Donna Strickland quebrou o ciclo: ao fim de 55 anos, uma mulher cientista voltou a ganhar um Nobel da Física. Quando, em 1985, publicou o artigo sobre a inovação que agora lhe viria a dar um prémio Nobel, a investigadora canadiana era ainda aluna de doutoramento de Gérard Mourou, o investigador francês com quem partilhou o prémio. Mas nem sempre o mérito é reconhecido aos alunos ou investigadores menos graduados, como o caso de Jocelyn Bell Burnell demonstra. A investigadora britânica ficou de fora enquanto viu o seu orientador, Antony Hewish, ganhar o Nobel da Física em 1974.

Usar lasers como ferramentas em miniatura foi distinguido com o Nobel da Física 2018

De fora ficou também Lise Meitner. Numa parceria que durou mais de 30 anos, a física austríaca e o químico alemão Otto Hahn trabalharam na fissão nuclear (quebra de um núcleo em dois mais pequenos), mas o mérito da descoberta foi atribuído exclusivamente a Hahn, que ganhou (sozinho) o prémio Nobel da Química em 1944. E isto apesar de, entre 1901 e 1965, Lise Meitner ter sido nomeada 29 vezes para o Nobel da Física e 19 vezes para o Nobel da Química.

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Os nomeados e quem os nomeia ficam, segundo as regras do prémio Nobel, em segredo durante 50 anos. Neste momento, já são conhecidas as nomeações entre 1901 e 1965, o que mostrou que Lise Meitner foi a cientista mulher mais vezes nomeada para o Nobel da Física durante esse período. Morreu em 1968 sem o receber.

[Veja no vídeo como ao fim de 55 anos uma mulher ganhou o Nobel da Física]

Das nove mulheres nomeadas nesse período, só Maria Goeppert-Mayer teve um número de nomeações equivalente: 26 vezes, entre 1955 e 1963. A investigadora norte-americana, nascida na Alemanha, viu o seu mérito reconhecido em 1963. Maria Goeppert-Mayer é, juntamente com Donna Strickland e Marie Curie, uma das três laureadas com um Nobel da Física. Mas Marie Curie foi um verdadeiro caso de sucesso. A cientista francesa foi nomeada três vezes para o Nobel da Física e duas vezes para o Nobel da Química e acabou por ganhar cada um dos prémios, em 1903 e 1911, respetivamente.

Ficou sem Nobel, mas ganhou um Prémio Breakthrough

Quando era ainda uma jovem estudante, em 1967, Jocelyn Bell Burnell descobriu uma anomalia nos registos de um telescópio construído pelo seu supervisor e não descansou enquanto não percebeu do que se tratava. “Tipicamente [essa anomalia] ficava registada em cinco milímetros dos meus longos rolos de registo de meio quilómetro”, disse em entrevista ao site Science News. “Estava a ser muito, muito minuciosa, muito cuidadosa.” E valeu a pena. O que Jocelyn Bell Burnell descobriu foi o pulsar — os restos de uma estrela que morreu de uma explosão violenta.

A descoberta, publicada em 1968 pela revista Nature, valeu um prémio Nobel seis anos depois. Mas não a Jocelyn Bell Burnell. Foi Antony Hewish, o orientador da investigadora na Universidade de Cambridge, que ficou com os louros: “Pelo papel decisivo na descoberta dos pulsares”, notou o comité do Nobel. É certo que Antony Hewish tinha construído o telescópio que permitiu a observação, mas efetivamente foi Jocelyn Bell Burnell que fez a primeira observação e a análise dos objetos astronómicos que emitiam aquele tipo de radiação.

Breakthrough Prize

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Os prémios Breakthrough são financiados por Sergey Brin, Priscilla Chan e Mark Zuckerberg, Ma Huateng, Yuri e Julia Milner, e Anne Wojcicki.
O Prémio Especial Breakthrough para a Física Fundamental foi atribuído três vezes até 2018: a Stephen Hawking pela descoberta da radiação dos buracos negros, em 1974; à equipa do CERN (Laboratório Europeu de Física Nuclear) que descobriu o bosão de Higgs, em 2012; e à colaboração LIGO que descobriu as ondas gravitacionais, em 2016.

Se o comité do Nobel tivesse considerado a participação de Jocelyn Bell Burnell, ela teria partilhado a distinção com o seu supervisor e ambos teriam dividido o prémio com Martin Ryle, um astrónomo que ganhou o prémio no mesmo ano. Nessa situação hipotética, os 124 mil dólares que o Nobel atribuiu (equivalente a 620 mil dólares, ou 536 mil euros, atualmente) teriam sido divididos a meio, uma parte para Burnell e Hewish, a outra parte para Ryle.

Não se sabe o que Burnell teria feito com o valor desse prémio — cerca de 27 mil euros –, mas a investigadora já sabe o que vai fazer com o Prémio Especial Breakthrough para a Física Fundamental atribuído este ano pela mesma descoberta e pela competência na liderança de equipas de investigação. Os três milhões de dólares, que agora ganhou, serão investidos numa bolsa que apoie mulheres, pessoas de minorias étnicas e estudantes refugiados que estejam interessados em tornar-se investigadores na área de Física, refere a BBC.

“Estas são as pessoas que tendencialmente são discriminadas devido a um enviesamento inconsciente, por isso penso que é uma das razões porque não existe muitos. Portanto, se trouxerem algum financiamento com eles, vão ser muito mais atrativos”, disse a investigadora britânica à BBC News. “Eu não quero, nem preciso, do dinheiro para mim e parece-me que isto será talvez o melhor uso que lhe posso dar.”

Ficou sem Nobel, mas ganhou um elemento químico

Mulher, judia e nascida na Áustria numa altura em que não era permitido às mulheres estudarem, Lise Meitner (1878-1968) teve de deixar a escola aos 14 anos. Mas a adversidade não a fez desistir e, em 1901, conseguiu entrar na Universidade de Viena. Foi aluna do físico austríaco Ludwig Boltzmann, com quem descobriu a paixão pela Física. Quando terminou o doutoramento, em 1906, tentou juntar-se à equipa de Marie Curie, mas a falta de vaga fez com que optasse pela Universidade de Berlim onde teve aulas com Max Planck.

Foi em Berlim que iniciou a colaboração com Otto Hahn. O Instituto de Química onde o investigador alemão trabalhava não arranjou um labortório para Meitner, mas os dois companheiros e amigos arranjaram forma de colaborarem área da Física Nuclear. Só em 1912, a investigadora conseguiu finalmente uma posição paga no recém-criado Instituto Kaiser Wilhelm de Química. Em 1926, Lise Meitner tornou-se a primeira mulher a ensinar Física numa universidade alemã.

A parceria com Hahn durou cerca de 30 anos, mas foi minada pela perseguição aos judeus, a II Guerra Mundial e o prémio Nobel que Lise Meitner não recebeu. Mesmo exilada em Estocolmo (Suécia) a partir de 1938, Lise Meitner continuou a colaborar com Otto Hahn. E foi já no exílio que o trabalho de Meitner, Otto Robert Frisch (sobrinho da investigadora), Hahn e Fritz Strassmann chegou à fissão nuclear.

Otto Hahn tentou esconder a colaboração com Lise Meitner com medo de represálias da Alemanha nazi, mas manteve esta postura mesmo depois do fim da II Guerra Mundial, o que deixou alguns ressentimentos na colega de equipa e amiga. Ainda assim, Hahn, nomeado para um Nobel (da Física ou da Química) 37 vezes, não deixou de referir o papel de Meitner e Frisch na palestra do Nobel.

No fim da II Guerra Mundial, Lise Meitner foi chamada a “mãe da bomba nuclear”, uma alcunha que não defendia. Para a investigadora, a energia nuclear deveria ser usada exclusivamente com fins pacíficos.

A guerra, o exílio e o excesso de zelo de Hahn podem ter justificado a não atribuição do Nobel a Lise Meitner, mas o trabalho dela acabou por ser reconhecido pelo prémio Enrico Fermi, atribuído conjuntamente a Otto Hahn e Fritz Strassmann, em 1966, “pela investigação pioneira na radioatividade de ocorrência natural e nos extensos estudos experimentais que levaram à descoberta da fissão nuclear”.

Lise Meitner acabou por ser homenageada de outras formas: foi a primeira mulher não mitológica a dar nome a um elemento químico. Em 1997, o elemento 109 recebeu o nome de Meitnerium. Meitner é também nome de crateras na Lua e em Vénus e o nome de um asteróide da cintura de asteróides entre a Terra e Marte.