Às vezes há coisas muito difíceis de explicar. Não falo de fenómenos como o Stonehenge ou as estátuas da ilha da Páscoa. Coisas mais fugazes, vá, que surgem de repente, sem ninguém esperar, e quase automaticamente suscitam uma obsessão meio doentia — uma receita, uma peça de roupa, um programa… Especialistas conseguirão dissecar melhor fenómenos deste género — como, por exemplo, porque é que toda a gente começou a adorar torradas com abacate, “A Guerra dos Tronos” ou aqueles ténis brancos de sola gigante e ar desconfortável — mas para o comum mortal que reage mais pelo instinto e não pela cabeça, há coisas difíceis de entender. Na música, Conan Osiris foi um destes casos. Um rapaz lisboeta que se veste de forma estranha e faz canções que ora soam a confusão ora a puro gozo não parecem ter um efeito de enamoramento imediato, mas a verdade é que tiveram. Numa questão de dias, Osiris foi catapultado do fundo do Soundcloud para a ribalta ‘indie’ e milhares de pessoas ficaram vidradas.
O exemplo deste rapaz que adora bolos não foi escolhido ao acaso. Como ele, surgiu em Espanha Rosalía, a nova menina bonita da música latina que, não sendo do reggaton ou das playlists matinais de rádios mainstream, consegue ser mais “latina” que todos os despacitos desta vida. Se Osiris tinha o fado como grande pedra basilar, a sua congénere espanhola tem o flamenco, esse estilo musical que desapareceu dos grandes espaços mediáticos desde a última vez que Joaquin Cortéz deixou de riscar tampos de mesa com os seus passos de dança vigorosos.
Com raízes árabes e muito ligado à cultura da Andaluzia (sul de Espanha), o flamenco pode facilmente ser associado ao fado português — na forma e no conteúdo, já que amores viscerais, paixão, dor e saudade são temáticas recorrentes — e, da mesma forma, passou anos associado à imagem de “música de outros tempos”, algo bem distante das pistas de dança mais jovens e muito coladas a ideologias retrógradas. Nas últimas décadas, tanto um como outro passaram por um processo de revitalização, novos fadistas e cantores de flamenco foram surgindo, dando novo fôlego a estas sonoridades. Hoje, porém, chegámos precisamente a Conan Osiris e a Rosalía, as caras da tradição 2.0 na era da Internet e dos instrumentos digitais. Olhando para o último disco da interprete espanhola, em específico, podemos dizer com ainda mais confiança “ainda bem que isto aconteceu”.
Aos 25 anos, esta rapariga espanhola de quem o mundo inteiro tem falado, é dona de um dos projetos musicais mais entusiasmantes do últimos tempos. Catalã de nascença, mas desde muito pequena ligada ao cantar tradicional andaluz, Rosalía Vila Tobella já tinha feito virar cabeças em 2017 com o disco Los Ángeles, uma compilação de reinterpretações de clássicos do cancioneiro flamenco onde já se sentia o cheiro a novo. O sucesso, embora modesto, fê-la aparecer no radar de músicos mais pop como J Balvin, por exemplo, e foi o ponto de partida para o sucesso que é este El Mal Querer, disco acabado de sair e que se inspira num conto do século XIII chamado, precisamente, “Flamenca”.
Nessa história de autor anónimo que inspirou toda a narrativa desta novidade, conta-se a história de uma mulher que vive dividida pelo ciúme e desilusão num trágico triângulo amoroso. É neste mesmo trabalho, precisamente, que se vê Rosalía naquela que parece ser a sua roupagem musical mais confortável, o tal flamenco contemporâneo onde os trinados de uma voz cheia e sensual andam de mão dada — não estranhe já, calma — com sonoridades próximas do R&B e da eletrónica mais “intelectual” muito associada a artistas como ARCA (com quem Rosalía já trabalhou, lá está).
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Tudo começa com o mega-êxito “Malamente”, um belo pedaço de pop sensual e altamente viciante que cola perfeitamente com o estilo urbano e descomprometido da cantora, que brinca como ninguém com o novo e o velho — veja-se o videoclip onde o tunning e o visual da tauromaquia, por exemplo, andam de mãos dadas (algo que foi motivo de polémica, apesar da cantora não se rever nessa tradição e afirmar que apenas quis usar a sua simbologia como metáfora das suas letras). Daí em diante começa a montanha russa de influências e referências culturais que funcionam sempre numa espécie de jogo entre o antigo e o novo. Por um lado, o cantar flamenco e a o bater de palmas que funciona como ritmo base de quase todas as canções — oiça-se a “Pienso En Tu Mirá” ou “Di Mi Nombre” –, por outro há as composições eletrónicas de El Guincho plenas em distorção e batidas pulsantes. Até há espaço para uma das misturadas musicais mais esquizofrénicas dos últimos tempos, na canção Bagdad, onde samples de “Cry Me A River“, de Justin Timberlake, são misturados com uma espécie de canto gregoriano e coros de crianças com a bonita voz de Rosalía a juntar tudo. Só por conseguir fazer isto tudo funcionar já merecia um prémio qualquer.
Voltando ao início deste texto e à tentativa de explicar o que parece inexplicável. A música de Rosalía é altamente viciante e este novo disco, em específico, ainda mais o é. Olhando de um ponto de vista muito cerebral, é difícil perceber como é que se pode gostar de uma amálgama de flamenco, R&B e “gunas” catalães, mas a verdade é que tudo soa incrivelmente bem.
A explicação para isto? Bem, pode passar pela ideia de que cada vez existe mais abertura cultural à reinvenção do antigo, do que sempre pareceu intocável, e que isso, de certa forma, funciona como uma força renovadora. Se sempre se disse que “parar é morrer”, faz todo o sentido que tal mantra também se possa aplicar ao mundo da música. Rosalía — como Conan Osiris –, estão a tornar-se na cara fresca de tradições e, com isso, ajudam não só a manter o valor de expressões culturais antiquíssimas como também mostram que mudar não é mau, muito pelo contrário.