A Benfica, SAD, terá beneficiado do acesso a informação privilegiada de processos em segredo de justiça que terá utilizado em seu benefício desportivo. Esta é a tese central da acusação da 9.ª Secção do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa do chamado caso e-toupeira, a que o Observador teve acesso, que imputa a Paulo Gonçalves (assessor jurídico da Benfica SAD) e à Benfica SAD a alegada prática de corrupção ativa, de oferta indevida de vantagem e de 28 crimes de falsidade informática.

Algumas das contrapartidas alegadamente oferecidas por Paulo Gonçalves aos funcionários judiciários alegadamente corrompidos (José Silva e Júlio Loureiro) tiveram, segundo o Ministério Público, “autorização” do presidente Luís Filipe Vieira. O líder benfiquista já anunciou que vai falar pelas 20h30.

Estes últimos 28 crimes são imputados em regime de co-autoria com os funcionários judiciais José Silva, que se encontra preso preventivamente, e Júlio Loureiro. Só José Silva acedeu mais de 500 vezes a 26 inquéritos criminais e outros processos judiciais em que o Benfica e seus representantes e funcionários eram visados, assim como com autos relacionados com os adversários Sporting e Porto, bem como a diversas queixas de corrupção desportiva apresentadas contra o clube da Luz.

Diz o Ministério Público que “uma vez na posse de tais informações, pretendiam Paulo Gonçalves e Benfica SAD antecipar diligências processuais em que seria visada a Benfica SAD e seus membros ou obter informações sobre adversários ou ainda informações antecipadas de decisões judiciais” — tudo em benefício da Benfica Futebol SAD, lê-se na acusação. Ou seja, o Ministério Público entende que tem indícios de que o Benfica reuniu um conjunto avassalador de informações que, em primeiro lugar, permitiram antecipar investigações criminais contra o clube da Luz. E, por outro lado, permitiram ter acesso a informação privilegiada sobre os seus adversários Sporting e Porto.

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Uma dessas queixas é o chamado caso dos vouchers que teve grande impacto mediático devido a uma entrevista televisiva de Bruno de Carvalho. José Silva, alegadamente a pedido de Paulo Gonçalves, acedeu 187 vezes ao inquérito entre 14 de março de 2017 e 3 de março de 2018 que foi iniciado com queixa da Federação Portuguesa de Futebol após a transmissão das declarações de Bruno de Carvalho no programa “Prolongamento”. Estes autos continuam em investigação.

A queixa criminal apresentada contra o Benfica de forma anónima a 8 de junho de 2017 por alegadamente fomentar “um alegado esquema de corrupção na arbitragem para beneficiar” o clube da Luz foi igualmente acedido por José Silva por 204 vezes entre 15 de junho de 2017 e 3 de março de de 2018.

Os autos que despertaram mais atenção de Paulo Gonçalves, contudo, foi a queixa que o próprio Benfica colocou em 2017 contra incertos por acesso ao sistema informático do clube, depois de Francisco J. Marques, diretor de comunicação do Futebol Clube do Porto, ter começado a revelar emails internos do clube da Luz na canal televisivo gerido pelo Porto. O inquérito ainda está em segredo de justiça. José Silva acedeu 211 vezes a este processo entre o dia 21 de junho de 2017 e 3 de março de 2018. De certa forma, Silva acompanhou a pedido de Gonçalves todo o desenvolvimento da investigação do DIAP de Lisboa.

Num inquérito relacionado com crimes de corrupção passiva alegadamente praticado por funcionários do Centro Distrital de Lisboa da Segurança Social, Luís Filipe Vieira, enquanto presidente da Benfica SAD terá recebido, em 2017, um pedido de informação da Polícia Judiciária. De acordo com a acusação, “logo nessa tarde, Paulo Gonçalves transmitiu a José Silva o número do inquérito para este aceder ao mesmo, o que este fez pelas 17h30 do mesmo dia”. José Silva terá ainda acedido mais 13 vezes entre 19 de abril de 2017 e 21 de junho de 2017 ao mesmo inquérito.

Há outros processos relacionados com jogadores do Benfica (Fejsa, por exemplo) em que Paulo Gonçalves pediria a José Silva o acesso a informação privilegiada.

O caso Doyen, que relata um conflito entre o Sporting liderado por Bruno de Carvalho e um o fundo de investimento Doyen a propósito da venda o jogado Marcos Rojo, também foi consultado por José Silva.

O mesmo aconteceu com o caso GALP/Euro 2016, onde o Ministério Público já constituiu como arguidos os três ex-secretários de Estado do Governo PS, mais o ex-líderes parlamentares social democrata Hugo Soares  e Luís Montenegro. Luís Campos Ferreira, ex-secretário de Estado do PSD, também foi constituído arguido.

No que diz respeito ao Futebol Clube do Porto, Paulo Gonçalves terá ainda pedido informação sobre uma queixa cível interposta pelo clube liderado por Pinto da Costa contra o jornal A Bola, a sociedade Vicra (proprietária do jornal), o diretor Vítor Serpa e o cronista Miguel Sousa Tavares.

No total, Paulo Gonçalves foi acusado de 79 crimes, entre os quais corrupção ativa (1), oferta indevida de vantagem (1), violação do segredo de justiça (6), violação de segredo por funcionário em co-autoria com Júlio Loureiro e José Silva (21), acesso indevido em co-autoria com Júlio Loureiro e José Silva (9), acesso indevido (2), violação do dever de sigilo em co-autoria com Júlio Loureiro e José Silva (9), violação do dever de sigilo (2) e falsidade informática em co-autoria com Júlio Loureiro e José Silva (28).

Já a Benfica SAD, enquanto entidade coletiva e por ter oferecido contrapartidas a José Silva e Júlio Loureiro e beneficiado das informações recolhida por aqueles funcionários judiciários, foi acusada de um crime de corrupção activa e de um crime de recebimento indevido e 28 crimes de falsidade informática em “concurso aparente com acesso ilegítimo e burla informática”, lê-se no despacho de acusação.

Um lugar cativo no anel VIP, camisolas e fotografias com os jogadores. E a autorização de Vieira

O Ministério Público acusou José Silva e Júlio Loureiro do crime de corrupção passiva por alegadamente terem transmitido toda a informação judicial acima referida “com a promessa de tratamento privilegiado junto do Benfica, designadamente para assistência a jogos em condições favoráveis, aceitaram proceder como solicitado”. Além do acesso privilegiado aos jogadores da equipa profissional do Benfica — o sonho de qualquer adepto.

Era mais um dia de jogo do Benfica e José Silva assistia, com Júlio Loureiro e Óscar Cruz (amigo de Paulo Gonçalves que serviu de intermediário entre o braço direito), na bancada VIP, com bilhetes oferecidos por Paulo Gonçalves. Naquele último 3 de março, após uma vitória de cinco golos entrados na baliza do Marítimo, Paulo Gonçalves acabaria a dar mais um presente a José Silva: permitiu-lhe que descesse ao parque de estacionamento reservado aos jogadores, no Estádio da Luz.

José Silva tirou fotografias com os jogadores da equipa principal e até as publicou no Facebook. Aparecia com Samaris, Jardel, Douglas, Eliseu e Luisão, mas acabaria por ser chamado à atenção horas depois. Paulo Gonçalves avisava Óscar que José Silva devia “resguardar-se” mais, e não exibir muito as camisolas do Benfica, “senão podiam desconfiar”. O recado chegou célere, ainda no início da madrugada a seguir ao jogo. Já na manhã seguinte, Óscar enviaria nova mensagem a José Silva a justificar-se: “só disse isso para evitar desconfianças”.

O episódio consta de um capítulo da acusação do Ministério Público (MP) que se dedica exclusivamente às ofertas que Paulo Gonçalves fez aos dois funcionários judiciais em troca de informações confidenciais do sistema Citius. Nas contas da acusação, foram oferecidas três camisolas e um blusão do Benfica no total de 254, 91 euros. E as entregas foram feitas com “autorização do presidente Luís Filipe Vieira”. Diz o MP que o presidente sabia dessas ofertas por mail ou rubricando a folha de autorização — nunca impedindo que acontecessem.

O MP explica que Gonçalves, assessor do conselho de administração e responsável pelo departamento jurídico, tinha autonomia para pedir produtos do clube que se destinassem a ser entregues para “benefício da SAD”. Pedia diretamente ao armazém do clube os produtos que pretendia e, depois, estes eram faturados à SAD. E podia fazê-lo à vontade, porque não existem regras para isso no Benfica e não é necessária qualquer justificação verbal ou escrita, registando-se apenas qual o diretor que os solicita. “Só há regras definidas quanto à cedência de bilhetes para os jogos da final da Taça de Portugal”.

O MP explica ainda que normalmente os bilhetes não incluem parque de estacionamento, que é vendido à época pelo valor anual de 550 euros. A pulseira Lisboa Lounge (LL) permite acesso exclusivo a um longe onde são servidas bebidas e custa 30 euros por jogo. O piso 1 do estádio é considerado o “anel VIP”, tem cadeiras estofadas e melhor visibilidade e os bilhetes para cada jogo variam entre os 30 e os 60 euros.

No entanto, Paulo Gonçalves deu sempre, pelo menos, quatro bilhetes com parque e lounge a José Silva e a Júlio Loureiro, para todos os jogos em casa nas ultimas jornadas da época 2016/2017 e em todos os jogos da época desportiva de 2017/2018 8até março). O MP enuncia 14 jogos. O diretor também chegou a dar bilhetes para jogos fora, que eram disponibilizados pelas equipas adversárias.

Num dos jogos, Paulo Gonçalves conseguiu que Svilar, o jogador, entregasse uma camisola sua a um dos filhos de José Augusto. Noutro, foi “diligenciada” a contratação de um sobrinho de José Silva, licenciado em turismo, para o museu Cosme Damião, do Benfica.

Notificação já chegou ao Estádio da Luz

Benfica já foi notificado da acusação que o Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa formou contra o clube. De acordo com o Expresso, que avançou a notícia, a notificação foi recebida durante a manhã desta quarta-feira.

Além da responsabilidade penal, o clube encarnado arrisca-se, em caso de condenação judicial, a uma pena acessória que pode suspender o clube da participação em provas desportivas profissionais por um período entre 6 meses e três anos, tal como foi agora pedido no processo de acusação, como o Observador noticiou esta terça-feira.

O Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol anunciou esta quarta-feira a abertura de um inquérito disciplinar ao Benfica, tendo os autos do processo sido reencaminhados para a Liga de Clubes para posterior investigação.

Benfica e Paulo Gonçalves acusados no caso e-toupeira. Clube arrisca suspensão que pode ir de 6 meses a 3 anos