de nos acordar – tanto que, de olhos fechados no instrumental final, nem notámos que Rachel tinha saído de cena antes de todos os outros. Foi magia celestial antes das ruas de Londres invadirem o alto minho.
Ouviu-se “bounce, bounce” em Paredes de Coura
À hora do almoço, enquanto nos aventurávamos pelos mestres da culinária do campismo, ouvimos alguém a comentar que há uns anos ninguém imaginaria que Paredes de Coura tivesse um cabeça de cartaz do hip-hop. A constatação não era propriamente elogiosa, ainda há uma quantidade significativa de puristas do rock a peregrinar até ao Taboão. Mas Coura nunca fechou as portas a nenhum estilo e se já noutros festivais o rap foi dominando a atenção – sinais do tempo – aqui dificilmente poderia passar despercebido.
Portanto quando Skepta entrou em cena, com o seu Dj Maximum na retaguarda, algo de novo e estranho se passou naquele verde habituado a outras sonoridades. Notava-se claramente dois tipos de público: um a jogar na defesa, posicionado mais atrás e a tentar alinhar a medo naquele frenesim de “bounce”, “make some noise” e “show me your middle finger”; outro fanático e fiel, a formar ondas na dianteira que nem um mar descontrolado a bater contra as rochas, pronto a disparar as letras que estavam na ponta da língua e, para azia de Joseph Junior Adenuga, objetos pouco convenientes para cima do palco. Voaram copos, camisolas, lâmpadas distribuídas pela Vodafone e que se têm multiplicado como pirilampos durante as noites, voaram até sapatilhas que felizmente Skepta não viu. É que por essa altura, o boy better know já tinha feito um primeiro aviso em inglês que, mostrando-se inconsequente, levou a que o próprio saísse abruptamente do palco sem que muitos percebessem bem porquê. A voz que se seguiu em português deixou a ameaça bem clara, ou param de atirar coisas ou o concerto não pode prosseguir.
Para o bem e para o mal prosseguiu, com Numbers. Depois desse insólito momento, a sensação que ficou no ar foi que Skepta e o público nunca comunicaram em absoluto no mesmo comprimento de onda, com o rapper a querer que o ambiente ficasse ainda mais grime, “I need more energy”, mas sem que a comunhão se desse verdadeiramente naquela hora de concerto. Shutdown, No Security foram, contudo, catárticas, com Man a aproveitar a avalanche para celebrar a família, o gang:
Can’t work out what I just said to a man
Told me you was a big fan
But the first thing you said when you saw me is
“Can I get a pic for the gram?”
I was like “Nah, sorry man”
I only socialize with the crew and the gang
O gang que acabaria por invadir o palco na última música era o pessoal da crew de Skepta a insurgir-se em Praise the Lord, enquanto o músico se despia do boné, dos óculos e do casaco preto para o entregar ao público da frente. Ainda chegou a aproximar-se das grades, no final foram feitas as pazes, mas não foi com este concerto que Coura se ajoelhou cegamente perante o hip-hop
Anyone can be a Pussy Riot
Não era cabeça de cartaz, mas a enchente no palco secundário, apesar das longas duas da manhã, mostrava que ninguém queria sair dali sem pôs os olhos nas Pussy Riots. Esperava-se muita luta e resistência, poder feminino e insubmissão crónica. Tudo certo: o espetáculo começou com mais de 20 tópicos enumerados numa lista de mensagens políticas projetadas na tela do fundo do palco (que se desconectou algumas vezes ao computador). Terminadas as denúncias de corrupção, ganância e abuso de poder, “inclusion and equality is what we need”, a ovação foi deitada cá para fora a plenos pulmões assim que os quatro membros encapuçados entraram em palco. Nadezhda Tolokonnikova, 28 anos, greve de fome no corpo e 21 meses de prisão depois da oração punk da Catedral de Cristo Salvador, em 2012, liderava as operações – ela o dj foram os únicos a mostrar a cara. Pregou e deu-se a uma plateia que não esperava tão cheia, mas estava feliz por ali estarmos. Aproveitou a nossa presença para falar de Anya Pavlikova, uma jovem presa ainda menor de idade por ter criticado o governo de Putin numa conversa de McDonalds com amigos; ou do cineastra Oleg Sentsov, natural da Crimeia e condenado a 20 anos de pena de prisão, aquando da anexação russa, sob acusações de conspiração terrorista. Está há mais de 90 dias em greve de fome, “a qualquer momento poderá acontecer-lhe qualquer coisa.” A urgência escorria-lhe da voz, todos os minutos contam nesta luta desigual contra Putin, Trump, contra um mundo de exploração onde elas só querem “freedom of having fun”.
No que à música diz respeito, excentricidade talvez seja a palavra que melhor a defina. A navegar entre o hip-hop, o pop de anúncio de televendas e o eurodance de cassete manhosa perdida numa estação de serviço, foi uma esquizofrenia total a que se dançou – ou tentou dançar – durante aqueles 45 minutos. Mas isso acabou por ser o menos importante, a mensagem estava passada e a luta, essa, continuará. “Anyone can be a Pussy Riot”, terminava por dizer Nadezhda. Só é preciso homens e mulheres com a coragem e a vagina no sítio certo para o ser.