Estávamos em outubro de 2015. Marcelo Gallardo, que como jogador passara em três ocasiões diferentes pelo River Plate, tinha ganho há poucos meses a Taça dos Libertadores como treinador e entrava na história do clube por ter sido o primeiro com troféus internacionais alcançados dentro e fora das quatro linhas. Nessa altura, El Muñeco, o talento irreverente de 1,65 metros que passou alguns anos na Europa sempre avesso a entrevistas, abriu parte do seu mundo à revista do Clarín e não esteve com meias medidas – sem problemas, assumiu o que é, o que não gostava de ser e o que fez para contornar o que seria.
Tens fama de ser meio cabrón. És mesmo?
Sim.
Mal-humorado também?
Sou passional, sangue quente, reajo a certas cosias que me vão acontecendo. Com o tempo fui conseguindo lidar com algumas dessas frustrações que muitas vezes aparecem quando há algo que não está a correr bem. Injustiças, por exemplo. Mas comecei a ser um pouco mais cuidadoso na forma de me expressar. Antes era pior, reagia em demasia e em alguns momentos passei mal.
Porquê?
Era muito sangue quente, na rua, no carro. Essas coisas consegui aprender a lidar com o tempo. Não são boas recordações, hoje tenho vergonha de algumas coisas que se passaram. Mas uma pessoa aprende, vai crescendo para a vida.
Fizeste terapia?
Sim, uma só vez, quando tinha 20 anos. Comecei a ver ali que estava em processo de amadurecimento, como assumir que havia algumas coisas que não conseguia lidar sozinho e precisava de ajuda. Na verdade, não é fácil resolver algumas cosias coisas que se passam na tua vida e que vão demasiado rápido: aos 12 cheguei ao River, aos 15 já estava a jogar, aos 16 assinei o meu primeiro contrato, aos 17 jogava na primeira equipa, aos 18 estava na seleção. E tinha os meus amigos e as minhas coisas na cabeça. Apesar de não ser o tipo de pessoa que leva tudo à frente, as mudanças foram acontecendo de forma muito rápida e quando começas a chocar e a ter frustrações, percebes a realidade das coisas e começas a fazer perguntas. Aos 19 anos comecei a fazer muitas dessas perguntas e ainda hoje continuo a fazer.
Como por exemplo?
São muitas, não vêm agora para o caso.
Marcelo Gallardo pertenceu ao filão sem fim de camisolas 10 destros da Argentina que procuravam assumir a dinastia deixada pelo pé esquerdo de Maradona. Como Ortega. Como Riquelme. Como Aimar. Toda uma orquestra que conheceu o verdadeiro tenor quando Messi chegou à primeira equipa do Barcelona – também ele canhoto, como parecia estar escrito. Era um artista de cabeça levantada e bola colada no pé que transformava qualquer livre direto num penálti com barreira. Mas também era aquele rebelde que surgia em primeiro plano nas maiores confusões em campo, nomeadamente nos duelos entre o seu River Plate e o Boca Juniors, como quando deu murros e arranhou a cara do guarda-redes Pato Abbondanzieri num dérbi em 2004 que acabou com chuva de cartões vermelhos. Hoje, aos 42 anos, reinventou-se. Poliu os excessos e limou os abusos mantendo os traços originais mais selvagens que o conduziram ao estrelato. Com isso, tornou-se o típico treinador da moda.
El Muñeco, a alcunha pela qual é saudado pelos adeptos dos millonarios como um Deus mas que nunca gostou, é o primeiro a chegar ao centro de treinos e o último a sair, de forma impreterível. As viagens, todas elas, são aproveitadas para pensar futebol: de avião, vê vídeos dos adversários; no carro, imagina jogadas para testar na sessão seguinte. Entre treinos e jogos, a única diferença são os coletes e as camisolas vestidas, exigindo o mesmo a uma referência da equipa do que a um miúdo saído da formação – e foi por isso que sentou no banco algumas das maiores estrelas do River nos últimos quatro anos. Só teve Twitter porque estava farto das contas falsas mas não liga às redes sociais nem gosta que os jogadores abusem das mesmas e desse vício contagiante que diagnosticou como mal nas concentrações: o telemóvel. Ao fim de semana, quando dá folgas ao grupo, senta-se nas bancadas como um espetador em todos os encontros dos diferentes escalões de formação do clube.
Gallardo tornou-se um verdadeiro profissional que não esquece os pormenores mais “rudimentares”. Exemplo? Tem na porta do seu cacifo uma lista com 57 nomes e os respetivos aniversários. Dos jogadores aos médicos, da equipa técnica aos massagistas, dos roupeiros aos cozinheiros e seguranças. Para ele, não interessa o que fazem em específico – é tudo família. Não abdica dessa filosofia de ganharem todos juntos mas chama para si as responsabilidades do insucesso porque dentro de qualquer família há sempre o patriarca que todos os restantes seguem. Mais do que uma vivência intensa como futebolista, que o fez passar pelos franceses do Mónaco e do PSG, pelos americanos do DC United e pelos uruguaios Nacional (com títulos conquistados em todos eles) entre as três etapas no Estádio Monumental em Belgrano, o agora técnico soube perceber aquilo que lhe fizera falta para ser ainda melhor e os últimos quatro anos e meio na liderança do River Plate são reflexo disso mesmo.
A contratação de Sandra Rossi para a equipa técnica dos millonarios é o sinal paradigmático dessa quebra de barreiras que foi tentando fazer no comando da equipa. Gallardo é um romântico do futebol, daqueles que não perde a oportunidade para lamentar como a evolução dos tempos e o peso do dinheiro na modalidade vai matando o estado mais puro do jogo. Por isso, e na génese do que é hoje o River, encontra-se uma mistura entre as ideias da escola Cruyff e a irreverência (no melhor dos sentidos) argentina, balizada no campo e fora dele com a ajuda da neurociência no enquadramento dos jogadores. Tudo porque, como dizia o antigo mago holandês, “o futebol joga-se com o cérebro: deves estar no lugar certo e no momento certo, nem demasiado cedo porque a bola ainda não chegou lá, nem demasiado tarde porque a bola já passou por lá”.
“Tenho pena de não ter conhecido a Sandra quando ainda jogava porque ela mostrou-me uma nova alternativa para o desenvolvimento desportivo em alto rendimento e tem ajudado a revolucionar o trabalho no River Plate”, admitiu o técnico em declarações ao 1st Place Institute. “A neurociência é a teoria que nos permite saber como pensamos e, da nossa parte, tentamos baixar isso ao relvado para treinar as capacidades dos jogadores. Esse trabalho é feito com a otimização das funções cerebrais como o tempo de reação, a visão periférica, o foco ou a visão para antecipar o que os outros vão fazer”, resumiu Sandra Rossi em 2015, na altura do boom de declarações por ter surgido nas fotos da festa da Taça dos Libertadores.
“Muitos achavam que iria durar dois meses e se tivesse sorte. Muitos pensavam que não conseguiria aguentar porque este não é um espaço para mulheres. Pouco a pouco, todos nos fomos conhecendo, deixando cair as defesas e criando um espaço onde podemos coexistir e onde fui bem recebida. Não é um ambiente fácil, em especial por causa dos egos. Todos querem ter crédito pelos sucessos e isso pesa mais do que qualquer género. Como cheguei aqui? Um dia, durante o almoço, ele [Marcelo Gallardo] perguntou-me se gostaria de fazer parte de uma equipa técnica sua e eu aceitei”, contou Sandra Rossi ao The Guardian em 2016, recordando os primeiros tempos quando estava no comando do Centro Nacional de Alto Rendimento da Argentina, onde trabalhou em específico com a equipa olímpica, bem como o 1st Place Institute, em Miami.
Nascido em Merlo, Gallardo sonhava ser piloto de aviões mas levantou para outros voos quando foi com dois amigos a um treino de captação do River Plate (onde até era o menos entusiasmado). Tinha 12 anos e bastaram meia dúzia de toques para se perceber que estava ali um craque em potência. Ficou nos millonarios, a fazer duas horas de ida e outras tantas de volta até chegar ao centro de treinos com dois pesos por dia. Quando a fome apertava, o dinheiro ia para uma fatia de pizza e tentava encontrar outras formas de regressar a casa. Com apenas 17 anos, estreou-se pelo conjunto principal e, em seis temporadas, ganhou quatro Torneios Apertura, um Clausura, uma Taça dos Libertadores e uma Supertaça Sul-Americana, saindo em 1999 para um Mónaco de topo onde apenas chocou com um treinador: Didier Deschamps, atual campeão mundial.
Voltou ao Monumental, saiu de novo para França, teve a terceira passagem pelo River, aventurou-se nos Estados Unidos (com o terceiro maior salário da Liga, apenas superado por David Beckham e Blanco) e rumou ao Uruguai. Foi no Nacional que tudo acabou, foi no Nacional que tudo começou: em junho de 2011, com poucos dias de distância, sagrou-se campeão como jogador, pendurou as chuteiras de uma carreira que contou ainda com participações em dois Mundiais e um Torneio Olímpico (medalha de prata em 1996) e aceitou o convite para a primeira experiência como treinador. Resultado? Campeão nessa época.
Durante dois anos, foi recebendo abordagens e convites mas preferiu investir na formação pessoal na nova pele e não dar passos em falso num percurso que tinha começado da melhor forma. Em junho de 2014, numa altura de crise no River Plate, assumiu o comando dos millonarios e vai lutar este sábado pelo nono troféu: tem uma Taça dos Libertadores, duas Taças da Argentina, uma Supertaça da Argentina, um Taça Sul-Americana, duas Supertaças Sul-Americanas e uma Taça Suruga Bank. Se já era um herói para os adeptos como jogador, “Napoleão” (outra das alcunhas) reforçou esse posto como técnico e a química voltou a ficar bem patente quando, na primeira mão da final da Copa Libertadores, que viu no Estádio Monumental por estar castigado, foi à varanda e celebrou com milhares de hinchas da equipa o empate a dois golos na Bombonera.
Conhecido fã de rock and roll, Gallardo aproveita os tempos livres para ler. Gosta de romances mas também investe na formação como profissional e, como contou o Infobae, perdeu-se com a biografia de Pep Guardiola, que explicava alguns dos segredos da construção do tiki taka do Barcelona antes de se mudar para o Bayern e, mais tarde, para o Manchester City. Aliás, há alguns traços desse estilo que tentou implementar com sucesso no River Plate, como o jogo ofensivo assente na velocidade de circulação e a pressão alta para recuperar a bola em terrenos mais avançados. Aliado a isso, o técnico tornou-se também mais moderado. Ainda tem de quando em vez os seus bate bocas com árbitros assistentes e chegou a ser expulso nesta nova carreira mas mereceu a alcunha de “Gallai Lama” pela forma como controlou os ânimos no dia em que os seus jogadores foram atacados com gás pimenta no túnel de acesso aos balneários da Bombonera, num jogo para a Libertadores que viria a ser suspenso. Marcelo Bielsa, El Loco que comanda agora o Leeds United, é outra das suas principais referências como treinador.
Marcelo Gallardo, que voltará este sábado a cumprir castigo no encontro decisivo da Taça dos Libertadores mas que poderá ainda assim estar mais “próximo” da equipa, não gosta de falar do passado e recusa entrar no politicamente correto, como se percebeu após o Campeonato do Mundo quando admitiu em conferência poder sentar-se à mesa com qualquer pessoa ligada ao futebol desde que não fosse obrigado a mudar a opinião de que havia muita coisa mal na Federação que se refletia nas campanhas da seleção principal. Ainda assim, muito do que explica o que é hoje o River Plate tem génese o passado de El Muñeco, a antiga estrela que conseguiu colocar uma equipa ainda ferida no orgulho depois da traumática descida de divisão em 2011 a lutar pelos principais títulos jogando com qualidade e por uma causa como o 10 fazia nos seus tempos de jogador.