“Imagino que sou um ídolo porque joguei como os adeptos teriam jogado. Não tive o talento de Riquelme nem os golos de Palermo, mas tive a atitude que teria um adepto”. Guillermo Barros Schelotto é o arquétipo do adepto que virou jogador que virou treinador. Jogou no Estados Unidos, tentou treinar em Itália e andou por outras paragens argentinas até encontrar uma maneira de chegar à cadeira de sonho: o banco técnico do Boca Juniors. Mas por pouco não foi parar ao rival River Plate antes ainda de se estrear com a camisola azul e amarela.

Se a rivalidade entre o Boca Juniors e o River Plate é gigantesca, fruto de serem dois dos clubes mais bem sucedidos da Argentina e coexistirem em Buenos Aires, a rivalidade entre o Estudiantes e o Gimnasia não fica nada atrás. Barros Schelotto nasceu precisamente no bairro de La Plata, que as duas equipas também partilham, e sempre pertenceu à faixa do Gimnasia, clube onde o pai chegou a ser presidente. Guillermo e o irmão gémeo, Gustavo – facto que lhe valeu a alcunha El Mellizo, o gémeo, no futebol argentino –, começaram a jogar no clube da esquina, o For Ever. O treinador era também o técnico dos infantis do Estudiantes e queria levar os gémeos Schelotto. “Fui fazer um par de treinos e quando me queriam contratar disse que me tinha esquecido dos documentos. Nessa mesma tarde falei com um amigo que estava no Gimnasia e pedi-lhe para perguntar ao treinador se não nos queria”, contou numa entrevista ao El Gráfico. Anos mais tarde, uma história semelhante iria desviá-lo do River e levá-lo para o Boca.

Fez toda a formação no Gimnasia e chegou à equipa profissional, onde marcou 45 golos ao longo de cinco temporadas e 181 jogos. Em 1996, o River Plate mostrou interesse em contratá-lo. O negócio só caiu porque Enzo Francescoli, estrela maior dos milionarios que passava nessa altura por um segundo período no clube depois de ter jogado em França e em Itália, vetou a contratação de Schelotto. A meio de 1997, Diego Armando Maradona – a fazer a última temporada da carreira – recomendou os gémeos ao Boca, que na Bombonera encontraram um antigo rival, Martín Palermo.

Os Schelotto e Martín Palermo eram velhos conhecidos: durante toda a formação e depois enquanto profissionais, os dois irmãos jogavam no Gimnasia e Palermo jogava no rival Estudiantes. Andaram nas mesmas escolas, frequentaram os mesmos círculos mas não se suportavam. De um momento para o outro, todos recomendados por El Pibe Maradona, eram colegas de equipa e defendiam a mesma camisola ao invés de se enfrentarem em jogos agressivos e que terminavam com confrontos entre as claques. “Contrataram-nos num dia e ao Martín no dia seguinte. No primeiro dia, no balneário, estávamos só os três. Houve um ‘olá, tudo bem’, cumprimentámo-nos e ficámos em silêncio durante uma hora”, recordou Guillermo.

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Guillermo Barros Schelotto jogou dez anos no Boca Juniors e ganhou quatro Taças dos Libertadores

Héctor Veira, conhecido como Bambino, era na altura o treinador do Boca Juniors. Ao aperceber-se da faísca entre os dois jogadores recém-chegados, colocou-os em cubículos adjacentes no balneário. A convivência tornou-se inevitável e passados alguns meses já ofereciam boleia um ao outro depois do treino, já que eram vizinhos no bairro de La Plata. “Nunca nos sentámos a resolver nada, tudo se deu naturalmente. Fomos inteligentes ao ponto de deixar de lado os problemas que tínhamos tido, que também não eram muito importantes”, explicou El Mellizo. Era o início de uma das parcerias mais frutíferas da história do Boca Juniors.

Guillermo estreou-se com a camisola xeneize em setembro de 1997, quando entrou na segunda parte de um encontro com o Newell’s Old Boys para substituir Claudio Caniggia (o mesmo Claudio Cannigia que tinha passado pelo Benfica e protagonizado uma polémica expulsão às mãos de Jorge Coroado). A chegada de Carlos Bianchi ao comando técnico do Boca trouxe-lhe a camisola número 7, simplesmente “porque o treinador decidiu usar a numeração clássica”, que não largou até 2007. À chegada à Bombonera, o mister Bianchi tinha nas mãos um dos tridentes ofensivos que mais alegrias trouxe aos hinchas do Boca Juniors: Schelotto, Palermo e Riquelme. Só havia um problema. Schelotto e Palermo, nesta altura já inseparáveis, não suportavam Riquelme; sentimento esse que era mútuo.

Palermo foi muitas vezes acusado de só passar a bola para o lado esquerdo, onde estava Schelotto, e El Mellizo foi criticado por só ver o amigo na área quando Riquelme estava desmarcado. “Era uma questão de preferência. Palermo preferia o Guillermo e o Guillermo preferia o Palermo”, explicou anos mais tarde o central Jorge Bermúdez, que foi colega de equipa dos três. Riquelme era talento e virtuosismo em estado puro, um artista; Palermo e Schelotto eram soldados, aguerridos, combativos, cheios de raça. A desavença era do conhecimento público mas aos adeptos pouco interessava. Afinal, aquilo que tinham em comum bastava e era o mais importante: o amor ao Boca.

Palermo (número 9), Schelotto (número 7) e Riquelme: um trio que deu muitos frutos mas que nunca foi unido

Os dez anos que passou no clube de camisola azul e amarela foram recheados de títulos, golos e Superclásicos com o River Plate, onde o espírito de rebelde vinha especialmente ao de cima. Num desses dérbis de Buenos Aires, na meia-final da Libertadores de 2004 (o mais longe que os dois clubes se tinham encontrado até à final deste ano), foi bater um canto quando lhe atiraram uma garrafa da bancada. Quando olhou, estava a ser insultado por três homens. Dirigiu-se ao árbitro e disse: “Estão ali uns senhores, não sei quem são nem como se chamam, que me estão a incomodar”. Eram Javier Sodero, Hernán Díaz e Ernesto Corti, todos ex-jogadores do River Plate. “A verdade? Precisávamos de tempo porque o River estava a ganhar 1-0, tinha um jogador a mais e vinha para cima de nós. Então aproveitei para descansar”, contou mais tarde em entrevista ao El País. Era esse o papel de Schelotto nos jogos importantes. Não era um desequilibrador, um artista, um inspirado nem um abençoado. Era um trabalhador. E era exímio em implementar o jogo mental nos encontros com o River – provocava, irritava, fazia pequenas faltas daquelas que incomodam e deixava a cabeça em água a qualquer jogador adversário.

Em 2007, ano em que o Boca Juniors conquistou a última Libertadores mas para a qual Schelotto já pouco contribuiu, face às recorrentes lesões durante a temporada, decidiu deixar o clube, Buenos Aires e a Argentina. Até porque sabia que nunca o mandariam embora. “Sabia que para os dirigentes era difícil cortar a relação. O treinador também era novo [Miguel Ángel Russo] e seria difícil para ele tomar essa decisão. Não queria estar num clube onde já fosse um peso e que também me estivesse a pesar. Então fui-me embora. Se tivesse querido ficar, tinha ficado”, revelou à chegada aos Estados Unidos, para onde se transferiu para representar o Columbus Crew. Na Bombonera deixou quatro torneios Apertura, dois Clausura, quatro Libertadores, duas Taças Sul-Americanas e duas Taças Intercontinentais. Marcou 87 golos em 302 jogos e saiu do clube com estatuto de lenda.

No Estados Unidos, a ideia era jogar uma temporada e acabar a carreira. Aos 34 anos, queria uma reforma calma e descansada na Major League Soccer – mas apaixonou-se e descobriu outra paixão. Além de levar o Columbus Crew à conquista de um campeonato e ser considerado o jogador do mês em mais do que uma ocasião, percebeu que podia levar para o embrionário futebol norte-americano tudo aquilo que o centenário futebol sul-americano tinha nas veias. Quando chegou, as equipas jogavam todas da mesma forma, com quatro defesas, quatro médios e dois avançados. El Mellizo explicou, ensinou, testou e exemplificou que os laterais podem subir ao longo do corredor, os médios podem procurar terrenos interiores e as equipas podem jogar com um volante mais avançado no meio-campo que tem como função construir e organizar o jogo. Um ano transformou-se em três e o final da carreira deixou de ser uma decisão tomada para ser uma inevitabilidade adiada. Em 2010, decidiu regressar à Argentina – não ao Boca, mas ao Gimnasia.

Palermo e Schelotto formaram uma dupla de sucesso na Bombonera

Voltou ao clube de La Plata 14 anos depois de sair para os xeneizes. Não aceitou receber qualquer salário e jogou seis meses em regime pro bono, de borla, sem receber nada em troca. Terminou a carreira em 2011 e o último golo que marcou, o 110.º em competições argentinas, foi contra o Boca Juniors num encontro em que saiu do relvado em lágrimas. O passo seguinte foi óbvio e tinha sido decidido ainda nos Estados Unidos, quando percebeu que era tão assertivo a ditar instruções técnicas como era com uma bola nos pés. Assumiu o comando técnico do Lanús em julho de 2012 – com o irmão Gustavo como adjunto – e a Taça Sul-Americana que conquistou logo no ano seguinte chamou a atenção da Europa, que rapidamente olhou para o jovem treinador como a reencarnação do mestre Bianchi. Voltou a deixar a Argentina para trás para ir treinar o Palermo mas foi traído pela velocidade do próprio sucesso.

A UEFA não considerou válida a licença de treinador do argentino por não contar com os cinco anos de experiência necessários para orientar equipas de alto nível, condição imprescindível na liga italiana. O Palermo não desistiu e ofereceu-lhe um contrato de funcionário para que continuasse ao serviço do clube mas Schelotto não podia sentar-se no banco de suplentes, tinha de pedir autorização aos dirigentes para entrar no balneário para dar as palestras de início de jogo e ainda viajava dois dias por semana até Florença para assistir a um curso. Desistiu, anunciou que se ia embora e regressou à Argentina. Mas há males que vêm por bem.

Em 2010, ao serviço dos norte-americano do Columbus Crew, na Major Soccer League dos Estados Unidos

Em março de 2016, apenas um mês após deixar Itália, foi convidado pelo Boca Juniors para substituir Rodolfo Arruabarrena. Era a chamada para a cadeira de sonho. Não hesitou. Quando chegou à Bombonera – já sem as chuteiras, os calções e as meias nos tornozelos como era seu hábito – encontrou uma equipa cheia de potencial, que tinha vencido o campeonato argentino na temporada anterior, mas recheada de assuntos pendentes. Se durante a sua primeira passagem pelo clube o problema dos jogadores era a excessiva vontade de vencer, agora via-se a braços com questões de respeito, hierarquia, ego e orgulho. Inspirado pelas lições de Carlos Bianchi, pouco se preocupou com a opinião pública quando deixou Carlos Tévez, com quem ainda se cruzou enquanto jogador, sair para a China ou quando dispensou Pablo Osvaldo – o mesmo Pablo Osvaldo que passou pelo FC Porto e que agora se dedicou à carreira musical – porque o encontrou a fumar no balneário durante o intervalo. A sua missão era só uma: vencer títulos. E não ia “ser treinador de ficar na gaveta”, como disse ao El Gráfico na altura do regresso ao Gimnasia, porque tinha “um conjunto de miúdos” a dar problemas.

Levou o Boca à conquista dos dois campeonatos seguintes, foi gozado porque disse que Bentancur era “igual a Pogba” para agora a verdade dos factos lhe dar alguma razão e está na final da Libertadores. Se vencer, torna-se o primeiro homem a conquistar o troféu enquanto jogador e treinador na história do Boca Juniors; algo que o rival Marcelo Gallardo já alcançou pelo River Plate em 2015. Aos 45 anos, já disse que gostava de treinar nos Estados Unidos, não fecha a porta a uma ida para a Europa e até já foi apontado como uma possível solução para a seleção argentina, onde Lionel Scaloni é interino desde que Jorge Sampaoli saiu depois do Mundial da Rússia (e onde Schelotto nunca foi muito feliz, tendo cumprido apenas dez internacionalizações e sido frequentemente preterido por Marcelo Bielsa).

Guillermo Barros Schelotto, que um dia disse que esperava “ser rebelde até morrer”, admite agora que “o grande problema do jogador argentino é a irresponsabilidade”. Este sábado, no Monumental, El Mellizo deixará para trás, com toda a certeza, a calma, consciência e clarividência que os anos de treinador e a memória de Carlos Bianchi lhe trouxeram. Durante 90 minutos, Schelotto voltará a ser o capitão número 7, temperamental e aguerrido, de camisola azul e amarela e meias nos tornozelos.