A Apple anunciou esta quarta-feira que a quarta geração do Apple Watch, o relógio inteligente da Apple, terá a capacidade de fazer eletrocardiogramas que podem ser utilizados em diagnósticos. Segundo o vídeo de apresentação do Apple Watch publicado no YouTube, a parte traseira do smartwatch terá sensores capazes de detetar os sinais elétricos gerados pelo coração e criar gráficos para analisar o estado de saúde cardíaca do utilizador: “Além de um sensor cardíaco ótico, há um novo sensor cardíaco elétrico assinado pela Apple que permite fazer eletrocardiogramas para partilhar com o seu médico. Colocar um dedo na coroa digital cria um circuito com elétrodos na parte de trás, fornecendo informação que a aplicação ECG usa para analisar o ritmo cardíaco”.

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Os relógios da Apple já tinham um sensor cardíaco ótico que permitia “calcular quantas calorias queima durante os treinos, determinar a frequência cardíaca em descanso e alimentar a notificação de alto ritmo cardíaco”, recorda Jeffrey Williams. Mas, de acordo com o diretor de operações da marca, a Apple quis “dar o passo seguinte” e anunciou três novas características. A primeira é o envio de uma notificação se o ritmo cardíaco parecer demasiado baixo. E a segunda característica é o envio de uma notificação se o Apple Watch detetar um ritmo cardíaco irregular que pareça ser uma fibrilação auricular.

Essas duas características são alimentadas pelo sensor cardíaco ótico. Mas a grande novidade está na terceira funcionalidade, garante Jeffrey Williams: “A terceira característica é possível graças a um novo sensor cardíaco elétrico no Series 4. Juntámos elétrodos nos cristais de safira que existem na parte de trás do relógio e na coroa digital, permitindo que tire um eletrocardiograma. Este é o primeiro eletrocardiograma oferecido sem necessidade de licença ou de receita médica diretamente aos consumidores. Agora pode fazer um exame em qualquer altura, em qualquer lugar a partir do pulso. Só tem de abrir a aplicação”.

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A demonstração da Apple esquematiza como é que tudo acontece: os elétrodos incorporados no relógio detetam os impulsos elétricos dos batimentos cardíacos, encaminham-nos para o chip do Series 4 e depois convertem-nos para um algoritmo. Segundo o diretor de operações da Apple, este processo de recolha, encaminhamento e codificação da informação demora 30 segundos. Ao fim desse intervalo, o utilizador vai receber uma classificação do ritmo cardíaco: “Todas as informação recolhidas, as classificações e os sintomas detetados são todas armazenadas num PDF que pode partilhar com o seu médico. Assim ele pode uma imagem detalhada do seu ritmo cardíaco, semelhante a um eletrocardiograma que normalmente só é obtido nas clínicas”.

Funcionalidades como esta pretendem fazer dos produtos Apple os “guardiões inteligentes da saúde”, como afirmou Jeffrey Williams. E para João Morais, presidente da Sociedade Portuguesa de Cardiologia, “era ótimo que todos os doentes pudessem ter acesso a um produto como este”. Em conversa telefónica com o Observador, o médico cardiologista explicou que “esta é uma tecnologia muito útil”: “Se um paciente me aparecesse no consultório com um registo obtido através de uma funcionalidade destas olharia com bons olhos para ele porque esta é uma tecnologia particularmente importante para a área da medicina e da cardiologia em particular. Permitiria identificar alguns problemas que só conseguimos identificar se o momento em que ele acontecer estiver registado. Nós trabalhamos com base naquilo que as pessoas nos contam, mas tudo seria mais simples para ambas as partes se um paciente me pudesse dizer: ‘Eu senti isto e o meu smartwatch registou tudo’“, completa o médico cardiologista.

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Esta característica não é pioneira, realça o cardiologista: há vários aplicações que “fazem coisas mais ou menos parecidas com essas” e “o mais famoso é da Apple”. João Morais refere-se a AliveCor, uma aplicação em que o utilizador coloca dois dedos numa placa para fazer um registo cardíaco que era depois carregado para o iPhone. A grande evolução, no entanto, é a existência “de um traçado”. Isto é, de um gráfico que esquematize esse registo. Para ele, “estes são avanços fantásticos para a medicina”: “Isto é tão útil e importante que o Sistema Nacional de Saúde no Reino Unido deu aos médicos ingleses estes materiais para distribuírem pelos doentes, para ajudar aos diagnósticos. Isto é muito interessante”, descreve o médico.

João Morais aceitaria um registo desta natureza de um paciente que tivesse acesso às funcionalidades do Apple Watch Series 4, desde que elas fossem validadas pelas autoridades competentes: “Para nós, médicos, a questão é sempre a validação do dispositivo. A questão é a valorização técnico-científica. Estes relógios têm de ser sujeitos a avaliação, assim como qualquer dispositivo em medicina”. Isso não parece ser problema para a Apple: tanto a Food and Drug Administration (FDA) — a entidade que regula todos os produtos de saúde, incluindo medicamentos, postos no mercado nos Estados Unidos — como a Associação Americana do Coração aprovaram estas novas funcionalidades e estiveram no palco do auditório Steve Jobs para confirmá-lo. “Se a FDA, com todo o seu rigor, diz que este produto é bom e é fiável, eu não teria dúvida nenhuma em incorporar esses dados no meu diagnóstico“, conclui João Morais.

Mas é preciso ter cuidado com os nomes, avisa Mário Oliveira, cardiologista do Hospital CUF Infante Santo e CUF Porto. Acabado de sair de um webinar da Sociedade Portuguesa de Cardiologia, o médico explicou ao Observador que “é errado chamar eletrocardiograma” aos registos que o Apple Watch Series 4 é capaz de fazer: “O relógio consegue detetar a atividade elétrica do coração, mas só numa derivação: naquela que é possível através do pulso. Um eletrocardiograma inclui várias derivações, por isso é que se ligam tantos fios em tantas partes do corpo do paciente. Com este registo só dá para saber se o doente está com um ritmo cardíaco normal ou anormal. Tem essa limitação”, explica.

Créditos: NOAH BERGER/AFP/Getty Images

Isso não retira mérito a esta novidade da Apple, opina Mário Oliveira. Embora “este registo seja muito limitado da atividade elétrica do coração”, a verdade é que “pode ser útil em grupos muitos específicos para os quais a telemonitorização é aconselhada”, acrescenta.

A telemonitorização é uma técnica em que os médicos dão materiais aos pacientes para criar registos cardíacos à distância, como é o caso do monitor Holter, por exemplo. Objetos como o Apple Watch, capazes de fazer essa monitorização — mesmo que num nível de pormenor mais baixo — “dão  ao cidadão um instrumento que é muito mais fácil de utilizar porque é um relógio”: “Isto vai ser muito generalizado e pode ser vantajoso para fazer rastreio de determinadas patologias, como a fibrilação auricular, que é a arritmia mais comum. Essa é uma condição que pode acontecer em pessoas sem sintomas, mas é um indicador de um maior risco de AVC à medida que a idade avança ou em pessoas com diabetes”, antecipa o médico cardiologista. Detetar o problema mais cedo pode evitar problemas maiores e as novas características do Apple Watch podem ser ajudar nesse sentido.

Mas não é apenas dentro dos consultórios médicos que o Apple Watch pode vir a ter interesse. Mário Oliveira acredita que ele seja muito importante para os investigadores: “Em populações bem selecionados pode ser muito útil. Acredito que vários grupos de médicos cardiologistas possam vir a estudar o Apple Watch como uma possível ferramenta de telemonitorização“. E o facto da FDA e da Associação do Coração darem um carimbo de qualidade ao produto ajuda: “Isso traz um cunho muito sério. São duas das instituições com maiores responsabilidades mundiais, porque embora operem só nos Estados Unidos, têm um impacto muito grande no resto dos países. A FDA decide se um dispositivo ou um medicamento é seguro e eficiente o suficiente para ir para o mercado. Chamar um representante da estrutura maior dos Estados Unidos é um golpe de marketing fantástico“.

https://observador.pt/videos/atualidade/o-brilho-a-forma-e-os-detalhes-conheca-as-novidades-da-apple-ao-pormenor/

Apesar do certificado da FDA e da Associação Americana do Coração, mesmo que este registo da atividade elétrica do coração possa ser “interessante” e “útil” de um ponto de vista científico, um médico que o utilize tem de olhar duas vezes para o PDF constituído pelo Apple Watch. Esta é a convicção de João Sousa, médico cardiologista do Hospital Lusíadas:  “A deteção de arritmias através do telemóvel tem sido recomendada, mas exige sempre que o médico avalie a qualidade do registo. Isso faz-se olhando para o traçado do gráfico. Os médicos conseguem entender se há ruído que prejudique a leitura dos elétrodos. Isso pode acontecer quando há problemas de contacto, por exemplo”, explica ele ao Observador.

João Sousa também concorda que esta é “uma tecnologia útil” que vem melhorar as antigas funcionalidades do Apple Watch — as que permitiam encontrar pulsações irregulares ou criar um alarme de arritmia. Tudo isso são “métodos de screening“. Ou seja, são formas de rastreio que permitem detetar possíveis doenças por meio de testes e exames. “Hoje em dia, aplicações como estas são aconselhadas como método de rastreio, até porque outros telemóveis já tinham funcionalidades semelhantes. A novidade desta é a possibilidade de criar traçado. A qualidade não deve ser muito boa, mas pelo menos pode ajudar a registar o momento em que determinados sintomas se fazem sentir“, conclui o médico.

Por enquanto, esta é uma realidade que ainda não vai entrar nos consultórios médicos portugueses: a Apple fez saber que a funcionalidade do eletrocardiograma vai primeiro ser testada nos Estados Unidos e que só no futuro poderá chegar a outros mercados, incluindo o europeu. O relógio, esse, pode ser encomendado já a partir de sexta-feira e estará disponível a partir de 21 de setembro. Segundo o site da Apple em Portugal, o Apple Watch Series 4 vai custar pelo menos 439 euros.