Salvo raras exceções, os trinta são mesmo aquele momento de viragem na vida de qualquer ser humano. Que o diga Reinaldo Moreira, a quem o 30º aniversário trouxe uma ideia, no mínimo, brilhante — num país mundialmente reconhecido pela excelência da sua indústria têxtil, lembrou-se de convidar várias fábricas, normalmente focadas em produzir roupa para grandes marcas internacionais, a maioria de luxo, para desenvolverem e comercializarem a sua própria moda. A ideia saiu do papel no último verão e chama-se Springkode. À pergunta clássica de como é que tudo começou, o jovem empresário responde de forma imprevisível. Na realidade, é tudo por causa de um par de meias. “Foi há um ano. A minha sogra ofereceu-me um par de meias espetacular que comprou diretamente na loja de uma confeção. Em miúdo, já tinha comprado uns fatos e umas camisolas em fábricas, mas já não me lembrava”, explica ao Observador.

O site da Springkode foi lançado em agosto. Uma das características da plataforma é a produção limitada. Cada peça tem apenas 50 exemplares. Os preços vão dos 27€ aos 169€

Sem nutrir nenhum carinho em especial por meias, foi bater a umas quantas portas. “Queria perceber onde eram produzidas e onde podia encontrar outros produtos de qualidade, a preços muito mais em conta. Vi ali a possibilidade de montar um negócio que permitisse a qualquer um, em qualquer momento, comprar estas peças diretamente à fonte”, conclui Reinaldo Moreira. Na verdade, a ideia não teve de esperar muito. Com formação em engenharia industrial, propôs a ideia a outros dois sócios — Francisco Pimentel, da área da gestão, e Miguel Pinto, empresário e com experiência nas áreas da moda e do e-commerce.

A Springkode começou a dar os primeiros passos há um ano, altura em que os três sócios encetaram os contactos com as fábricas. No verão, já três delas produziam as primeiras peças para o lançamento da loja online, no final de agosto. A oportunidade era única. Além de não existir nenhuma plataforma deste género na Europa, os elevados padrões de qualidade da indústria têxtil portuguesa foram, desde logo, o principal atrativo. E se, até aqui, as fábricas estavam maioritariamente habituadas a lidar com marcas internacionais e agentes, viram na plataforma uma oportunidade de desenvolverem as suas próprias coleções. Para começar, são três, mas os sócios tencionam chegar à próxima estação fria com dez parceiros.

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Reinaldo Moreira e Francisco Pimentel, dois dos três sócios da Springkode © DUDE Studio

“Existe espaço para as marcas de fábrica, onde o cliente está a procura, não de se associar a uma etiqueta, mas da melhor relação qualidade preço. Além disso, o papel que temos é o de curadores. Só estão aqui as confeções que trabalham para as melhores marcas mundiais”, refere Reinaldo. Falamos de fábricas que exportam praticamente 100% da produção (ou que exportavam, até agora) e que se querem lançar com coleções de design próprio. Têm tudo do lado delas: o acesso a tecidos e materiais, a mão-de-obra especializada, os meios de produção e a possibilidade de vender peças de roupa com qualidade equiparada à das grandes marcas de luxo, mas a metade do preço. “Cada vez mais, a direção é essa. Não faz sentido sermos as primeiras pessoas da cadeia e depois ainda termos agentes e clientes finais, que muitas vezes ainda vendem para retalho. Não faz sentido inflacionar o produto desta maneira, quando temos know-how. Há uns anos, as pessoas ligavam imenso às etiquetas, agora procuram mais a qualidade”, explica ao Observador Paula Gomes, há 34 anos à frente da Fábrica de Malhas Tiva Lda, em Barcelos.

A melhor roupa do mundo faz-se em família

Em 1985, o cenário era bem diferente. Havia mais funcionários, teares a laborar e uma capacidade de trabalho que ia da tecelagem aos acabamentos. O grosso da produção destinava-se ao mercado interno, algo que não se manteve durante muito mais tempo. Quando Paula chegou à fábrica do sogro, deparou-se com uma decisão difícil. Na impossibilidade de manter a estrutura, abdicou da tecelagem e centrou o negócio na confeção. “Não tinha media para entrar em medicina. Era nova, eram trapos, achei piada”, recorda Paula. A Tiva foi uma das três fábricas a juntar-se à Springkode, logo no primeiro dia. Com as restantes duas e com dezenas de outras partilha uma dinâmica familiar e uma história que reflete a evolução do setor e do país.

“A identidade e a proveniência de um produto tem muito valor, é um fator muito rico. Acreditamos que dizer ‘made in Portugal’ não chega, é preciso ir mais a fundo e as nossas fábricas têm décadas de história, uma história com momentos bons e momentos maus, mas acima de tudo riquíssima do ponto de vista humano”, afirma Reinaldo Moreira, um dos fundadores da Springkode. O empresário recua 25 anos e recupera aquele que considera ter sido o grande ponto de viragem para a indústria têxtil. “Para competir com os preços do Extremo Oriente, a indústria europeia teve de adquirir competências que, até aí, só estavam do lado das marcas. Hoje, as fábricas têm capacidade de design e de desenvolvimento de produto, não são meras unidades de produção. Elas inovam, estão a par das tendências, desenham, propõem, fazem o controlo de qualidade do produto, só não têm marca. Isso faz com que a cadeia de abastecimento possa ser revista e que, hoje, possa ser criado um canal direto para a fábrica”, continua.

Na LaGofra, existe uma equipa de quatro pessoas para trabalhar nas áreas do design e da modelagem © DUDE Studio

“‘O que é que têm para oferecer?’, ‘O que é que as grandes marcas estão a fazer?’ e ‘Quais são as tendências?'” — mais do que um plano pronto a executar, é cada vez mais esta a abordagem das marcas e agentes que chegam à Tiva. Para Paula, o futuro é por aqui. E se quase todas as fábricas já estão munidas de um departamento de design (muitas já desenham e produzem peças sem etiqueta para depois serem incorporadas nas coleções dos seus clientes), porque não começarem a ter também as suas próprias marcas?

Filipe Prata já tinha dado esse passo, muito antes de a Springkode lhes bater à porta. Há três anos, a partir da fábrica da família, a LaGofra, criou a Daily Day, uma marca de moda masculina e feminina. Pouco tempo depois, a etiqueta ganhou loja própria, junto à Avenida dos Aliados, no Porto. “É muito entusiasmante desenvolver uma marca”, admite Filipe, o primeiro de três irmãos a abandonar a profissão para a qual se tinha formado, no caso, engenheiro civil, para trabalhar na fábrica fundada pelo pai, em 1980. “E está a crescer. É uma questão de notoriedade, mas também de conhecer melhor os clientes e de saber o que valorizam no vestuário. Isso dá-nos mais sensibilidade”, continua, em conversa com o Observador.

A LaGofra, em Paços de Ferreira, continua a exportar mais de 90% da sua produção. Tal como a Tiva, a sua carteira de clientes oscila entre grandes marcas de luxo e designers independentes, cujas peças fazem especial sucesso no Norte da Europa, no Japão e nos Estados Unidos. “O ramo industrial tem de fazer uma transição. Estamos cada vez mais próximos do que está a acontecer no resto do mundo, sabemos o que é que as grandes marcas vão fazer, muito antes dos desfiles”, conta. O próprio funcionamento da fábrica reflete a mudança. O golpe foi duro, quando a maioria das marcas decidiu deslocar as suas produções para o Oriente. Aos sobreviventes portugueses restou uma única hipótese — a modernização e a especialização deram início a um namoro feliz entre a indústria têxtil portuguesa e as marcas de luxo. Na LaGofra, já não há encomendas colossais. Produzem-se poucas centenas de cada peça, quando, outrora, se produziam aos milhares. De um grande (e único) cliente, a fábrica passou a ter uma carteira com cerca de 30, o que diminui substancialmente a exposição às marcas, diversificando o risco. “Hoje, parecemos um atelier gigante. Enquanto na altura do meu pai, só víamos uma cor durante duas ou três semanas, agora temos dez ou 20 cores diferentes todos os dias”, continua Filipe.

Um setor em ascensão

Destas três fábricas — Tiva, LaGofra e TMR — saem peças de marcas como Chloé, Givenchy, Burberry, Miu Miu, Coach e Sandro. Uma amostra pequena, mas representativa do setor. Falamos de um dos setores que mais cresceu em exportações nos últimos anos. De 2015 para 2016, as exportações de têxteis e vestuário subiram 5%, ultrapassando a marca dos milhões euros, definida pelo plano estratégico como a meta do setor para 2020. O ano passado fechou nos 5.237 milhões de euros, o que traduz um crescimento de 4% em relação ao ano anterior. À contratação especializada de serviços de desenvolvimento e de fabrico dá-se o nome de private label, sendo que o setor têxtil nacional está sobretudo orientado para marcas dos segmentos premium e de luxo. Marcas como a Zara ou a H&M, fora destas categorias, representam cerca de 35% da atividade private label. Segundo dados da ATP (Associação Têxtil e Vestuário de Portugal), a produção de bens de luxo representa uma fatia de 15%, ficando os estantes 50% por conta de marcas do segmento premium.

Tiva, a fábrica de Barcelos fundada em 1973 © DUDE Studio

“Temos uma indústria têxtil brutal, talvez a melhor do mundo. Em termos de procura, temos de ser realistas: a escala está na Europa”, afirma Reinaldo Moreira. A Springkode está em fase de contratualização com mais cinco fábricas portuguesas e a missão de “rentabilizar o que muitas já fazem”, como resume Reinaldo, não se limita ao setor nacional. Da mesma forma que a plataforma quer vender para outros países, também a lista de fábricas contactadas depressa será internacional. A médio prazo, Espanha faz parte dos planos de crescimento, seguir-se-á Itália e, quem sabe, França.  A primeira plataforma de e-commerce portuguesa que liga a indústria têxtil diretamente ao consumidor nasceu a 13 de abril de 2018, com financiamento próprio de 100 mil euros. Para 2019, os três sócios esperam um valor de faturação de 350 mil euros. Até ao break-even, a stratup pretende investir cerca de 1,1 milhões de euros. É por isso que Reinaldo, Francisco e Miguel procuram agora investidores (passaram pela Web Summit com esse objetivo), bem como apoios de fundos cofinanciados.

Fazer com que Portugal seja mais do que um país de fabrico é o objetivo de Miguel Máximo, diretor de marketing da TMR, em Guimarães. Há exatamente 20 anos, Margarida Máximo, a tia, criou a empresa do zero. A única base era a sua experiência de gerente de produção numa marca britânica. Hoje, empregam 21 pessoas e mantêm 20 clientes em dez países. As malhas são a grande especialidade e já valeram à empresa contratos diretos com marcas e designers de nicho, sobretudo na Holanda e na Alemanha. Agora, além de uma coleção sazonal desenhada para a Springkode, a TMR prepara-se para marcar presença, plea primeira vez, numa feira do setor no Japão. Na mala, vão levar pelas de design próprio e dar provas do que são capazes no que toca ao design e à manipulação e seleção dos materiais. Nesse âmbito, a certificação ambiental é um dos motivos de orgulho. São peças 100% orgânicas, dos tecidos predominantes aos fios usados nas costuras. Uma bandeira hasteada pelas outras fábricas e pela própria plataforma online, que conseguiu a certificação da Global Organic Textile Standard.

A TMR continua a ser um negócio de família. Margarida Máximo, que fundou a fábrica em 1998, com a filha Mariana e o sobrinho Miguel © DUDE Studio

Falamos de fábricas com uma produção pouco sistematizada, onde a confeção manual continua a assumir um papel primordial. Por outro lado, o ambiente familiar e a permanência de funcionários antigos permitem acrescentar uma boa dose de storytelling à roupa que, depois de sair da fábrica, corre o mundo. Na LaGofra, 25 dos mais de 70 funcionários estão na empresa desde a década de 80. De segunda a quinta-feira, todos fazem horas extra, 45 minutos mais precisamente. O objetivo é que todos tenham a tarde de sexta-feira livre para frequentar o curso de línguas pago pela empresa. O inglês já está sabido, agora é altura de começar com o francês.

“As referências de Portugal lá fora são muito boas. Somos vistos como uma Itália, só não temos essa força nas marcas. O mercado interno é muito pequeno e falta-nos capacidade de investimento”, acrescenta Miguel Máximo, da TMR. “É um mercado altamente polarizado, entre o segmento de preços mais baixos e o de luxo. O problema é dar escala às marcas, isso só está ao alcance dos que têm o capital todo logo à cabeça”, completa Reinaldo Moreira. Uma “Farfetch da indústria portuguesa” — é assim que a Springkode resume a posição pioneira que quer assumir no mercado. E parece que o vestuário é só o começo. Depois da roupa, os três sócios querem abrir a plataforma ao calçado e a todo o tipo de acessórios. Num mundo que gravita em torno das grandes marcas, este parece ser um caminho alternativo com futuro. No caso português, a estratégia viverá do que de melhor fazemos por cá: a roupa.